Em sua tese de doutorado na Universidade de Virginia, o professor assistente Christopher J. Ferrero, da Universidade Coastal Carolina, direcionou suas atenções à relação dos USA com o Irã. Em “The Iran Narrative” (A Narrativa Irã), Ferrero estudou as origens da Narrativa muito corrente nos USA que coloca o Irã como um vilão, um Estado pária, um inimigo da paz, um agente do terrorismo. A ideia era descobrir se a narrativa vinha, originalmente, do discurso dos “tomadores de decisões” (decision-makers: geralmente líderes de governo, presidentes, deputados, ministros), ou se ela se originava dos discursos midiáticos. Em sua conclusão, Ferrero diz que os “tomadores de decisões” são ao mesmo tempo criadores e “vítimas” da Narrativa, contribuindo para ela e ao mesmo tempo se aproveitando dela. O papel da mídia, no entanto, não é diminuído no estudo. Jornais impressos e canais de televisão contribuem e reproduzem discursos que constroem a Narrativa, a perpetuando e renovando constantemente e, principalmente, inculcando-a na mente da população.
Sexta feira passada, dia 03 de abril, seria celebrado o Dia Internacional da Liberdade de Imprensa. “Seria”, porque não havia o que ser celebrado. Desde o dia 7 de outubro de 2023, mais de cem jornalistas já foram assassinados pelo Estado Sionista de Israel em Gaza. Destes mais de cem, 100 são palestinos. Muitos jornalistas foram assassinados em casa, após o trabalho ou de folga, com suas famílias inteiras. Outros foram assassinados enquanto exerciam seus trabalhos heroicos de registrar e noticiar um genocídio televisionado. Alguns jornalistas tiveram suas famílias como alvo dos bombardeios sionistas, outros foram presos e tiveram seus equipamentos indevidamente confiscados. E, coroando o fim de semana da liberdade de imprensa, a entidade colonial sionista acaba (no domingo, dia 5) de fechar e encerrar as operações da Al Jazeera em território israelense. A decisão ocorre cerca de um mês após o Knesset (parlamento sionista) aprovar uma lei que permitia o fechamento de emissoras estrangeiras no país. Esta lei foi aprovada, diga-se de passagem, no mesmo dia em que Israel assassinou os trabalhadores humanitários da World Central Kitchen, e no mesmo dia em que Israel bombardeou um prédio do consulado iraniano em Damasco, na Síria, vitimando o General Ali Zahedi.
Resta a nós, jornalistas, nos perguntarmos: liberdade de imprensa para quem? Certamente a liberdade de imprensa não seria válida para os mais de cem jornalistas massacrados em Gaza? Não seria ela válida para proteger a liberdade da maior rede de notícias do mundo árabe de atuar e noticiar o genocídio em curso? Em 2023, três quartos dos jornalistas mortos no ano inteiro foram mortos somente nos últimos quatro meses do ano, em Gaza, pelos bombardeios criminosos de Israel. Sobram evidências de que as forças sionistas tomam jornalistas – e suas famílias – como alvos quase prioritários, ao lado de trabalhadores humanitários e pessoal médico. Já vimos vídeos de jornalistas que filmaram a própria morte enquanto tentavam fugir. E agora vemos ao vivo enquanto a autodenominada “única democracia do oriente médio” toma de assalto, confisca equipamentos e encerra transmissões e notícias da Al Jazeera em Israel. Liberdade de imprensa para quem?
A liberdade de imprensa é um fato, ela existe, e principalmente nós, brasileiros, a vemos em atividade diariamente. Nós a vemos quando o grupo Globo noticia o infame Massacre da Farinha, em fevereiro, como uma “confusão” que “deixa mais de cem mortos”, e não como um massacre intencional perpetrado pelas forças sionistas em pessoas desesperadas por ajuda humanitária em meio a um genocídio. E que os palestinos “morrem” durante “entrega de ajuda humanitária”. Vemos esta liberdade quando o grupo Globo convoca dezenas de “especialistas” em oriente médio e no “conflito Israel-Palestina” que ora simplesmente justificam abertamente o genocídio do povo palestino, ora fazem o papel do “doisladismo”, enquanto não chamaram sequer uma voz de fato palestina para falar em seus programas tendenciosos.
O grupo Globo, entretanto, não é o único que se aproveita desta pretensa liberdade de imprensa. A linguagem passiva e neutra usada para os palestinos que “morrem” – e não são mortos por algum agente – em relação aos israelenses que são “assassinados” é uma velha tática da imprensa mundial “ocidental”. Em outro estudo, conduzido por Holly M. Jackson, em 2023, no MIT, foi confirmada a existência de um viés anti-palestino persistente durante a Primeira e Segunda Intifadas (1987-1993 e 2000-2005, respectivamente). No estudo, Jackson utilizou inteligência artificial para analisar qualitativa e quantitativamente mais de 33 mil artigos das respectivas épocas, analisando a linguagem usada, a objetividade e a paridade de foco dos veículos midiáticos na reportagem dos fatos. Como resultado, Jackson descobriu o emprego da linguagem de forma enviesada para descrever fatos, utilizando palavras que denotavam agressividade quando os palestinos cometiam os atos – como “israelenses são assassinados” -, enquanto palavras mais passivas e neutras – como “palestinos morrem” – quando os israelenses cometiam atos quase idênticos eram empregadas. Também descobriu que mais de 90% dos artigos focavam em israelenses, enquanto menos de 50% cobriam os palestinos.
Desde o dia 7 de outubro, veículos do monopólio de mídia internacionais, especialmente europeus e dos USA, noticiaram atrocidades cometidas contra israelenses. A estória mais famosa – e infame – é a dos “40 bebês decapitados” pelo Hamas. Já se passam sete meses desde o lançamento da Operação Dilúvio Al Aqsa, e ainda hoje se encontra referências a este acontecimento em veículos de mídia, em discursos do desequilibrado Gilad Erdan na ONU, em falas de funcionários do governo sionista. O acontecimento, entretanto, nunca aconteceu. Não existem evidências, não existem provas, sequer existem os nomes dos “40 bebês decapitados”. Eles jamais existiram além das manchetes sensacionalistas de tabloides do monopólio de imprensa. Uma mentira que surgiu da Hasbará sionista, através de um canal israelense, i24, que possui laços fortes com o facínora Netanyahu, e foi ecoada pelos veículos internacionais como verdade absoluta. Como mostrou o estudo já mencionado de Christopher J. Ferrero, os “tomadores de decisões” e a mídia hegemônica se retroalimentam nesse ciclo de narrativas falsas, tendenciosas e perigosas.
A assim chamada liberdade de imprensa também pode ser encontrada agora, quando estudantes estadunidenses ocupam suas universidades em solidariedade ao povo palestino, e clamam por uma Intifada. Os veículos da mídia hegemônica vêm se apressando para tratar esta palavra, este glorioso verbete rebelde, como uma palavra antissemita. A palavra, que denota rebelião, resistência e levante contra opressão, é mais conhecida pelos contextos da Palestina entre as décadas de 1980 e 2000. Mas também foi usada para caracterizar eventos da chamada “Primavera Árabe”, na Tunísia e no Egito, por exemplo, amplamente apoiadas pelos USA, Europa e seus veículos midiáticos. Ainda além, em árabe, é como é chamado o Levante do Gueto de Varsóvia, uma rebelião em 1943 onde judeus presos decidiram morrer lutando ao invés de aceitarem seus destinos nas câmaras de gás nazistas. A “Intifada Ghetu Warsu” (انتفضة غيتو وارسو), para o monopólio da mídia ocidental, é um exemplo de antissemitismo também?
Esta tentativa da mídia hegemônica de vilipendiar tão nobre palavra de rebelião e revolução é acompanhada de um projeto de lei, recém aprovado pela Câmara dos Representantes dos USA por maioria esmagadora, que visa incluir ao Civil Rights Act de 1964 (a lei antidiscriminação ianque) a definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA, em inglês). A definição incluiria críticas pertinentes ao Estado Sionista de Israel, como afirmar que sua existência é um esforço colonial e racista. O historiador israelense Ilan Pappé, que sempre define o Estado Sionista como um “projeto colonial de assentamento”, ficará surpreso ao descobrir que ele, um judeu, poderá ser considerado antissemita nos USA, assim como o professor Norman Finkelstein, outro judeu, e os milhares de estudantes universitários presos pelas polícias fascistas ianques, muitos também judeus. Ironicamente, mas não surpreendentemente, neste mesmo país que busca criminalizar críticas legítimas ao esforço colonial sionista, marchas neonazistas e supremacistas brancas ocorrem regularmente, com cantos e símbolos nazistas, racistas e – verdadeiramente – antissemitas.
No passado Dia Internacional da Liberdade de Imprensa nós não temos nada a celebrar. No mundo onde a censura é a lei e a liberdade é a exceção; onde as armas da censura são o assassinato sistemático de jornalistas, a criminalização de palavras legítimas e o fechamento de redes de notícias; onde as armas da pretensa liberdade de imprensa são o viés em favor de um genocídio, a invenção de acontecimentos e a dança de palavras para suavizar crimes de guerra: neste mundo não há liberdade de imprensa para ser celebrada.
Em meu parêntese pessoal nesta crônica, digo que minha maior inspiração para praticar esta profissão são as centenas de jornalistas de Gaza, martirizados ou sobreviventes. Ao invés de celebrar este dia de uma liberdade de imprensa inexistente, eu dedico o dia 3 de maio como um dia de luto aos mais de cem jornalistas assassinados em Gaza. Dedico a Bisan Owda, Plestia Alaqad, Motaz Azaiza, jornalistas independentes que dedicam seus dias a documentar a vida em Gaza. Dedico a Shireen Abu Akleh, jornalista palestina assassinada pelas forças sionistas com um disparo na cabeça em 2022 enquanto cobria uma escaramuça. Dedico a James Miller, cinegrafista britânico assassinado em 2003 pelas forças sionistas, enquanto se aproximava com seus colegas de um checkpoint israelense, com bandeiras brancas, gritando que eram britânicos. Dedico a Wael Al Dahdouh, que teve sua família quase inteira – esposa e dois filhos – liquidada por uma bomba israelense em um campo de refugiados, e no dia seguinte retornou ao trabalho. Que sofreu um ataque direto das forças sionistas enquanto trabalhava, e no dia seguinte retornou ao trabalho cobrindo o velório de seu amigo e cinegrafista que perdeu no ataque. Que teve seu filho, Hamza, também assassinado em outro ataque sionista, também enquanto trabalhava como jornalista, e no dia seguinte, novamente, estava cumprindo seu trabalho árduo como chefe da Al Jazeera em Gaza. Aos jornalistas palestinos que sobrevivem, e aos jornalistas palestinos que foram martirizados: dedico, em forma de luto profundo, o dia da falsa liberdade de imprensa.
Liberdade para quem?
Este texto expressa a opinião do autor.