As relações entre as ciências praticadas por índios e não-índios foram tema de um interessante artigo publicado na Comciencia, revista digital de jornalismo cientifico, por Paula Drummond de Castro e Luanne Caires, em novembro de 2017.
A seguir, um resumo adaptado de Encontros e desencontros: como os conhecimentos indígena e tradicional interagem com o meio universitário.
O conhecimento tradicional e indígena é complexo e fruto da observação do ambiente local, associado a práticas e crenças sobre as relações entre os seres vivos entre si (incluindo humanos) e entre os seres vivos e o ambiente, como descreveu Fikret Berkes, da Universidade de Manitoba, Canadá, e outros cientistas.
Esse conhecimento é característico de comunidades não tecnológicas com dependência de recursos locais e é transmitido por práticas, especialmente orais, ao longo das gerações. Enquadram-se aí os conhecimentos de povos indígenas, ciganos, caiçaras, quebradeiras de coco de babaçu, pantaneiros, quilombolas, dentre outros.
Rompendo abstração
Embora se assemelhe ao conhecimento científico por possuir uma forte base empírica, e ser usado para entender fenômenos,como apontado por H.Huntington, do Alasca, o conhecimento tradicional e indígena rompe a tradição mais abstrata da ciência ocidental e vem codificado em aspectos concretos de necessidades cotidianas, além de ser inseparável do contexto social e espiritual da sociedade onde é produzido, diz Berkes.
Vã imaginação metropolitana
“Há muito mais regimes de conhecimento e de cultura do que supõe nossa vã imaginação metropolitana”, afirmou a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, em 2009.
Os conhecimentos das populações tradicionais e indígenas atraem muitos interesses, especialmente relacionados ao uso terapêutico de plantas, porque abreviam o desenvolvimento de produtos. O livro Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento, publicado em 2001, apontou que de 120 princípios ativos de plantas utilizados na medicina moderna,75% foram indicados por comunidades tradicionais.
Os desconfiados
Afora como provedoras de conhecimento, as vozes indígenas e de povos tradicionais têm entrado nas universidades de modo contingente. “Historicamente, o conhecimento científico veio para se sobrepor e anular os conhecimentos indígenas”, afirma o doutorado Edson Kaiapó, um dos poucos professores indígenas do Inst. Federal da Bahia.
Integrar os sistemas de conhecimento científico e não científico requer abrir mão de preceitos e preconceitos.Do lado científico ocidental, existe o preconceito de conhecimentos mergulhados no “misticismo” e considerados de validade menos universal.
Do lado dos povos tradicionais, há certa relutância em compartilhar informações consideradas sagradas ou que podem aprofundar a dominação e apropriação histórica dos colonizadores/ dominadores, dos quais(países/classes)muitas vezes os pesquisadores são provenientes.
Encontro de saberes
(Como opção anti desconfianças mútuas, algumas faculdades adotaram um “encontro de saberes”.) Na Nigéria, a Universidade Obafemi Awolowo, em Ifé, discute textos orais da tradição Odú com a participação de babalaôs de várias regiões da Nigéria,Benin e Togo.
Na América Latina, o Centro Amazônico de Formação Indígena (Brasil), a Universidade Indígena Intercultural Kawsay (Bolívia), a Universidade Autônoma Indígena e Intercultural (Colômbia), a Universidade Intercultural das Nacionalidades e Povos Indígenas Amawtay Wasi (Equador), a Universidade das Regiões Autônomas da Costa Caribe Nicaraguense (Nicarágua)foram criadas por organizações indígenas.
Ainda assim, a participação destas e de representantes tradicionais é baixa nas universidades (comuns), principais centros de produção de conhecimento.
Xamãs e congos como professores
No Brasil, embora experiências de integração de conhecimentos sejam raras, a U. Fed.de Minas Gerais (UFMG) desde 2014 oferece disciplinas do Programa Transversal em Saberes Tradicionais, que transgridem o formato das aulas.As disciplinas são ministradas por xamãs indígenas, afrodescendentes , cantores de congado, reisado, candomblé e outros convidados. A ideia é romper com a hierarquia entre pesquisadores e “pesquisados”.
Derrubando fronteiras
Abordagens mais recentes que visam à integração dos sistemas de conhecimentos científicos e não científicos vão além, e buscam transcender limites organizacionais, sejam esses institucionais ou internos às disciplinas.
A Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos(IPBES), órgão ligado à ONU para gerar análises sobre o tema, inovou, na medida em que decidiu considerar em seus diagnósticos sistemas de conhecimento não científico. “A IPBES desenvolveu, ao longo do tempo, processos para fomentar o diálogo entre sistemas de conhecimento diversos e para reconhecer valores econômicos, relacionais e intrínsecos. Entretanto, nas escalas continentais e globais em que esses diagnósticos ocorrem, há milhares de sistemas de conhecimento indígena e/ou local.
A Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) segue a mesma tendência. “Temos a preocupação de que os conhecimentos indígenas e tradicional sejam tratados como um tema transversal por todo diagnóstico brasileiro”, explica Juliana Farinaci, do Instituto de Pesquisas Espaciais e membro da BPBES.