No dia 12 de abril de 1972 ocorreu o primeiro enfrentamento armado da Gloriosa Guerrilha do Araguaia. Essa heroica experiência travada por 69 comunistas, militantes do Partido Comunista do Brasil, e milhares de massas camponesas representa, até os dias de hoje, o estágio mais avançado da luta do proletariado pela revolução no país.
O grande dirigente comunista Pedro Pomar, foi quem de forma mais acertada avaliou a experiencia do Araguaia, extraindo valiosas lições de sua derrota.
Publicamos a seguir este importante balanço apresentado pelo camarada Pedro Pomar ao Comitê central do Partido em meados de 1976 e que depois foi retomado em dezembro deste mesmo ano, quando o próprio Pomar, Angelo Arroyo e João Batista Franco foram brutalmente assassinados no chamado ”Massacre da Lapa”
Sobre o Araguaia
Pedro Pomar
Camaradas:
O debate, ao nível do CC, da experiência da luta guerrilheira do Araguaia dará, segundo penso, os resultados que todos almejamos. Sem dúvida estamos tardando demasiado a tirar as lições fundamentais que dela dimanam. Ás condições políticas atuais, de desenfreada perseguição aos patriotas, bem como nossa inexperiência e outras debilidades, vêm dificultando e retardando o esforço nesse sentido. Mas, se quisermos ficar à altura de nossos deveres, temos de empreender, sem maiores dilações, a avaliação crítica e autocrítica dessa luta.
O informe do camarada J. serve de base para a discussão. Agora compete a cada um, conforme sua capacidade, apreciar a verdadeira significação, para o movimento popular e para o Partido, dos resultados dessa façanha, do imenso sacrifício de um pugilo de companheiros. No Brasil, o problema do caminho revolucionário para livrar o povo da exploração e da opressão tem sido dificílimo. E a determinação de palmilhá-lo tornou-se a pedra de toque das diferentes forças revolucionárias, em especial das marxistas–leninistas. Em torno do caminho, da concepção e do método da luta armada sempre surgiram grandes divergências. O caráter revolucionário de nosso Partido, sua linha política, seu comportamento, sempre foram aferidos pela posição assumida em face da luta armada e pela maneira de procurar concretizá-la. A fidelidade dos marxistas-leninistas a essa ideia e o esforço para fazê-la triunfante os distinguem de todos os demais agrupamentos populares. Isso determinou a ruptura com os revisionistas contemporâneos, principalmente com o bando de Prestes. Não por acaso, a bandeira da insurreição popular de novembro de 1935 serve atualmente de parâmetro para a atividade dos comunistas. É essa bandeira que hoje devemos erguer com maior força e audácia, se quisermos libertar definitivamente o povo brasileiro e nos tornar os verdadeiros dirigentes da revolução do país.
A experiência do Araguaia, pelo que entendi, apresenta aspectos bastante positivos. Ressalto, antes de tudo, a firme decisão do CC em realizar a tarefa que aprovou, de implantar, em algumas áreas do mais remoto interior brasileiro, dezenas de camaradas que demonstraram disposição de suportar todos os sacrifícios, a fim de prepararem e desencadearem a luta armada. O devotamento desses camaradas e o heroísmo de que efetivamente deram provas são motivo de legitimo orgulho para o nosso Partido, merecem justa e devida valorização. Destaco também a escolha da área, que nas condições atuais do país se revelou propícia â nossa estratégia. Apesar de sua baixíssima densidade demográfica e de não possuir nenhuma tradição política nem organizativa de massas, oferecia excelente posição para a defesa. Considero igualmente importante que, após o surgimento da luta armada, os camaradas da guerrilha se tivessem empenhado na conquista das massas e conseguido sensibilizá-las num grau elevado, ganhando sua simpatia e mesmo o apoio ativo de alguns camponeses pobres. Mais significativo ainda foi o fato de terem organizado alguns núcleos da ULDP na base de um programa que contém as reivindicações mais sentidas dos moradores da região. Tanto esse programa como a organização dos referidos núcleos refletem o esforço para vincular-se às massas e fazê-las jogar papel político, para mobilizá-las no sentido de sua emancipação. Além disso, os camaradas preocuparam-se em fazer propaganda das ideias da luta pela liberdade, pela independência nacional, propondo a união do povo brasileiro para a derrubada da ditadura militar-fascista. Dessa forma, procuraram interpretar os anseios de amplas forças sociais e políticas no plano nacional, não se constituindo, portanto, como mais um grupo sectário, isolado, ou regionalista. E ao se sustentarem em armas por um período tão longo, apesar da superioridade e da ferocidade do inimigo, provaram que sua capacidade combativa, seu nível de consciência e de organização e sua determinação estavam muito elevados. Deram, assim, a medida do que será possível realizar a fim de ampliar e levar adiante a resistência armada popular, de acordo com a orientação do Partido. E isto tudo feito com armas precárias, com recursos pequeníssimos. A experiência do Araguaia representou, inegavelmente, uma tentativa heroica para criar uma base política e dar continuidade ao processo revolucionário, sob a direção de nosso Partido. Tinha em vista formar uma sólida base de apoio no campo e desenvolver o núcleo de um futuro exército popular, poderoso, capaz de vencer as forças armadas a serviço das classes dominantes e do imperialismo ianque.
Não obstante, continua sendo difícil para nós avaliar todo o significado da luta armada no Araguaia. Qual de fato seu alcance histórico? Deu os resultados que dela se esperava? Compensou o sacrifício dos camaradas que lá morreram, dos melhores que contávamos?
Onde quer que a notícia do notável feito tenha chegado, suscitou admiração, simpatias, apoios. Em nossas fileiras acendeu entusiasmos, esperanças. Éque a luta armada do Araguaia testemunhava de modo eloquente que o PC do Brasil é o abandeirado da liberdade e da independência nacional, inimigo ferrenho da ditadura militar-fascista, consequente defensor da democracia para as massas populares. Entre as correntes patrióticas do país e os nossos amigos do estrangeiro, o acontecimento foi saudado com júbilo, com manifestações de expectativa favorável. Quanto às repercussões entre os inimigos, basta ver como se mobilizaram para liquidar no nascedouro a luta armada, impedir qualquer divulgação sobre a guerrilha e perseguir sem piedade todos os que a auxiliassem.
Esse, digamos, o sentido mais geral, político, do significado do Araguaia. Não há dúvida, teve o valor de uma iniciativa histórica. Representou um esforço abnegado, de sangue, para abrir caminho ao impasse em que vive os pais, indicando ao povo os rumos de sua luta.
Entretanto, é preciso enfrentar a dura realidade. A luta iniciada a 12 de abril de 1972, com todo o heroísmo que conhecemos, e que se manteve organiza da mente até fins de 1973 ou princípios de 1974, deixou praticamente de existir como tal a partir desse período. A terceira campanha do inimigo, de princípios de outubro de 1973, conseguiu em menos de três meses dispersar os destacamentos guerrilheiros, dizimar a maior parte dos combatentes e até mesmo atingir e desmantelar a Comissão Militar. A direção do Partido nas cidades perdeu o contato com os camaradas do sul do Pará e atualmente não sabe quantos deles sobreviveram, ou se sobreviveram.
Há dois anos, o CC e o Partido se acham em compasso de espera, confiando que alguma notícia ou informação venha desfazer as dúvidas sobre o destino dos camaradas que se encontravam no Araguaia, sobre o fim ou não da luta guerrilheira. Qual é, verdadeiramente, a situação da guerrilha atualmente?
O camarada J. reconheceu que a guerrilha sofreu uma derrota, mas temporária. Supõe, ao que parece, possível retomar a luta iniciada em abril de 1972, se bem que não esclareça se com os mesmos elementos e fatores, ou se com outros, novos. Julgo que o camarada J. não tem razão. Se examinarmos a derrota do ponto de vista dos objetivos estratégicos e táticos traçados pelo Partido e justificados pelo camarada J., a derrota do Araguaia não pode ser considerada temporária. Que objetivos eram esses? Primeiro, conflagrar a área; segundo, libertá-la; terceiro, convertê-la, com o tempo, numa sólida base de apoio. Portanto, não há como fugir da amarga constatação: ao cessar a resistência organizada, ao não ter alcançado nenhum dos objetivos a que se propôs, a guerrilha, apesar dos resultados positivos apresentados, sofreu uma derrota completa, e não temporária. Infelizmente, o CC tem de aceitar a dura verdade de que o resultado fundamental e mais geral da batalha heroica travada por nossos camaradas foi o revés. E mesmo que consigamos retomar o processo armado iniciado em 1972, o lapso se tornou tão grande, as condições se apresentam de tal modo distintas, etc, que essa retomada não será no mesmo nível nem se identificará com o processo anterior, embora os personagens possam ser os mesmos — mata, massas, Partido e tropas inimigas. É preciso, pois, admitir praticamente o início de outro processo, conquanto beneficiado pela experiência anterior, dolorosa e que queremos seja útil.
Que causas foram responsáveis por essa derrota? Como analisa outros aspectos da preparação da luta o camarada J.? A meu ver, o informe do camarada J. não responde cabal e satisfatoriamente a isso. Em certos pontos é, inclusive contraditório. Diz que o principal erro foi ocasionado pelo fato de a guerrilha haver concentrado suas forcas, ao invés de dispersá-las. Ou, ainda, de não ter procurado expandir a base guerrilheira, e sim restringi-la. E isto depois de a guerrilha haver conseguido êxitos da ordem de 100% até outubro de 1973. Acrescenta que os golpes sofridos durante a terceira campanha poderiam ter sido evitados se a Comissão Militar não cometesse as faltas mencionadas. Adianta também que manifestou-se subestimação do inimigo, pois a tática usada por este nos surpreendeu. Aliás, esclarece o camarada J., quando o inimigo mudou de tática, infligiu-nos a denota. Quer dizer, enquanto o inimigo aprendia e adaptava-se à situação criada, os destacamentos guerrilheiros não procederam da mesma forma. Ao referir-se ao trabalho de preparação, inclusive em outras áreas subordinadas ao CC diretamente, explica que já houve um relato objetivo sobre o citado trabalho, deixando de formular qualquer crítica ou de esclarecer por que essas áreas não corresponderam ou não foram levadas em conta. Ao tratar do aspecto propriamente político, assegura apenas que o desencadeamento da luta armada se deu em condições favoráveis porque aparecemos como vítimas. Fica nisso. Não analisa, sequer sumariamente, a conjuntura nacional de princípios de 1972, que não era nada favorável, nem examina a situação do Partido, tanto naquela fase como posteriormente. Entre parênteses, conviria falar do que realizou o conjunto do Partido, o que fez também cada um de seus militantes em apoio à preparação e à luta no Araguaia. Isto requereria talvez um informe especial, pois não será suficiente afirmar que o Partido não se encontrava à altura nem que o inimigo nos colheu de surpresa com seu ataque, ou que se fez o máximo que era possível em solidariedade aos camaradas em armas. O fato é que o inimigo desferiu pesadíssimos golpes sobre as organizações partidárias das cidades e blasonou ter, assim, isolado grandemente a guerrilha. Nossas iniciativas, embora justas e oportunas, foram muito limitadas, aquém mesmo das possibilidades e necessidades. Quem sabe, num balanço mais completo, com a contribuição do conjunto, o papel do Partido venha a ser ainda melhor avaliado? O camarada J. tampouco comenta a situação do movimento camponês, nem mesmo o do sul do Pará, o que nos parece muito significativo. Finalmente, entre os erros e deficiências que, após o início da luta, se tornaram mais evidentes, o camarada J. enumera o da não-construção de refúgios, o do não correto aproveitamento dos elementos de massa na guerrilha, o da falta de uma rede de informações, o da precariedade de uma rede de comunicações, o da ausência de Partido na periferia, e outros.
Ao abordar de passagem os motivos desses erros e deficiências, o camarada J. diz que os mesmos “se devem a algumas concepções em nosso meio e à nossa falta de experiência militar”. Nessas concepções incluiu também a subestimação do inimigo. Entretanto, nada esclarece sobre o tipo de tais concepções, sua natureza, sua origem. Simplesmente ignora o afã, manifestado por mais de um camarada, de saber por que foram cometidos esses erros, que não podem ser atribuídos à Comissão Militar nem a questões de tática. Por isso, o camarada J. diz que a derrota foi temporária e que a mesma não desqualifica o caminho trilhado na preparação e no desencadeamento da luta armada no Araguaia. Ao contrário, a seu ver, a experiência do Araguaia, no fundamental, é válida; o Partido deve prosseguir trabalhando nessa base, dadas as atuais condições brasileiras. Nela admite somente ligeiras variações, embora concorde com a possibilidade de virem a aparecer novas experiências no esforço de efetivar a guerra popular.
Examinemos mais detidamente essas opiniões expendidas pelo camarada J. Segundo penso, a concepção, a ideia geral, que presidiu a preparação e, a seguir, a deflagração da luta, bem como a própria luta no Araguaia, foi a de, a partir de um dado momento, julgado o melhor pela Comissão Militar, converter o núcleo de camaradas implantados e organizados em destacamentos guerrilheiros, no estopim de um movimento armado que se expandiria paulatinamente e abarcaria, ao fim e ao cabo, todo o país. Baseados nessa concepção é que trabalhamos desde 1966-67. A coisa começou pela escolha de áreas adequadas onde seriam fixados os camaradas, que para lá se dirigiam voluntariamente, mas devidamente selecionados e advertidos. A princípio houve empenho para o trabalho de implantação em três áreas contíguas, mas por motivos de segurança, de falta de confiança, ou por outros motivos, a preparação acabou limitada a uma só área, cujo fundo, no entanto, era imenso, praticamente assegurando tranquilidade quanto à retaguarda. Para essa área tudo convergiu, tudo se subordinou. Nela seriam colocados, cuidadosamente, os camaradas adredemente escolhidos, mas voluntários. A quantidade do contingente fixado sempre foi mantido em segredo. Mediante o treinamento militar intensivo e prioritário, o conhecimento do terreno, a capacitação ideológica e política, o estudo dos problemas locais, etc., esses camaradas se transformariam, num prazo determinado (de acordo com o critério da Comissão Militar), num pequeno agrupamento guerrilheiro — célula-máter do exército popular, do fortalecimento do Partido, da libertação do país, etc. A configuração desse agrupamento já correspondia à de um exército em miniatura, dirigido pela Comissão Militar do CC, a qual se deslocara para a área, e nela concentrara sua atividade. Em relação às massas locais, o critério foi o de travar amizade com elas, conhecer seus problemas, prestar-lhes assistência. Cada camarada devia aparecer como pessoa amiga, séria, trabalhador, mas que não falava por nada do mundo em política ou coisa que o valha. O trabalho dito de massas consistia em servir ao povo por meio de assistência médica e farmacêutica, da ajuda dos mutirões e em outras atividades desse tipo. Na medida em que a situação dos moradores era estudada e seus problemas conhecidos, tinha-se em vista formular um programa que, no entanto, só devia ser dado ao conhecimento do povo e do país após a deflagração da luta, como aliás aconteceu. Nem sequer a Comissão Executiva dele soube de antemão, dado o estrito segredo em que era mantido o trabalho na área. Quanto ao Partido, como organização, aparecia formalmente através do trabalho da Comissão Militar. Nem na periferia foi estruturado, muito menos na área, por precaução. Os comunistas que lá estavam ficaram enquadrados militar mente e deviam, antes de tudo, preocupar-se com sua preparação para se transformarem em guerrilheiros, combatentes. No âmbito nacional, cabia ao Partido principalmente selecionar militantes e quadros destinados à guerrilha na área prioritária. Não foi fácil enviar esses militantes, atender os insistentes pedidos da Comissão Militar e preencher o número de camaradas julgado ideal. Apesar disso, houve organizações regionais que fizeram o máximo para cumprir seu dever, já que o fundamento da argumentação era de que do cumprimento dessa tarefa dependia o futuro do Partido. Em princípios de 71, quando a Comissão Militar julgou estar bem próximo o momento da explosão da luta (propagou-se a imagem da mulher gestante que ao cabo de 9 meses deve parir a criança), o CC reuniu-se e adotou uma série de medidas relacionadas com o desencadeamento da luta armada para curto prazo. Entre as mais importantes dessas medidas, houve a que decidiu atribuir aos companheiros dirigentes que se encontravam na área do Araguaia (então só conhecida como “prioritária”) a tarefa de criar condições para lá instalar o resto da direção que permaneceria nas cidades enquanto não houvesse as referidas condições. A parte do CC nas cidades devia dar o máximo de apoio ao trabalho desenvolvido pela direção da área prioritária. As comunicações entre as duas direções dependeriam, como dependeram, da iniciativa e da responsabilidade da Comissão Militar. Em suma, tudo se condicionou ao êxito da luta armada que se preparava no Araguaia. Do ponto de vista político, os motivos e a decisão para o desencadeamento da luta também ficariam sob a responsabilidade da Comissão Militar. As Forças Guerrilheiras seriam o braço armado do Partido em desafio à ditadura militar-fascista. A bandeira política, embora de amplo sentido democrático e libertador, devia ser arvorada assim que se iniciasse a luta, que se daria por meio de uma ação de repercussão nacional. As contradições sociais e políticas da área, as motivações locais, deveriam apenas respaldar a ação nacional; serviriam para atrair as massas da área e incorporá-las à luta, nó processo.
Repito: essa, em síntese, me parece ter sido a concepção que presidiu a preparação e terminou sendo aplicada na luta armada do sul do Pará. Mas, a partir de abril de 1972, ou pouco antes, que aconteceu? Apesar de todo o sigilo da preparação, esta foi denunciada e descoberta. O inimigo resolveu imediatamente liquidar os núcleos guerrilheiros através de uma investida de surpresa. A eventualidade estava prevista. Como, porém, reagiu a Comissão Militar? O camarada J. coloca a questão em termos de opção, entre abandonar a área e resistir. A opção foi pela resistência. Isto foi bom, acrescenta o cam. J., porque aparecemos como vítimas. Mas não esclarece quais os objetivos imediatos e futuros perseguidos por essa resistência. E não o faz porque tais objetivos estavam de há muito fixados. Quero dizer que, na realidade, essa resistência já havia sido decidida com antecedência, decorreu de toda a concepção do trabalho realizado: do número de elementos dispostos na área, de sua organização, do plano geral de luta. A concentração das forças e a centralização do comando eram parte integrante e fundamental dessa concepção. Em virtude de tal preparação e da ideia política predominante, dificilmente a Comissão Militar poderia recorrer, por exemplo, a outra opção, ou mesmo a uma forma de luta como a preconizada no documento da Guerra Popular para os propagandistas armados. No entanto, agora o cam. J. reconhece que o principal erro da guerrilha consistiu em não ter dispersado seus grupos. Mas isto importa num erro de princípio e não de tática, secundário. O cam. J. viu-se obrigado também a concordar que era grande a quantidade de elementos combatentes em relação ao terreno e à massa (70 combatentes para uma área de 6.500 km2 e de população rarefeita). E afirma que foi um erro tático (só tático?) manter forças concentradas numa área bem menor, ao invés de dispersá-las. Explica que isso ocorreu pela necessidade de consolidar o trabalho de massas em vista de o Exército poder voltar a qualquer momento. Era “indispensável ter o pessoal à mão”. Tal concentração foi agravada pela decisão da CM de fundir os três destacamentos. Mesmo assim, não fica claro o verdadeiro sentido dessa premência em “consolidar o trabalho de massas”.
Apesar dessas constatações e da derrota sofrida, o cam. J. dá como aceita a concepção que prevaleceu na luta do Araguaia. Pondera que devemos continuar trilhando-a. Sinceramente, discordo dessa opinião. Certamente, como já disse, a experiência do Araguaia tem aspectos de valor que devem ser sistematizados e aproveitados. O espírito de luta, heroísmo mesmo, o esforço para adaptar-se às condições do meio, a capacidade de resistência, precisam ser salientados e devidamente estimados, servem como exemplo. Nosso Partido sempre se orgulhará dessa luta, do sacrifício dos camaradas que lá tombaram, tentando abrir caminho para a vitória de nossa causa.
Mas para determinar a validade de uma experiência isso apenas não basta. O fundamental, no caso concreto e como já ficou esclarecido em documentos relacionados com a guerra de guerrilhas, é a sobrevivência e o desenvolvimento da mesma. E isto depende antes de tudo da incorporação das massas à guerrilha, de estas fazerem sua a causa, a bandeira levantada pelos guerrilheiros. Nessa determinação devemos contar, naturalmente, com erros, com fracassos, com perdas terríveis. Em certa medida, as derrotas e os erros serão inevitáveis; mas poderemos sem dificuldades avaliar seu resultado político (e/ou sua sobrevivência) pelo nível de incorporação das massas, por seu apoio ativo à luta guerrilheira. Ora, exatamente é com essa dificuldade que nos deparamos ao tratar da experiência do Araguaia. O número de elementos de massas ganho para a guerrilha foi insignificante, principalmente se considera como um êxito formidável o tempo de duração da luta armada. Mesmo assim, não se soube trabalhar com esses elementos. Também a atividade política dos núcleos da ULDP não é esclarecida. Tudo leva a crer que a guerrilha se iniciou como um corpo a corpo dos comunistas contra as tropas da ditadura militar. E assim continuou quase todo o tempo. Aí reside, a meu ver, o maior erro, o mais negativo da experiência do Araguaia. Pois a conquista política das massas não pode ser efetuada só depois da formação do grupo guerrilheiro. Tampouco este deve ser constituído única e exclusivamente, mesmo que seja apenas no princípio, de comunistas. E não se diga que a orientação contida nos documentos e resoluções do Partido não seja cristalina a respeito. Tanto pela letra, como pelo espírito, os documentos partidários essencialmente dirigidos contra as teses pequeno-burguesas e foquistas, indicam, sem margem de dúvida, que: 1) a guerra popular é uma guerra de massas; 2) a guerrilha é uma forma de luta de massas; 3) para iniciá-la, “mesmo que a situação esteja madura, impõe-se que os combatentes tenham forjado sólidos vínculos com as massas”; 4) a preparação “pressupõe o trabalho político de massas”; 5) os três aspectos — trabalho político de massas, construção do Partido e luta armada — são inseparáveis na guerra popular; 6) o Partido, isto é, o político, é o predominante desses aspectos; 7) numa palavra, o trabalho militar é tarefa de todos os comunistas e não apenas de especialistas.
A experiência contrariou frontalmente essa orientação sobre a guerra popular. Sob o fundamento de que nas atuais condições brasileiras é impossível criar a base política antes de se forjar e acionar o dispositivo militar, o braço armado do povo; alegando-se impossibilidade de ganhar elementos de massa para a guerrilha antes de deflagrar a luta armada e que, portanto, o núcleo guerrilheiro deve ser organizado de início só com comunistas, enveredou-se pelo caminho que levou aos resultados que estamos discutindo. A vida, porém, encarregou-se de mostrar que esse tipo de preparação, assim como a organização de grupos guerrilheiros só de comunistas, não permitirão sua sobrevivência nem seu desenvolvimento. Por mais conspirativa que venha a ser a preparação, o inimigo poderá descobri-la “antes da criança nascer”; por mais heroicamente que se comportem os combatentes comunistas, se estiverem isolados das massas, sem seu apoio ativo, serão batidos; e por mais eficiente que seja a direção militar, com tal concepção será derrotada. Por isso, a orientação seguida no Araguaia tem de ser modificada em suas linhas essenciais.
Ao invés de se considerar que só será viável o trabalho de preparação à base dessa concepção, o certo é primeiro realizar o trabalho político, procurar, através de uma ação planificada, cuidadosa, paciente, clandestina, e tendo em conta o movimento camponês real, criar a base de massas necessária para desencadear a luta. Afirmar que esse trabalho, no momento atual, por causa do aumento de vigilância do inimigo, não é possível, me parece falso. Seria o mesmo que concluir ser o trabalho de massas em geral, bem como a construção do Partido, sob as condições da ditadura militar-fascista, também impraticável. Mas esta conclusão ninguém a aceita entre nós, por absurda.
Desse modo, considero que a preliminar a esclarecer, no sentido de se dar qualquer passo adiante e sério, na senda da preparação da luta armada, é a questão de se é ou não prioritária a formação da base política de massas.
Ainda não coloco o problema em si do movimento camponês, de efetivamente nos integrarmos nele, de partirmos da necessidade de seu desenvolvimento e ampliação na luta pela terra. Não, apenas dou ênfase à preliminar de que se impõe realizar com antecedência um certo trabalho político de massas, a organização de um mínimo de P. e a conquista de alguma influência de nossas palavras de ordem. Julgo esse ponto de vista, acusado de dogmático, o único capaz de corresponder à realidade atual e aos princípios da guerra popular, quer na concepção, quer no método. Aliás, qualquer grupo de elementos que tenha condições de primeiro constituir-se em destacamento armado, para depois ganhar as massas, com mais razão e facilidade poderá primeiro ganhar as massas e, no processo, organizar o destacamento armado. É o que ensina a sabedoria popular — quem pode o mais, pode o menos. Na verdade, essa é uma questão crucial: como ganhar as massas, convencê-las, a fim de que se armem e elevem o nível de suas ações revolucionárias? De qualquer forma, a missão dos comunistas é sempre, partindo dos interesses das massas e utilizando todas as formas de luta, levá-las a tomar seu destino nas próprias mãos. Ainda quando chegávamos a conflagrar e libertar algumas áreas, expandindo a luta armada, a tarefa dos agrupamentos guerrilheiros ou do Exército Popular por ventura enviados para áreas não-conflagradas é criar nelas base política através do trabalho entre as massas, de forma que elas decidam por si mesmas a constituição de destacamentos de autodefesa, de milícias, de guerrilhas, etc.; e tomem o Poder. Se procedermos de modo inverso, corremos o risco de cair no militarismo.
Por conseguinte, se procurarmos tirar ensinamentos da luta do Araguaia que sejam válidos, que nos ajudem a acelerar a preparação e o desencadeamento da luta armada, não devemos voltar ao passado oportunista de direita, de achar que as massas por si mesmas, espontaneamente, devam, um dia, pegar em armas e se defender da violência reacionária; nem adotar o princípio “esquerdista”, blanquista, foquista, de que são os comunistas que devem pegar em armas em lugar das massas. Nosso dever primordial e urgente é o de continuar no esforço, nas tentativas de preparar o trabalho armado e o de levantamento das massas, até que a guerra popular se tome uma realidade, visto que não há outra alternativa para o povo brasileiro, que terá que pagar um preço alto para aprender a lutar e conquistar a liberdade. Os inimigos, bem como os oportunistas de todos os matizes, tratam de dissuadir as forças populares da busca desse caminho, tentando provar que o mesmo não terá sucesso. No entanto, os verdadeiros revolucionários, em particular os comunistas, estão cada vez mais convencidos de que esse caminho não é apenas viável, como também é o único capaz de tornar triunfa a causa democrática e antiimperialista. O que nos falta é saber tirar lições dos erros, realizar uma autocrítica corajosa, sem o que jamais conseguiremos transformar a derrota que sofremos na vitória tão ansiada.
Simultaneamente com esse processo autocrítico, é necessário elaborar um plano estratégico de trabalho nas regiões mais propícias (estas encaradas do ponto de vista político, militar e topográfico) e dar prioridade ao trabalho de massas e à construção do Partido. O plano de ação, naturalmente, deve ser levado adiante dentro da mais rigorosa clandestinidade. Mas a implantação de camaradas em determinadas áreas para formar dispositivos militares deve obedecer, em primeiro lugar, a critérios políticos; ou melhor, os mesmos precisam preocupar-se prioritariamente com os problemas políticos, possuir certa capacidade política. É evidente que se esses camaradas a isto combinarem aptidões militares será excelente. Assim, ao mesmo tempo que desenvolvemos o trabalho político, de massas, cuidaremos da organização da infraestrutura e do dispositivo militar.
Devo insistir em que a preparação da luta armada é tarefa de todo o Partido e não apenas de alguns especialistas. A ausência de organização do Partido, tanto dentro da área como em sua periferia, no sul do Pará foi mais que deficiência — constituiu-se num erro grave, de princípio. Não deve ser repetido. O Partido não atrapalha, antes facilita, promove, impulsiona, organiza, sustenta, dirige todo o processo. Não nega, ao contrário, pressupõe a necessidade de formar e multiplicar os quadros de todos os tipos, principalmente os militares, os especialistas. A existência do Partido nas áreas facilitará também a divisão das funções e a compartimentação das atividades, a justa combinação do trabalho legal com o ilegal, do aberto com o secreto. Em todos os casos e aspectos, os comunistas devem ser capazes de efetuar o trabalho clandestino, de profundidade, tanto político como militar.
É muito importante o trabalho militar propriamente dito. Devemos tomar medidas urgentes para planificar e sistematizar o estudo da arte militar. Neste terreno, cabe à Comissão Militar papel primordial. Ela deve evitar o erro, cometido no Araguaia, de se converter em comando operacional ou em comissão de determinada área, mesmo sendo a prioritária.
Embora preocupada com a preparação concreta e concentrando seus esforços em alguns pontos-chave, precisa orientar todas as organizações partidárias para a tarefa de preparação e controlá-las.
Camaradas.
Há toda uma série de questões relevantes a serem enfrentadas e resolvidas em relação com a preparação e a perspectiva da guerra popular. Não nego sua importância em estudá-los e debatê-los. Mas, enquanto não nos pusermos de acordo em alguns pontos básicos, dificilmente avançaremos. A experiência vem de provar o quanto nosso aprendizado custará em sacrifícios, o quanto nosso caminho será duro, prolongado. Mas, se quisermos ser fiéis ao povo e corresponder a seus anseios, não podemos desanimar.
Atualmente, a correlação entre os fatores favoráveis e os desfavoráveis continua a ser o fundamental no exame de nossa preparação para o desencadeamento da luta armada. O inimigo ainda está forte (relativamente), adquiriu experiência, encontra-se sobressalta do temeroso de que surjam novos desafios à sua prepotência, de que os conflitos no campo se alastrem, de que nas cidades ocorram explosões. Por outro lado, o povo brasileiro está mais disposto do que nunca a livrar-se da ditadura militar-fascista, busca meios e formas de sacudir o jugo de seus exploradores e opressores. Nosso Partido, sem embargo de ter sido duramente golpeado e sofrido sérias perdas, já não é o mesmo de 1972. Também ganhou experiência. Portanto, para transformar as presentes condições desfavoráveis, cumpre-nos persistir em nossa política de frente única, concentrar mais esforços para ganhar as grandes massas operárias e camponesas, revolucionarizar mais nossas fileiras, defender com firmeza nossa organização e acelerar a preparação militar. Tudo indica que os horizontes vão clareando para o povo brasileiro. A bandeira da luta armada, que empunharam tão heroicamente e pela qual se sacrificaram os camaradas do Araguaia, deve ser erguida ainda mais alto. Se conseguirmos de fato nos ligar às grandes massas do campo e das cidades e ganhá-las para a orientação do Partido, não importa qual seja a ferocidade do inimigo, com certeza a vitória será nossa.