A chegada de Hitler ao poder em 30 de janeiro de 1933 foi respondida com um boicote a nível mundial promovido pelas organizações judaicas do mundo todo, deixando a economia alemã à beira do colapso. A resposta alemã chegou em 1º de abril, com a convocação de um boicote antijudeu que consistiu em pedir à população que não comprasse nas lojas cujos proprietários o fossem. Hitler se vê obrigado a interromper esse boicote, que estava contribuindo para piorar a estropiada economia da Alemanha. Mas nem tudo são más notícias para ele: a Federação Sionista Alemã não só está contra o boicote internacional contra o nazismo, como se mostra partidária de chegar a um acordo com Hitler para favorecer a emigração de judeus alemães para a Palestina. Chaim Weizmann, que depois será o primeiro presidente de Israel, é o encarregado de iniciar as conversações com os nazistas.
Em 13 de maio de 1933, o ministério alemão da Economia aprovou um projeto que havia negociado com o líder sionista Sam Cohen, mediante o qual se organiza a emigração à Palestina de alemães de origem judaica. Os candidatos deveriam dispor de ao menos 1.000 libras esterlinas em dinheiro, uma quantidade significativa para a época. A piada do acordo era que os migrantes não tirariam um marco [1] da Alemanha. O dinheiro que tivessem ficaria numa conta administrada por uma sociedade controlada pelos sionistas, a Hanotea, que se encarregaria de compensar essa cessão de dinheiro com moradia e terrenos na Palestina. Essa empresa se comprometia, ademais, a importar da Alemanha os produtos dos quais necessitasse no futuro, pagando-os com esse fundo que havia sido gerado pelos judeus migrantes. O valor do terreno e da casa que lhes dariam na Palestina não atingia sequer 50 % das mil libras. O resto ficava para a sociedade sionista.
Os termos do acordo provocaram o rechaço dos possíveis interessados. O fato de não poder levar dinheiro forçava os migrantes a um futuro agrícola que não lhes despertava a menor esperança e para o qual a imensa maioria não estava preparada. Além disso, as propriedades na Palestina permaneciam nas mãos da sociedade sionista, de modo que tampouco podam pensar em vender y refazer sua vida onde e como bem entendessem. A maioria dos alemães de origem judaica não eram camponeses e se incluíam no que chamaríamos de profissões liberais, operários e uma pequena porcentagem de comerciantes e empresários.
Esse rechaço levou Chaim Arlosoroff, outro líder sionista, a pactuar algumas melhoras que terminariam no definitivo acordo Haavara, que significa “transferência” em hebraico. A principal novidade consistia em que os migrantes poderiam recuperar na Palestina parte do dinheiro que possuíam na Alemanha, até um máximo de 4.000 libras. O acordo se operacionalizava através da sociedade anônima PALTREU (Sociedade fiduciária palestina para o assessoramento dos judeus alemães) e da empresa Haavara Ltd. Essas sociedades deveriam fazer suas transações através de dois bancos alemães (Wasserman e Warburg), um banco inglês (o Anglo-Palestine Bank) e um banco palestino estabelecido em Jaffa desde 1868, o Bank der Templer (Banco dos Templários).
Iván Gómez Avilés explica o modus operandi em seu livro Acuerdo Haavara, el pacto entre nazis y sionistas: “Os judeus que desejassem emigrar precisariam liquidar seu dinheiro nas contas da sociedade PALTREU, fosse no banco Wasserman ou no Warburg. Com esse capital, se compravam produtos alemães que seriam exportados principalmente para a Palestina, mas também a outros países. A sociedad Haavara Ltd. recebia a mercadoria e, uma vez vendida, os emigrantes recuperavam seu dinheiro depois de descontadas as comissões cabíveis em favor dos bancos e entidades que administravam as operações. Tal processo implicava a perdida do capital judeu que excedesse a quantidade-limite imposta pelo Governo alemão para poder deixar o país (4.000 libras) mas, apesar disso, dezenas de milhares de judeus tomaram parte no projeto”.
O Haavara, que entrou em vigor em agosto de 1933, tinha a virtude de dar às duas partes o que desejavam: aos nazistas, limpar a Alemanha de judeus, e aos sionistas, lançar as bases do futuro Estado judaico. Como se não bastasse, ambos faziam bons negócios. Além disso, o governo nazista serviu de escada aos sionistas para sua propaganda no exterior.
Dada a resistência da população alemã de origem ou religião judaica a deixar seu país, a federação sionista, única organização judaica legal, levou a cabo, com o apoio das autoridades nazis, uma intensa campanha de propaganda para convencer os judeus alemães das vantagens da emigração. Para isso, contaram com seu órgão de imprensa, o Jüdische Rundschau (Revista Judia [2]), o único periódico judeu permitido pelos nazis, que multiplicou sua tiragem durante aqueles anos. A campanha a favor da emigração também se fez presente nos meios de comunicação nazistas. Em maio de 1935, o jornal oficial da SS, Das Schwarze Korps [3], proclamou seu apoio ao sionismo em um editorial que aparecia na primeira página: “Talvez não esteja tão longe o tempo em que a Palestina poderá receber de novo seus filhos que estão longe dela há mais de mil anos. A eles, nossos melhores votos, junto com a boa vontade oficial”. A citação é do trabalho “O sionismo de Hitler”, do historiador Mark Weber.
Não só a propaganda mediática estava a favor do Haavara. Os sionistas tiveram apoio material para fomentar e organizar a “transferência”. Francisc Nicosia conta em O Terceiro Reich e a questão palestina: “Os sionistas foram alentados a levar sua mensagem à comunidade judaica, coletar dinheiro, exibir filmes sobre a Palestina e, de modo geral, educar os judeus alemães sobre a Palestina. Houve uma considerável pressão para ensinar os judeus da Alemanha a deixar de se identificar como alemães para despertar neles uma nova identidade nacional judia. Numa entrevista depois da guerra, o ex-dirigente máximo da Federação Sionista da Alemanha, dr. Hans Friedenthal, resumiu a situação: “A Gestapo fez de tudo naquela época para promover a emigração, particularmente para a Palestina. Recebemos muitas vezes sua ajuda quando solicitávamos algo a outras autoridades acerca da preparação para a emigração.”
Segundo Weber, os sionistas também contaram com ajuda material: “Em cooperação com as autoridades alemãs, os grupos sionistas organizaram, ao longo da Alemanha, uma rede de uns quarenta acampamentos e centros agrícolas onde os potenciais colonos seriam treinados para sua nova vida na Palestina”. Ajuda material e algo mais, escreve Weber: “O serviço de segurança de Himmler [4] cooperou com o Haganah, a organização militar clandestina sionista na Palestina. A agência da SS pagou a Feivel Polkes, oficial do Haganah, por informação sobre a situação na Palestina e pela ajuda em direcionar a emigração judia a esse país. Simultaneamente, o Haganah se manteve bem informado sobre os planos alemães por um espião que conseguiu introduzir no escritório principal das SS em Berlim. A colaboração Haganah-SS incluiu entregas secretas de armamento alemão aos colonos judeus para usá-las em confrontos com os árabes palestinos”.
Embora o acordo tenha vigorado até 1941, sua operatividade morreu quando a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha, depois que esta invadiu a Polônia em 1º de setembro de 1939. Os britânicos tinham a chave que permitia ou impedia a entrada de estrangeiros na Palestina, sua colônia desde 1917, assim como de seu número e condições. Nos anos do acordo Haavara, haviam estabelecido uma cota de cinco mil judeus por ano para contentar os sionistas – aos quais haviam prometido permitir que construíssem seu “lar judaico” – sem perturbar excessivamente a população autóctone, que já havia protestado em várias ocasiões durante os anos 20, e, sobretudo, os árabes, com os quais agia como potência colonial.
Mas a cota de cinco mil tinha uma pequena fresta: as autoridades britânicas não contabilizavam aqueles que chegassem com um capital superior a 1.000 libras, uma pequena fortuna naqueles anos. Isso permitiu aos sionistas levar à Palestina, nesses anos, o dobro dos judeus teoricamente permitidos, além de um capital considerável. Dentro do número oficial, entravam milhares de judeus jovens – “o melhor material biológico”, em palavras de Adolf Eichmann – , de escassos recursos, muitos de origem polonesa, garantindo uma mão-de-obra fiel. Por fora da cota, ingressavam os judeus endinheirados, o que gerou um capital importante para comprar terrenos dos latifundiários turcos e iniciar médias indústrias. Em 1931, a população judia na Palestina chegava a 174.000, o que dá uma ideia da importância numérica dos 60.000 que chegaram graças ao acordo Haavara. Uma das medidas que a Agencia Judaica Palestina tomou foi contratar somente judeus, o que provocou fortes protestos da população palestina, protestos que os britânicos sufocaram com ajuda parapolicial sionista.
A Grã-Bretanha havia apoiado os sionistas desde a Primeira Guerra Mundial, na qual milhares de judeus lutaram na Legião Judaica ao lado dos britânicos. Em 1917, o governo inglês enviou uma nota a Rothschild [5] prometendo-lhe criar um Lar Nacional Judaico na Palestina. Finalizada a guerra, dissolveram a Legião, contrariando os desejos dos líderes sionistas, que a viam como o germe de seu exército. O freio à imigração a partir de 1939 levou ao enfrentamento armado entre os sionistas e os britânicos. Em novembro de 1940, o Pátria, um barco que percorrera a rota Marselha–Haifa, estava atracando nesse porto palestino. Os britânicos haviam embarcado 1.900 judeus imigrantes ilegais com a ideia de levá-los à ilha africana Maurício. Uma organização sionista pôs uma bomba no barco para impedir que zarpasse. Morreram mais de duzentos migrantes. A “prestigiosa organização sionista israelense Yad Vashen diz que a bomba foi colocada “pelos combatentes da resistência judaica”.
O acordo Haavara foi uma jogada propagandística importante para os nazistas. Hitler o utilizou em um discurso em setembro de 1936: “Na Inglaterra, as pessoas afirmam que seus braços estão abertos para dar as boas vindas a todos os oprimidos, especialmente os judeus que se foram da Alemanha… Mas seria melhor se a Inglaterra não condicionasse seu grande gesto à posse de £ 1.000. […] Assim, nós, os selvagens, demonstramos, mais uma vez, ser melhores seres humanos. E, agora, somos ainda mais generosos e damos ao povo judeu uma porcentagem muito mais alta que a que têm em possibilidades de vida, e maior que a que nós mesmos temos.”
O acordo de colaboração nazi-sionista se fez acompanhar por uma curiosa viagem de dois casais à Palestina: um nazista de estirpe e sua esposa, de um lado, e um sionista profissional y sua esposa, de outro. Tudo com grande profusão midiática. O barão Leopold von Mildenstein, membro da nobreza austríaca, nazista de carteirinha desde 1929 e oficial do setor de segurança das SS, e sua esposa, viajariam acompanhados pelo funcionário da Federação Sionista da Alemanha, Kurt Tuchler, e sua mulher, que os levariam para conhecer as colônias sionistas da Palestina: dois pares de pombinhos em viagem de lua de mel depois do casamento Haavara.
Tão encantado estava o barão que ficou seis meses. Iniciou a viagem de trem de Hamburgo a Marselha acompanhando um grupo de jovens pioneiros sionistas que iam se instalar na Palestina. Quando de seu regresso à Alemanha, o jornal berlinense Der Angriff (O Ataque), um dos principais meios de comunicação nazistas, criado e controlado pessoalmente por Joseph Goebbels, publicou doze reportagens ilustradas sobre sua viagem. Que exemplo poderia ser melhor para desautorizar as acusações no exterior que este alarde de irmandade entre nazis e sionistas? Como se não bastasse, Goebbels teve a ideia de cunhar, como recordação, uma moeda com a estrela de David e a legenda “um nazista viaja à Palestina”, numa face, e uma suástica e a inscrição “e conta em Angriff”, na outra. Ao voltar da Palestina, o barão Mildenstein foi nomeado oficial da Agência Judaica do Reich, a judenreferent, com a missão de promover a emigração dos judeus alemães para a Palestina. O cargo de Mildenstein seria ocupado por Adolf Eichmann em 1939. Não é de estranhar que, quando Eichmann foi sequestrado, julgado e executado em Jerusalém, em 1960, Mildenstein não perdeu tempo em reivindicar publicamente imunidade, alegando que era agente da CIA. Ninguém o desmentiu.
A boa sintonia entre nazis e sionistas se manteve por toda a década, apesar das sucessivas medidas contra os judeus, entre elas as Leis de Nüremberg de setembro de 1935, que foram aplaudidas nas páginas da Jüdische Rundschau. Uma das razões do apoio talvez fosse o fato de essas leis permitirem às organizações sionistas utilizarem sua bandeira, que depois seria a de Israel, enquanto se proibia os alemães de origem ou credo judaico utilizar a bandeira alemã. O Jüdische publicou um comentário do chefe da Agência Alemã de Notícias no qual explicava que, com as Leis de Nüremberg, Hitler estava atendendo às demandas do Congresso Sionista Internacional, reunido em Lucerna semanas antes, no qual haviam reivindicado ser considerados um povo distinto. Não deveríamos estranhar essa sintonia entre nazis e sionistas, se levamos em conta que uma medida como a proibição dos casamentos mistos era comum a ambos e, de fato, continua vigente em Israel. Nem sequer o pogrom [6] da noite dos cristais, em 1938, no qual foram assassinados centenas de judeus, pôs fim à cooperação. Muito ao contrário, tais eventos serviram de lição àqueles alemães de origem ou religião judaica que insistiam em continuar aferrados a sua identidade alemã, para escândalo de uns e de outros.
O acordo Haavara é um grande desconhecido do grande público, apesar da importância que teve na hora de assentar as bases d futuro Estado de Israel. Não se realizaram grandes produções cinematográficas de Spielberg sobre o assunto. Tampouco vimos extensas reportagens na televisão, rádio ou imprensa escrita. Esse silêncio não é uma casualidade. Interessa aos sionistas, ao governo de Israel e a seus aliados: Estados Unidos e a União Europeia.
Embora tentem mantê-lo oculto, os sionistas, quando não têm outra alternativa, defendem o acordo alegando que permitiu salvar as vidas de milhares de judeus que, de outro modo, teriam acabado nas câmaras de gás. Não é um argumento válido porque, nesse momento, nem os nazis sabiam o que fariam nove anos depois. E se, por arte de magia, os sionistas o soubessem, mais criminosa seria sua colaboração. A questão é outra: como bons nacionalistas, os sionistas colocaram sua luta nacional acima dos direitos civis dos alemães. Não lhes importou que os nazis tivessem desatado uma perseguição feroz contra os militantes de esquerda: não era contra eles. Não eram judeus os primeiros a ser levados para os campos de concentração nazis e assassinados. Eram, fundamentalmente, comunistas e socialistas. Depois viriam delinquentes, pessoas com deficiência, homossexuais, ciganos… Até 1939, os judeus que sofreram a repressão hitleriana sofreram-na pelo fato de ser de esquerda, não por sua condição de judeus. Mas essa é outra história, tão desconhecida como a do acordo Haavara. Não obstante, podemos imaginar quanto mal fez à população alemã ver como nazis e sionistas justificavam a expulsão dos alemães de origem ou credo judaico. Quando as massas gritavam “judeus, vão para a Palestina!” para expulsar os judeus poloneses, ou na noite dos cristais, não faziam mais que repetir o que lhes fora inculcado.
Definitivamente, o acordo Haavara foi para os sionistas a grande oportunidade que lhes apareceu para “transferir” à Palestina milhares de judeus e milhões de libras, para estabelecer os alicerces do futuro Estado judeu. Como bons nacionalistas [7], nazis e sionistas estavam de acordo no fundamental: ambos se consideravam uma espécie à parte (a raça superior ou o povo escolhido), e ambos estavam convictos de que os judeus não deviam ser parte do povo alemão.
O texto, publicado originalmente no portal Mundo Obrero, foi traduzido pelo colaborador de AND, Henrique Júdice.
O texto reflete a opinião do autor.
Notas:
[1] Moeda alemã anterior ao euro (nota do tradutor).
[2] A Jüdische Rundschau foi relançada em 2014 pelo empresário judeu alemão Rafael Korenzecher e continua a ser publicada, agora em Israel. Nestes dias nos quaiso exército israelense está massacrando civis – entre os quais, milhares de crianças – em Gaza, esta é uma de suas manchetes: “Ataque a Israel. A política de apaziguamiento da Alemanha ante o Hamás”. E assim começa o editorial assinado por Korenzecher, o dono: “Em 7 de outubro, o mundo foi testemunha de um pogrom de judeus sem precedentes desde 1945”. A memória do Holocausto a serviço do genocídio palestino! Nada incongruente, se pensarmos que suas páginas serviram, em 1935, para aplaudir as Leis de Nuremberg. Pode-se consultar na Internet (nota do autor).
[3] “Os Corpos Negros”, alusão à cor da farda das SS (nota do tradutor).
[4] Heinrich Himmler, um dos mais destacados dirigentes nazistas. Naquele momento, comandante-em-chefe das SS (nota do tradutor).
[5] A alusão é a Lionel Walter Rothschild, então detentor do título de barão que a Inglaterra outorgou a um ramo dessa importante dinastia de banqueiros (nota do tradutor).
[6] Palavra que historicamente designa a violência em massa contra judeus na Europa (nota do tradutor).
[7] Como maus nacionalistas, em verdade. O nacionalismo não implica necessariamente o supremacismo étnico, e nem mesmo a identificação entre a nação e uma única etnia. Essas são características usuais nos nacionalismos imperialistas, mas, via de regra, ausentes dos nacionalismos de libertação anticolonial (nota do tradutor).