O inolvidável combatente João Carlos Haas Sobrinho em Porto Franco (MA), em 1968. Foto: Sônia Haas
Neste dia 24 de junho o médico gaúcho João Carlos Haas Sobrinho completaria 83 anos. Republicamos o seguinte artigo com objetivo de resgatar e rememorar sua trajetória de vida e seu compromisso assumido como médico popular e guerrilheiro indômito.
DESTACADO LÍDER ESTUDANTIL
João Carlos Haas Sobrinho nasceu em 24 de junho de 1941, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Filho de um pequeno comerciante do ramo coureiro-calçadista, cresceu com conforto e saúde ao lado de seus seis irmãos. Tinha, desde pequeno, um forte espírito de liderança. Organizou campeonatos de futebol, torneios dos mais variados esportes e mesmo as “festinhas” entre os colegas da escola. Aos 16 anos, mudou-se para Porto Alegre para estudar, onde permaneceu na casa de amigos da família. Pouco depois, em 1958 foi aprovado no vestibular de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Enquanto aluno, foi eleito presidente do Centro Acadêmico Sarmento Leite, entidade representativa dos estudantes de medicina, tornando-se destacado líder estudantil. Após o golpe militar, teve a matrícula cassada ao ser preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), sob a acusação de “esquerdismo”. Consta em jornal da época que, enquanto preso, João Carlos, já ativamente militando pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), participou de um curso de marxismo organizado pelos próprios detentos, muitos deles, estudantes presos políticos. Após liberado, houve forte movimentação por parte dos professores e alunos para garantir que ele se formasse, pois era considerado um dos melhores alunos da universidade. A mobilização foi vitoriosa e Haas se formou em fins em 1964.
Após o golpe, entre as atividades políticas desenvolvidas por João Carlos em Porto Alegre, havia a mais costumeira de todas: era muito comum vê-lo participando de panfletagens e comícios em fábricas, especialmente na Indústria Micheletto, local já conhecido pelos militantes do Partido da capital gaúcha. Naquelas agitações faziam-se presentes o mecânico de aeronaves José Huberto Bronca e o economista Paulo Mendes Rodrigues, que também integraram as fileiras das Forças Guerrilheiras do Araguaia.
João Carlos Haas Sobrinho, José Huberto Bronca e Paulo Mendes Rodrigues, combatentes do Araguaia. José e Paulo eram membros efetivos do comitê central. Foto: Banco de dados AND
IDA À CHINA E RETORNO AO BRASIL
Em 1966 comentou aos familiares que iria fazer uma especialização, mas não deu maiores detalhes e tampouco o endereço. Na verdade foi, em missão do PCdoB, à China Popular, país que, após a Grande Revolução de 1949, construía exitosamente o socialismo sob a direção do Partido Comunista da China e do Presidente Mao Tsetung. Lá realizou curso na Academia Militar de Nanquim e permaneceu por mais de um ano e meio por problemas de segurança. Ao voltar ao Brasil em 1967, já na clandestinidade, foi enviado para Porto Franco, no interior do Maranhão, onde montou um pequeno hospital e logo criou laços com a população. Haas contou com detalhes como foi a integração ao pequeno município em carta intitulada “Aos amigos de Porto Franco, Tocantinópolis e Estreito”, escrita em 1972:
“Na atividade profissional tive oportunidade de tomar conhecimento íntimo com a difícil situação do povo dos sertões do Maranhão e do Norte de Goiás. Qualquer morador é testemunha de que muitas pessoas morriam à míngua, por falta de recursos para tratamento. Mulheres faleciam por ocasião dos partos, crianças eram vitimadas por verminoses, trabalhadores das matas sofriam violentos acessos de malária, e os que necessitavam de uma operação urgente não tinham tempo de alcançar o hospital mais próximo. Não havia um só médico nas localidades de Porto Franco, São João do Paraíso, Estreito, Araguatins, Itaguatins, Nazaré e Ananás. Tocantinópolis não dispunha de hospital. Com a compreensiva ajuda dos habitantes, iniciei o trabalho em condições difíceis, chegando, com o tempo, a instalar um pequeno hospital em Porto Franco. Doentes e acidentados procuravam socorro vindos de longínquos recantos, muitas vezes sem dispor de transporte adequado. Atendi também a numerosos chamados, viajando pelas precárias estradas e caminhos do sertão, ora em veículos, ora a pé. Sempre contei com a boa vontade e colaboração dos moradores e tornei-me amigo de todos. Muitas pessoas foram atendidas sem que dispusessem um só tostão para as despesas. Ficou então comprovado que bastava um pouco de interesse pela saúde do povo e pelo progresso das regiões atrasadas, para que o governo resolvesse, com a aplicação de alguns recursos, muitos problemas daquela população e minorasse seus males. No entanto, os generais da ditadura e as autoridades por eles nomeadas nunca se preocuparam em ajudar a pobreza. Só se lembravam do povo por ocasião das demagógicas campanhas eleitorais ou na cobrança de impostos.”. (Grifos nossos).
Na mesma carta apresentou o programa político das Forças Guerrilheiras do Araguaia, baseado nas necessidades mais prementes da população, divulgado em manifesto intitulado “Em Defesa do Povo Pobre e pelo Progresso do Interior”. Em torno desse programa foi organizado o “Movimento de Libertação do Povo” (MLP).
Sonia Haas, sua irmã, relatou, em ida à Porto Franco: “Tenho muito orgulho da história de João Carlos, tenho muito orgulho de ser sua irmã, pois acho que ele é um exemplo de ser humano, aquele que conheci dentro de casa é o mesmo que me relataram em Porto Franco. Levava as fotos dele para Porto Franco e ficava apresentando para os moradores para confrontar a foto dele e confirmar a sua presença. […] Em Porto Franco eu estava na praça da cidade e chamaram moradores para me apresentar, a população chorava e se emocionava ao falar comigo, 50 anos depois.”.
João Carlos e moradores no Vão do Marco, entre Porto Franco e São João do Paraíso (MA). Foto: Banco de dados AND
Celebração com os moradores de Porto Franco (MA). João Carlos aparece no canto direito, com o copo mais elevado para o brinde. Foto: Banco de dados AND
O MÉDICO DOS CAMPONESES
Passados dois anos, devido às perseguições do regime militar, verificou-se a necessidade de mais uma mudança. Quando os amigos e moradores descobriram a sua intenção de ir embora, grande aflição se instaurou na comunidade. A população insistiu para que o médico não partisse. Como última tentativa, com o intuito de demonstrar para Haas a importância vital que o mesmo representava para as massas daquele município, foi organizada uma manifestação defronte ao seu pequeno consultório. Uma grande quantidade de moradores – fala-se em milhares – clamavam pela permanência do médico.
Partiu, poucos dias após este episódio, para São Geraldo, povoado às margens do Rio Araguaia. Com ele, moraram na pequena cidade maranhense outros integrantes do PCdoB, como Maurício Grabois, o líder da futura guerrilha, seu filho André e Gilberto, seu genro, que se instalaram no local como pequenos comerciantes. Lá, ficou rapidamente conhecido pelos camponeses e ribeirinhos. Era o Juca, médico dos camponeses, fiel e trabalhador, profundamente solidário e munido de espírito comunista, estimado por todos. Naquele período, ocupou também o posto de Chefe do Serviço de Saúde e de membro do Comando Militar (CM) das Forças Guerrilheiras do Araguaia. Tombou em combate em 1972, quando tinha 31 anos de idade.
Quando assassinado pelo regime militar fascista, seu corpo foi levado para Xambioá, em Piçarra, onde também havia prestado serviço como médico, a fim de assustar a população e “passar um recado”. Tinham em vista de mostrar que quem não se dobra ao regime, morre. As bravas massas camponesas, porém, prontamente se enfileiraram para prestar homenagens e receber o corpo de seu querido amigo. No diário da guerrilha, escrito por Ângelo Arroyo, assim foi recebida a notícia da morte de “Juca”:
“Com a morte do Ju, as FF. GG. recebem pesado golpe. Perderam seu médico, um membro da CM com grande capacidade política e militar. João Carlos Haas Sobrinho, este o verdadeiro nome do companheiro desaparecido, era um quadro de grandes qualidades. Desprendido, modesto, corajoso, inteligente e capaz, tinha ainda muito a dar à revolução. […] Muito bom médico e ótimo cirurgião. Desprezou todas as vantagens que poderia desfrutar de sua profissão para se dedicar de corpo e alma à causa da emancipação nacional e do socialismo. Tinha particular capacidade de lidar com as massas. Por onde passou deixou amigos e admiradores. Em Porto Franco e Tocantinópolis, onde desempenhou sua atividade como médico, deixou um largo círculo de amizades, sendo muito bem quisto pela população dos dois municípios. Com seu desaparecimento, abriu-se um claro na guerrilha, que somente com grande esforço será preenchido. Ju ingressou no Partido em 1963 e dedicou toda a sua vida à vanguarda da classe operária. No futuro, o povo brasileiro reverenciará sua memória como um dos seus melhores filhos.”.
Posteriormente, a CM afirmou em nota:
“[…] Tinha particular capacidade em lidar com as massas pobres e oprimidas. Estava, também, disposto a realizar os maiores sacrifícios para ajudar seus companheiros de luta. Não via sua pessoa, mas o bem-estar geral. João Carlos era, antes e acima de tudo, um servidor do povo. Valente ante a temeridade, o combatente desaparecido jamais temeu o inimigo. Em todas oportunidades apresentava-se para levar a cabo os encargos mais pesados. Amava a vida, mas, conscientemente, estava decidido a dá-la pela nobre e luminosa causa da democracia e da libertação nacional. No cumprimento de perigosa missão, caiu para sempre, quando ainda muito poderia contribuir para a grandiosa obra de transformação social do país. Assim, a revolução brasileira perdeu emérito lutador e o povo um de seus melhores filhos. Homens de sua envergadura surgem, unicamente de tempos em tempos, forjados pelo movimento revolucionário em ascensão, como se verifica atualmente no Brasil. A morte de João Carlos deixa imenso vazio nas Forças Guerrilheiras do Araguaia, onde ele ocupou o posto de Chefe do Serviço de Saúde e de membro do Comando Militar. Somente um esforço redobrado de todos os combatentes pode preencher a lacuna que se abriu nas fileiras da guerrilha. Os combatentes do Araguaia saberão superar todos os entraves à sua luta, inspirando-se na heróica e brilhante trajetória de João Carlos Haas Sobrinho. O exemplo desse guerrilheiro indômito viverá eternamente na memória de todos os patriotas e despertará para a ação armada um número cada vez maior de jovens brasileiros para pôr fim à ditadura e para acabar em definitivo com a dominação imperialista.”.
A vida de João Carlos foi, pois, um continuado exemplo de abnegação e firmeza revolucionárias. São homens de fibra, de tamanha fortaleza ideológica, que imprimem velocidade crescente ao movimento revolucionário. A figura do Dr. Juca, para quem a vitória do socialismo era o fanal de sua vida, permanece luminosa como a de tantos outros heróis e heroínas do povo brasileiro. A sua memória e seu legado devem ser honrados por aqueles que empunham agora sua bandeira.
Edição nº 109 de A Classe Operária, com matéria especial sobre João Carlos Haas, “Médico e guerrilheiro – herói do povo”. Foto: Banco de dados AND
Nota: o presente artigo foi feito com o apoio de Sônia Haas, irmã de João Carlos Haas Sobrinho, que gentilmente nos cedeu imagens do irmão.
Referências:
SOUZA, Deusa Maria de. Caminhos cruzados: trajetória e desaparecimento de quatro guerrilheiros gaúchos no Araguaia.