10 anos depois: um futuro ainda aberto (3ª parte)

10 anos depois: um futuro ainda aberto (3ª parte)

Leia aqui a primeira parte do artigo: 10 anos depois: um futuro ainda aberto (1ª parte)

8

Ao usar Exército e Marinha para reprimir os protestos contra o leilão de Libra, a senhora Roussef (PT) pôs fim a 10 anos de falsa paz. Agiu como Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e José Sarney (PMDB) diante, respectivamente, das greves na Petrobrás (1995) e na CSN (1988).

Esses são atos de guerra contra o povo. Para a simples repressão, bastaria a polícia: a função precípua das Forças Armadas é a guerra.

É revelador da natureza do regime ora em seus estertores esse uso reiterado – não importa quem governe – das FFAA para o que nem é justo, nem lhes cabe: sufocar o exercício de direitos democráticos como a greve e a manifestação; e guarnecer não a soberania nacional, mas atos lesivos a ela num âmbito tão sensível e de tanto peso histórico no Brasil quanto o petróleo.

Burocratas e porta-vozes extraoficiais do partido que encabeçou os governos em que isso se deu, acompanhados agora por outros do velho Estado, querem culpar pela ascensão política do militarismo e da ultradireita os trabalhadores e estudantes que, arriscando as próprias vidas, enfrentaram nas ruas as PMs, a Força Nacional e, quando necessário, o Exército.

9

Segundo tal leitura, os protestos de 2013-14 teriam gerado o bolsonarismo ao rechaçar instituições e partidos do sistema, derrubando, no caminho, o governo de Dilma V. Roussef (muitos incluem na “análise” também a Operação Lava-Jato e o desmanche do Sistema Petrobrás).

Essa mistificação é propagada por medalhões da universidade e da juristocracia, que vendem como rigor analítico a verborragia acadêmica com que revestem sua autocomplacência interessada. Beneficiários e representantes dos vícios do Estado que aquela juventude questionou. Um desses cretinos chegou a atribuir aos protestos de 2013 as mortes por Covid-19.

Rotulam o rechaço a um sistema falido como “antipolítica”, palavra que melhor descreve o projeto existencial do lulopetismo para trabalhadores e jovens: abster-se de reivindicações e ficar em casa usufruindo de quinquilharias compradas a crédito. Deixar esse falso conforto para lutar por um país melhor, ampliando à força os sufocantes limites fixados pelo sistema e expondo-se nas ruas a bombas lacrimogêneas e cassetetes é política na melhor acepção.

Os detratores daquelas mobilizações tomaram, também, gosto pela expressão “ovo da serpente”, omitindo sempre quem o chocou.

10

Em 2001, F.H. Cardoso, mediante o Decreto 3.897, regulamentou a atuação das FFAA em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). De um lado, autorizou, ilegalmente, seu uso em qualquer situação “em que se presuma ser possível a perturbação da ordem” – isto é, em qualquer situação; de outro, ao menos, definiu que as atribuições delas seriam as da PM: apenas o policiamento ostensivo. Entre outras coisas, não podiam investigar, muito menos infiltrar agentes.

Em 2004 (1o governo de Luíz Inácio), a Lei Complementar 117, acrescentou à de nº 97 os artigos 17, 17-A e 18, conferindo às FFAA, inconstitucionalmente, “atribuições subsidiárias” de atuar na “repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional” mediante “apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução”. Graças a isso, e a pretexto de danos patrimoniais ou paralisação de transportes, criou-se margem para considerar legal (jamais constitucional) a espionagem militar contra militantes populares e o treinamento de policiais pelas FFAA.

Em 2014 (1o governo da senhora Roussef), o Ministério da Defensa e o Estado-Maior Conjunto das FFAA publicaram o manual MD-33-M-10, que rege a atuação das FFAA em operações GLO. Ali, elas são orientadas a manter com o Judiciário, o Ministério Público e as polícias “coordenação contínua, mesmo sem a existência de ameaça premente ou visualizada” (item 3.2.4.7, b). Polícias, Forças Armadas e a Abin são aglutinadas nos mesmos ambientes (centros de Comando e Controle e de Coordenação de Operações).

O manual determina também que “a atividade de inteligência deverá anteceder ao início da Op GLO, sendo desenvolvida, desde a fase preventiva, com acompanhamento das potenciais ações de perturbações da ordem” (4.2.2.3.2). Preconiza-se, em suma, a contínua tutela militar sobre a vida social e política.

Em seus dois primeiros mandatos (2003-10), Luís Inácio determinou a realização de 40 operações de garantia da lei e da ordem (GLO). FHC, responsável pela banalização também quantitativa desse recurso que a Constituição diz excepcional, 47 (Collor e Itamar, somados, haviam ordenado 5). Dilma decretou 27 e Temer,17. Com Bolsonaro, o número cai a 10.

15 das GLOs de FHC, porém, podem-se ter por justificadas, pois decorreram de greves de PMs, às vezes com características de motim – caso de apenas uma das ordenadas por Lula. O mesmo não se pode dizer das ocasiões em que Dilma (6 vezes), Temer (3) e Bolsonaro (1) recorreram ao Exército nessa situação, pois, em seus governos, já existia a Força Nacional, que poderia cumprir tal papel.

11

Ao mesmo tempo em que traziam, cada vez mais, as FFAA para o centro da cena, os governos petistas propiciavam a ascensão interna do que elas tinham de pior.

Não bastasse enviar ao Haiti, em 2004, as primeiras tropas brasileiras a atuar no exterior em 50 anos, o governo Lula entregou seu comando e a projeção daí advinda ao hoje – e graças a isso – notório general Augusto Heleno. Ex-ajudante de ordens do então ministro do Exército (1974-77) Sylvio Frota, ele se tornaria mentor do projeto presidencial de Jair Bolsonaro.

Embora não pesem contra Heleno acusações desse tipo, a tortura, narcotráfico, pistolagem, exploração do jogo e grilagem de terras urbanas são condutas que aproximam – tanto quanto o anticomunismo primário –  frotismo e bolsonarismo, duas gerações da escória militar associada a máfias policiais do mesmo tipo, sobretudo no Rio. A diferença é que o frotismo nunca conseguiu hegemonizar as FFAA. O bolsonarismo sim, e ainda levou junto as polícias.

Atribuir isso aos protestos de 2013, e não aos atos e omissões de quem governou o país nos 10 ou 20 anos que os precederam, é uma mistificação risível.


Notas:

¹ https://www.ecodebate.com.br/2013/10/21/leilao-do-campo-de-libra-a-maior-privatizacao-da-historia-brasileira/

² https://g1.globo.com/politica/noticia/2013/10/dilma-autorizou-exercito-atuar-no-leilao-do-campo-de-libra-diz-cardozo.html e https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2013/10/21/tentativa-de-invasao-a-area-do-leilao-do-pre-sal-deixa-ao-menos-2-feridos.htm

³ https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/5/25/brasil/4.html

4 https://g1.globo.com/rj/sul-do-rio-costa-verde/noticia/2018/11/27/greve-de-1988-30-anos-musica-documentario-e-monumento-tentam-manter-memoria-do-movimento.ghtml

5 https://revistas.ufrj.br/index.php/dd/article/view/32164

6 https://www.conjur.com.br/2023-jun-01/senso-incomum-coisa-hoje-ovo-serpente-estava-ali-20132

7 https://sul21.com.br/geral-1/2021/04/imbecilidades-por-wilson-ramos-filho/

8 https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/2014/mes02/md33-m-10-garantia-da-lei-e-da-ordem-2a-ed-2014-31-jan.pdf/view

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
Agora, mais do que nunca, AND precisa do seu apoio. Assine o nosso Catarse, de acordo com sua possibilidade, e receba em troca recompensas e vantagens exclusivas.

Quero apoiar mensalmente!

Temas relacionados:

Matérias recentes: