80 anos de Pedro Ortaça: E a lança fez-se guitarra

80 anos de Pedro Ortaça: E a lança fez-se guitarra

Por ocasião dos 80 anos do cantor do povo Pedro Ortaça, republicamos a matéria da edição Nº 53 de AND, de junho de 2009, “E a lança fez-se guitarra”, de autoria de Henrique Júdice.

Capa do LP “Mensagem dos Sete Povos” (1977). Foto: Banco de dados AND

Não faz muito tempo — conta Rose Ortaça — , acreditava-se não haver mais índios guaranis no Rio Grande do Sul. Foi a voz de seu marido Pedro, em De guerreiro a payador (composta com Vaine Darde), que chamou a atenção de pesquisadores da USP para a falsidade dessa idéia.

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Pedro Ortaça, à esquerda, apresenta seu DVD ao repórter de AND

Esse episódio resume o lugar de Pedro Ortaça, último dos troncos missioneiros, no cenário cultural gaúcho. Mais do que um grande artista — condição reconhecida hoje até por seus adversários ideológicos — , Pedro, nascido em Pontão de Santa Maria, interior de São Luiz Gonzaga, é a personificação da identidade histórico-cultural das Missões. E é, por isso mesmo, um artista universal, naquela lição de Tolstoi que ele, nos versos que declama ao iniciar suas apresentações, enuncia assim:

me chamo Pedro Ortaça,
nascido lá no Pontão.
Sempre cantei minha terra
com raça, fibra e garrão.
Queira Deus que eu cruze o mundo
sem nunca negar meu chão.”

Pedro e sua família receberam a reportagem de AND para um encontro possibilitado pelos bons ofícios de Guilherme Bonotto Behr, de Santiago, também nas Missões. Numa conversa informal que precedeu a entrevista abaixo, os Ortaça falaram sobre sua vida, sua arte e suas convicções.

Eles têm como preocupação permanente a preservação da história e do legado da República Guarani. “Essa história foi escondida durante muitos anos” — diz Pedro. Seu filho Gabriel (também músico, assim como os irmãos Alberto e Marianita) narra um fato emblemático dessa tentativa de varrer a memória das Missões: “Aqui em São Luiz, na década de 1920, um prefeito mandou demolir um colégio construído pelos guaranis na época das reduções, alegando que ali havia morcegos”.

Com sua arte, Pedro e os outros troncos missioneiros contribuíram decisivamente para impedir que essa história fosse apagada. Hoje, o que resta da redução de São Miguel é reconhecido pela Unesco como patrimônio da humanidade. Pedro Ortaça, todavia, não considera encerrada a luta: preocupa-se, especialmente, com a situação dos povos indígenas, “verdadeiros donos da terra”, como gosta de frisar. Usando seu prestígio, conseguiu, há aproximadamente dez anos, que o então governador Olívio Dutra demarcasse 240 hectares de terra para os remanescentes guaranis de São Miguel. Mas ainda é pouco: “os índios estão esmolando, não recebem nenhum apoio” — denuncia.

O apego à história das missões é complementado pela reverência aos valores associados à figura do gaúcho e por um bravo sentimento anti-imperialista. “O gaúcho também lutou por uma causa e foi perseguido. Ele foi usado e depois destruído pelas partes dominantes” — diz Pedro. “O gaúcho tem o ideal de liberdade, gosta de campo aberto” — acrescenta Gabriel. “Por isso — completa Pedro — , quando eu digo (N do A: em Guasca, também composta com Vaine Darde) que eu nunca pedi bexiga prá patrão nem prá milico, não é ofensa; é que eu nunca pedi mesmo”.

Essa celebração da história dos que lutam por sua liberdade tem como mais recente manifestação Quilombo das Luzia, composta com Júlio Fontela e presente no disco Pátria Colorada. Nessa música, Pedro resgata a história de um quilombo que existiu em Santo Antônio das Missões (ainda hoje, há quem sustente que não havia negros no Rio Grande do Sul).

Colocando a guitarra a serviço das mesmas causas pelas quais lutavam, com suas lanças, os combatentes liderados por Sepé Tiaraju nas guerras guaraníticas, Pedro Ortaça perpetua a história e o legado daquelas lutas, como mostra na entrevista abaixo. Antes, porém, de passar a ela, vale transmitir o recado que ele, enfaticamente, reiterou ao despedir-se da reportagem de AND:

Eu nunca pedi bexiga prá patrão nem prá milico.

O que o senhor fazia antes de ser músico? Como a música surgiu em sua vida?

Desde piá, sempre gostei da música. Sempre gostei de cantar! Quando meu pai participava dos bailes, tocando junto com minha mãe nos bailes de família (bailantas missioneiras) que os vizinhos faziam nas casas ou nos bolichos, eu ia junto e ficava espiando. Ficava admirado de ver os músicos tocando e o povaréu dançando! Cresci ouvindo músicos autodidatas tocarem — em bailantas, casamentos, batizados e canchas de carreiras. Como vinha de família de poucos recursos financeiros (ou quase nada), trabalhava fazendo changa. (N do A: no noroeste do Rio Grande do Sul, transporte de carga). Aliás, conto a vida de changueiro em uma de minhas músicas, Coquié Balsa (Carregador). Cortei arroz com foice em lavouras alheias por pouco ou quase nada. Mas, quando a noite chegava, me agarrava ao violão, até mesmo emprestado. Aprendi as músicas da época, passei por muitos ritmos que eram tocados e eu aprendia ouvindo nas poucas rádios e as tirava de ouvido, sem nem conhecer notas ou os nomes que elas tinham. Até que, em dado momento, Tupã ou o destino nos colocou lado a lado: eu, Jayme Caetano Braun, Noel Guarany e Cenair Maicá. Nas longas conversas em meu galpão, onde morava — e continua aqui no lugar onde moro com minha família, grudadito no nosso rancho: é o lugar onde guardo lembranças, recordações e onde mais a gente gosta de ficar, ora fazendo músicas, ora recebendo amigos que vêm de várias partes do Brasil. Claro… Quando não estou na estrada fazendo shows, é um voltar constante para minha querência de onde em pensamento não saio jamais. É aqui meu chão, minha verdade, minhas raízes, minha história, minha velha São Luiz Gonzaga, terra vermelha que se mistura ao sangue dos que aqui nascem e não se apartam dela mesmo longe! Voltando ao assunto:  eu, Jayme, Noel e Cenair, cada qual com seu estilo próprio e hoje considerados nas universidades como quatro escolas da música missioneira, resolvemos criar um estilo que definisse o cantar do povo da nossa região, o canto missioneiro, que identificasse essa região e contasse sua história. Um estilo próprio para a nossa região missioneira.

O senhor e seus parceiros sempre reivindicaram de maneira muito forte a identidade missioneira, inclusive numa época em que ninguém fazia isso. Como surgiu a idéia e por que resolveram levantar essa bandeira?

A idéia de criar um canto que mostrasse ao mundo a beleza da nossa cultura, até então sepultada e esquecida, surgiu do encontro espontâneo de Jayme Caetano Braun, Noel Guarani, Cenair Maicá e Pedro Ortaça. Pensávamos igual em relação às Missões e os quatro tínhamos ciência de sua grandiosidade. Resolvemos falar dessa cultura em versos, payadas e música. E surgiu então uma nova identidade musical no RS e no Brasil, que registrava a cultura de um povo de mais de trezentos anos de história e um legado cultural e social enorme. Enfrentamos muitas barreiras e ainda continuamos enfrentando, pois muitas pessoas não gostam de ouvir verdades, preferem a fantasia da mentira. Mas quanto mais nos atacavam e nos criticavam, mais vontade de cantar e continuar a gente tinha. Cantar as injustiças cometidas contra um povo que era dono de tudo e foi massacrado e roubado e ainda hoje continua injustiçado, perdido nos corredores das estradas ou nas calçadas das grandes cidades. Sem uma política que o ampare de fato e de direito, perdendo até mesmo sua identidade cultural! Esse foi e será o motivo maior do nosso canto, que é de amor a essa terra colorada e sua gente. Uma região culturalmente rica e economicamente desprotegida. Através do nosso canto, o povo foi conhecendo a verdadeira história do povo missioneiro, povo de quem foram roubadas as terras, o gado, as riquezas. Mataram, velhos, moços e crianças num extermínio bárbaro. Mas não conseguiram silenciar a voz da verdade, que era ouvida e esparramada pelo vento de coxilha em coxilha, como se fosse um lamento. Não conseguiram apagar sua história de lutas, fraternidade e amor a esse chão colorado!

O resgate da identidade cultural missioneira pode ser comparado ao movimento de revalorização do gaúcho iniciado anteriormente pelo Movimento Tradicionalista. Todavia, ao reivindicar a história das Missões, vocês trouxeram à tona algo que contrastava com a imagem do gaúcho adotada pelo MTG, mais ligada à história da fronteira sudoeste. Houve alguns choques com o movimento por causa disso, não? Como é sua relação com o MTG atualmente?

Os tempos estão mudados. A nossa música, no começo, foi muito combatida porque cantávamos a verdadeira história de um povo e a muitos senhores não agradava. Mas depois de muito tempo, começamos a ser chamados para tocar nos CTGs, começaram a entender nosso cantar, que denunciava as injustiças cometidas e o descaso com nossa cultura. O MTG é um movimento surgido a serviço da preservação da nossa identidade mais pura, a tradição de um povo (povo gaúcho) que passa de pais para filhos; nós, quatro missioneiros engajados na luta pelo reconhecimento de uma cultura própria da região missioneira, onde o Rio Grande nasceu. Com o canto missioneiro definimos a identidade de nossa região, contando a sua verdadeira história de luta, garra e superação. Passamos a ser admirados por outras regiões, estados e países. Até na França a minha música serviu de tese da Caroline Paroux (N do A: violonista francesa. A tese a que Pedro se refere valeu a ela o título de doutora em musicologia pela Universidade de Paris VIII). O nosso canto fala do passado e faz uma projeção para o futuro.  O MTG é um movimento tradicional que está sempre tentado preservar costumes e a tradição do povo gaúcho. E os quatro troncos missioneiros, no nosso modo e maneira de cantar, resgatamos uma cultura de mais de 300 anos de história. Nosso canto surgiu como uma maneira de contestar, opinar, denunciar as injustiças sociais e culturais e ao mesmo tempo encantar. Autodidatas, fazíamos músicas que brotavam da alma como um veio d’água brota das entranhas da terra.

Já se apresentaram para os índios? Como é sua relação com eles?

Já me apresentei várias vezes para eles e por eles, pois sempre que lanço um CD ou DVD, o que é arrecadado no show é repassado aos índios. Já fiz vários lançamentos para eles. E o mais importante é o chamamento para que outras pessoas olhem por eles, que continuam discriminados! Pois não encontro explicação para tanto descaso, os enxergo engrossando as filas dos excluídos nesse país tão rico e continente. Minha relação com eles é de alguém que sonha vê-los em uma situação de respeito pelo que foram e o que são: verdadeiros donos da terra.

Como sente a receptividade da população das Missões ao seu trabalho? Acha que a população valoriza a identidade missioneira?

O Brasil e o mundo reconhecem agora o valor da cultura missioneira, seu canto, suas raízes, seu patrimônio universal da Humanidade. Mas tem que continuar a ser divulgado. Agora a região missioneira se orgulha da riqueza cultural que possui e por anos ficou no esquecimento. E

deveriam se orgulhar cada vez mais da sua história, pois temos uma cultura própria.

O senhor encaminhou o Alberto, a Marianita e o Gabriel para a música ou essa vocação surgiu naturalmente?

Sempre carreguei, quando foi possível, a Rose e os meus filhos para assistirem meus shows. Eles (Alberto, Gabriel e Marianita) se criaram em meio a palcos, artistas, músicos e público. Aprenderam a gostar e fui esparramando instrumentos musicais pela nossa casa: gaita, violões, bombo leguero. Eles arrastavam no começo os instrumentos e nem podiam com o peso dos mesmos, mas, de repente, foram crescendo e fazendo suas escolhas. O Alberto escolheu bombo leguero, violão e canto; Marianita, bombo leguero, gaita ponto e canto; Gabriel Ortaça, gaita ponto, violão e voz. Os guris já estão com 3 CDs Gravados e o Gabriel está terminando o quarto CD para entrar em estúdio e gravar. Terá a participação do Beto, que ainda está se recuperando de um grave acidente mas está — graças a Deus — muito bem. Marianita também fará parte do novo CD. E o meu também está para sair: serão 19 trabalhos entre discos, CDs e o DVD Pedro Ortaça. Gosto de estar no palco com meus filhos, unidos num mesmo ideal, amor a terra onde nascemos!

Licença pra um missioneiro
Pedro Ortaça
Declamado
“Seu gringo, faça silêncio:
vai cantar um missioneiro.
E prá não dar entrevero
e o baile ficar suspenso,
pode guardar seu dinheiro
que eu vou falar o que penso!”

Cantado
Lá da América do Norte,
se vieram para os confins
trazendo a fome e a morte
— muito pior que graxaim.
E hoje, por toda parte,
mudam tintim por tintim:
palheiro tem fumo “light”
e a bombacha virou “jeans”.

Seu gringo, não perca o entono,
pois mate não é café
e o cepo nunca foi trono
de misterzinho qualquer.
Por isto, não perca o sono
e pode ir dando no pé
porque esta terra tem dono
desde os tempos de Sepé. 

Trazem o povo a cabresto
pela tal televisão.
A ganância não tem preço
nessa maldita invasão.
Viram o mundo do avesso:
pesticida, poluição…
E se dizendo o progresso,
querem tomar o galpão.

A evolução sem limites
é que arrebenta a represa,
levando tudo que existe
na força da correnteza.
Onde o Tio Sam dá palpite,
não resta pão sobre a mesa,
pois nenhum povo resiste
à morte da natureza.

Há muito sobem a rampa
tapados de cerimônias.
Nossa conta virou trampa
sem a menor parcimônia.
A mesma história se acampa
onde a gringada se adona:
estão com um pé na pampa
e as duas mãos no Amazonas.


Quilombo das Luzia
Pedro Ortaça e Julio Fontela
Raça negra dominando,
na Vila Treze existia:
carvão na pele curtida,
brasa no olho que ardia
e a liberdade na alma
no quilombo das Luzia.

Africanos quase puros,
uma clã de raça brava.
Depois que estanha os olhos
ou quando afrouxa a baba
ficam pior que temporal
quando com fúria desaba.

Certa feita, a autoridade
quis prender as negras Luzia.
Vieram os ratos e os baios,
mais o povo que podia
e o quilombo pegou fogo,
e o chão de medo tremia.

Peleavam se conversando,
cortejando no facão.
Não gostavam dos de farda,
dos paisanos também não.
E a cada estouro das negras,
um branco beijava o chão.

Enquanto a briga crescia,
que cerrava a polvadeira,
as Luzia davam laço
com panela e com chaleira
e até os negrinhos de colo
davam pau com as mamadeiras.

A negra fúria guerreira
não se dobra ao opressor:
enfrentam de alma aberta
o chicote e o feitor.
Quem nasceu para ser livre,
de pouco interessa a cor.


Desde os tempos de Sepé
Pedro Ortaça e Vaine Darde
Sou o que os historiadores
procuram lá nas ruínas.
Mas não sabem os doutores
que esta saga não termina;
que ainda restam descendentes
da terra dos sete santos
e o passado está presente
em tudo aquilo que canto.

Não sabem que a esses escombros
ainda sirvo de escora
e que carrego no ombros
trezentos anos de história.

Podem pensar que sou louco,
mas eu comprovo na estampa
o que hoje somos poucos:
os fósseis vivos da pampa.

Sou filho dos sete povos,
tenho o sangue de Sepé
e tudo que digo, provo
com juramento de fé.

O meu legado é tanto,
nem carece explicações
— e até no canto que canto,
ecoa a voz das Missões.

Guarani fui batizado
e ora pago minhas penas
sob o símbolo sagrado
da velha cruz de Lorena.
Porém, não sabe o que narra
a história do vencedor;
que a lança fez-se guitarra
e o guerreiro payador.

Pra manter viva a memória,
as pedras ganharam nome
e transformaram em história
o que resta desses homens,
pois mais vale a carcaça
de um templo quase no chão
que os descendentes da raça
que vagam changueando pão.

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