A fibra palestina

A fibra palestina

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2025 transcorreu, até aqui, como um desfile da vitória palestina na Tempestade de Al Aqsa. Já tem claro vencedor uma guerra com dia certo para recomeçar – se as violações da trégua por Israel e as bravatas de Trump não anteciparem seu reinício.

Nem as terríveis imagens de Gaza destruída, as cifras do morticínio ou os maus tratos infligidos pelo ocupante sionista aos prisioneiros palestinos antes de libertá-los tisnam a expressão luminosa e triunfal dos que agora retornam ao seio de suas famílias e a seus postos na luta, dos que os recebem de braços abertos e dos que marcham de volta aos locais onde tinham seus lares.

Pode-se perguntar se as dezenas de milhares de mortos e inválidos, bem como os traumas ocasionados por uma guerra contra um inimigo superior em armamento e desprovido de limites e princípios, não são uma perda superior ao ganho obtido pela libertação dos prisioneiros. É plausível supor que esse tenha sido o cálculo de Israel: sabendo, desde o sucesso da operação militar de 07/10/2023, que teria que ceder às reivindicações palestinas, procurou arrasar Gaza para ensombrecer a vitória já então conquistada pela resistência e dissuadi-la de novas ações do tipo.

A resposta é dada pelo júbilo do povo palestino. Assim como o cálculo definidor de quem vence uma guerra não é o das baixas impostas ao inimigo, mas o do atingimento de objetivos, o que define se uma ação político-militar vale a pena não são as baixas que ela acarreta nas próprias fileiras, mas o que aconteceria se ela não fosse levada a efeito: a obliteração silenciosa da Palestina.

Gaza emerge triunfante da destruição de toda sua infraestrutura, incluindo ramos tão vitais como o abastecimento de água; da redução de suas escolas e hospitais a escombros; do assassinato de milhares de seus quadros técnicos e intelectuais; e do infanticídio generalizado. Por quê?

Porque impôs seus termos a um inimigo que cultivou, por décadas, a fama de invencível. Porque tem um povo corajoso e consciente, que saiu de cabeça erguida de uma guerra de destruição total e não a baixará por medo da repetição do inimaginável sofrimento vivido.

Como na Coreia, como no Vietnã.

A coroar a vitória, o contraste exposto ao mundo entre o impecável tratamento dispensado aos reféns e os suplícios que, nas masmorras do ocupante, sofreram os palestinos recém-libertos e ainda sofrem os que nelas permanecem. Não é só questão da qualidade moral de cada lado, ou prova da justeza de tomar reféns para fazer cessar esses tormentos mediante a troca ora em curso. É o máximo constrangimento imposto ao Estado sionista, que precisa isolar os cidadãos que recebe de volta para evitar que eles expressem em público seu reconhecimento à conduta da resistência – o que alguns, ainda assim, fazem.

Essa é a fibra do povo palestino e de sua liderança. O grau de exposição e sacrifício de seus dirigentes – e de outros do Eixo da Resistência – é impressionante, um exemplo para qualquer organização revolucionária. Eles e suas famílias agem como o que são: parte de seus povos, sujeita aos mesmos riscos e sacrifícios. Por isso, têm autoridade moral para tomar iniciativas que acarretam a esses povos a reação sangrenta do inimigo.

Sobre a terra palestina, tombaram Yahya Sinwar e Mohammed Deif. Em solo estrangeiro, cumprindo missões relacionadas à libertação de sua pátria, Saleh al-Arouri e Ismail Hanyieh. Esses são os comandantes do Hamas que o sionismo dizia viverem nababescamente e a salvo de perigos no Qatar. (Tudo o que se falou sobre esse país quando da Copa do Mundo de 2022 é verdade; mas apenas o iguala a seus pares do Conselho de Cooperação do Golfo: Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Kuwait, Omã e Arábia Saudita. O que o difere deles e atrai o foco da hipocrisia ocidental é a posição mais decente no tema palestino – expressa, por exemplo, na cobertura da Al Jazeera).

Também cabe perguntar se as hostilidades desencadeadas em 07/10/2023 não deram a Tel Aviv a oportunidade de uma vitória estratégica consubstanciada na deposição de Bashar Al Assad e na tomada do controle de parte da Síria, que lhe permitiria avançar na expansão de suas fronteiras e na construção do “Eretz Israel” pregado por parte de seu establishment. A resposta é “não”: os sionistas não têm efetivo militar para controlar o território sírio – muito menos simultaneamente a uma guerra contra a resistência palestina – , nem população para ocupá-lo. Terceirizar tal tarefa a falsos jihadistas também não assegura nada, salvo a prazo curtíssimo.

Tampouco lhes servirá de muito a eliminação de altos dirigentes do Hamas, Hesbolá (cujo líder, Hassan Nasralah, libertador do Líbano, é outro mártir dessa guerra) ou do presidente do Irã, Ibrahim Raisi. Sem dúvida, eram quadros valiosos; tão valiosos que trabalharam com êxito para que a causa a que consagraram suas vidas os transcendesse. Sua luta e seu exemplo moldarão seus sucessores: em 2004, foi morto em combate por fantoches dos EUA, da Arábia Saudita e de Israel o líder e fundador do Ansaralah iemenita, Hussein Badreddin al-Houthi; 20 anos depois, dirigida por seu irmão, Abdul Malik al-Houthi, a organização assombrou o mundo ao impedir a passagem de navios pelo estreito de Bab-el-Mandeb em solidariedade aos palestinos e enfrentar a reação militar dos EUA e da Inglaterra a esse xeque econômico imposto a eles e a Israel.

Hoje, naquela parte do mundo, libertadores e revolucionários parecem brotar do chão. Guerreiros da dimensão de Saladino e que, como ele, serão lembrados pelos séculos dos séculos.

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Também por isso, tende ao insucesso o que Israel parece ter pretendido mediante esses assassinatos: alterar a composição das cúpulas do Hamas, do Hezbollah e do regime iraniano, eliminando dirigentes para que outros, presumidamente acomodatícios e/ou funcionais a seus interesses, ocupem o espaço deixado por eles. Essa é a interpretação racional de atos que, a princípio, parecem não sê-lo: mesmo – ou sobretudo – numa guerra, não se elimina a liderança inimiga sem sopesar muito as consequências sobre as negociações e a efetividade dos acordos, que depende da ascendência dos dirigentes que os firmem sobre suas bases.

Se a aposta de Tel Aviv era num Hamas que voltasse a ser – como nos anos 80 – mais próximo à Irmandade Muçulmana (organização historicamente funcional ao imperialismo anglo-ianque-sionista por atacar, de uma posição teocrática, governos e organizações árabes progressistas) que das demais forças palestinas com as quais compartilha o campo de batalha e os cárceres do inimigo, as listas de prisioneiros palestinos a libertar elaboradas pela resistência são um sinal de fracasso.

Elas expressam a composição da sociedade palestina e de sua frente de libertação, a unidade e a diversidade dos lutadores daquele povo heroico. A presença, nelas, de membros do Hamas é bem menor que o papel do grupo na Tempestade de Al Aqsa e que seu peso social e político em Gaza. Em contrapartida, há muitos integrantes da Fatah – que não tomou parte na operação e dirige a colaboracionista Autoridade Nacional Palestina (ANP). Obviamente, não como homenagem a essa conduta vil – pela qual os combatentes em questão, presos há décadas, não são responsáveis – , mas por reconhecimento ao que eles fizeram por sua pátria.

Isso é parte do legado de Sinwar. Entre 2006 e 2011, durante as negociações para a troca de prisioneiros palestinos por um militar israelense capturado pela resistência, houve um impasse devido à recusa de Tel-Aviv a pôr em liberdade um carismático dissidente da Fatah, Marwan Barghouti, e o líder máximo da laica e marxista Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP), Ahmad Saadat. Israel permitiu, então, que Sinwar, encarcerado havia 22 anos, conversasse, da cadeia, com outros dirigentes do grupo, supondo que, sem afinidade ideológica com ambos e interessado na própria liberdade, ele defenderia aceitar essa condição. Em vez disso, Sinwar se posicionou contra o acordo que excluía Saadat e Bargouthi – aceito, ao fim, pela maioria do Hamas.

A comunhão entre as forças da resistência e a conduta leal de umas para com as outras é a melhor resposta à insídia sionista sobre como o Hamas trataria comunistas, sempre usada contra pessoas e organizações de esquerda solidárias à Tempestade de Al Aqsa e à causa palestina em geral.

O mesmo se aplica à eterna cantilena sobre como os palestinos – e os muçulmanos em geral – tratariam as mulheres – que tem, no momento, sua melhor resposta na imagem da deputada da FPLP Khalida Jarrar livre, indo de uma masmorra israelense para sua casa.

Jarrar é, hoje, talvez, a mais destacada expoente de uma sólida tradição de enérgicas mulheres palestinas (Leila Khaled, Hanan Ashrawi, Soma Baroud) cujas vidas políticas e/ou profissionais falam por si, colocando-as ombro a ombro com os melhores de seus compatriotas homens e bastante acima das burguesas do Ocidente, de Israel e das periferias geopolíticas de ambos.

Nenhum integrismo religioso – aí incluído o judaico, em cuja transmissão matrilinear não poucos idiotas veem um inexistente matriarcado – é bom para as mulheres. Mas, sendo a Palestina uma nação em armas, suas condições concretas e o papel que a metade feminina de sua população desempenha tendem a se sobrepor a esses lastros ideológicos. O Hamas – que, ao contrário da FPLP e da antiga OLP, não tem mulheres combatentes nem em funções de direção – tampouco pode, e nem dá mostras de querer, tirá-las da vida política e confiná-las em casa.

É claro que, quando a Palestina for livre, haverá um embate sobre como organizar sua vida social e econômica. Por ora, ele não existe ou é secundário; e se as facções da resistência se mostraram aptas a levar a cabo, em conjunto, nas condições mais adversas, uma operação militar brilhante e um triunfo político maiúsculo, por que não seriam capazes de resolver de forma não-antagônica suas naturais divergências?

Henrique Júdice é advogado, jornalista, tradutor e professor. Membro da diretoria da Associação Brasileira dos Advogados do Povo Gabriel Pimenta (Abrapo). Realizou trabalhos de pesquisa e consultoria para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Esse texto expressa a opinião do autor.

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