A greve dos operários de ‘Eles não usam black tie’ foi vitoriosa

Era isto o que eu pensava em dizer a João Velho, mas João se antecipara a isto, João repetiu uma ou duas vezes que fora vitoriosa a greve, que a greve dos operários metalúrgicos em ‘Eles não usam black tie’ fora vitoriosa.  

A greve dos operários de ‘Eles não usam black tie’ foi vitoriosa

Era isto o que eu pensava em dizer a João Velho, mas João se antecipara a isto, João repetiu uma ou duas vezes que fora vitoriosa a greve, que a greve dos operários metalúrgicos em ‘Eles não usam black tie’ fora vitoriosa.  
Print Friendly, PDF & Email

Para João Velho e seus artífices atuadores,
  semeadores de flores sempre-vivas a um canteiro de obras

1

Foi vitoriosa a greve, não havia derrota não, a greve foi vitoriosasão palavras de João Velho durante nossa entrevista. João Velho repete emocionado como se fosse de agora o avanço dos trabalhadores, a cabeça erguida, seus passos firmes em meio a uma corrida de obstáculos e de intempéries de todo tipo se interpondo ao caminho, e eles avançando, os operários conformando, boca a boca, degrau a degrau, o movimento desde as bases no chão de fábrica, o sussurrar entre dentes, o cuidado com os espias infiltrados, com os oportunismos de primeira hora, e os operários avançam nas consignas que traduzem e expressam os anseios de todos, que lhes insufla a vontade à contrapelo quando graça o medo dos bandos fardados baixando a espora nas costas, nas pernas, o soco alemão no baço, a saraivada de pontapés no corpo de quem se organiza, e os operários avançam em contrafluxo formando em linha, numa brigada horizontal, lado a lado, reunindo-se às caladas da noite veloz, ágeis e invisíveis nos altos desta noite acoitada, e eles avançando, crescendo em número e consciência em meio à ausência de tudo, de tudo o que se soma e se acumula, de tudo o que se tatua à superfície da memória para uso diário – o prato que dói de vazio, o estômago que não se aguenta em pé, a família desmilinguida, a mulher que é mãe em dupla, tripla jornada, ela ele o pai a laje batida, eles extenuados, a casa que é tapera, a lama que engole as pernas até a altura dos joelhos quando chove, e eles avançando, os operários avançando como se tivessem bacamarte uma intifada, como se enlaçassem a grade do tempo ao revés, Otávio, Bráulio, Laura, Luã, Leon, Mara, Pamela, Gianfrancesco Fernanda, Tai, Tatiane, Milani, Pedro, Milton, Onofre, Mafra, Amorim, Nino, Tito, Zequinha, João, uma legião de nomes conflagrados eles avançam com palavras de ordem como valises que passam de mão a outra, a agitação tomando o cordão industrial, a semeadura arando o solo seco e duro do canteiro de obras, a agitação ganhando forma no palco, a greve se forjando na assembleia, a greve soprada na coxia, os braços levantados em roda, eles avançam até a sede do sindicato, bagunçar o coreto, desarrumar as poltronas das negociatas dos dirigentes, a greve se agrava e se agiganta, ela avança nos ensaios com figurino e cenário, o texto na ponta da língua afiada, a greve defendida no piquete, um cordel de gentes, um mosaico de sopapos, as tiras de verbo a ver se convence, foi vitoriosa a greve pá, não havia derrota não, a greve foi se fazendo vitoriosa, ganhando as ruas, invadindo a plateia, levantando as gentes no balcão, tomando de assalto a bilheteria, o proscênio se enxameando nas formas do grito que cresce, um grito de aborto, um grito de fazer curva e chegar aos longes – foi o labor deste processo que João Velho resolveu contar em um esforço coletivo junto a seu grupo de atuadores. 

Trabalho árduo, sem recursos, firmado no compromisso de cada um e de todos, trabalho de meses picotados em ensaios, em laboratórios onde se vê onde se escuta onde se troca, na leitura de texto que se marca que se repete que se gasta até que engata – os percalços e contradições na construção da greve que irá vencer e a sua história presentificada na peça que a evoca. É desta trama que se trata. Ela se mistura no que vai burilando, caldeirão de experimentos, sutileza de milagres que suam a trama que custa e que recua e que exaure e que avança também ela uma rede de pesca, ela se desnovela no texto. 

É a este cesto de quefazeres que nos lançamos em registro. É que, por vezes, se misturam as coisas no corpo do relato – teatro e história, exercício cênico e demanda política. É que por vezes, tantas vezes, se imbrica sob forma de nó cego o que se conta e o ato mesmo de contar – os atores tomando a si os fios do novelo de um tempo histórico que parece deslocado, situado a um bloco de passado estanque, sitiado num invólucro eivado de fatos e causalidades que não atentam ao ordenamento de agora. Será comove a estória que se conta? Será avançam os personagens sobre a passividade das gentes amortecidas a um plano de metas a alcançar? Será que o grito e a luta dos trabalhadores, operários atuadores avança ainda agora a este terreno árido de automatismos e conexões hipertrofiadas? Atualizar, repostar sobre o pano da mesa o carteado, presentificar o que possa parecer distante, obliterado, esmaecido pelos silêncios impostos e pelo coro dos contentes de sempre, talvez que seja uma clave possível à leitura, João Velho e seus companheiros de cena anunciam aos quatro ventos que está aberta a temporada de caça, que os dados estão dispostos e lançados, que é imprescindível não dormir no ponto, que o teatro é um bate-estaca cheio de pregos nas pontas e que não há cabeça corpo membros imune ao contágio, eles avançam, eles já estão às portas da cidade. 

Todavia sigamos o jogo de falsas pistas tomadas a este carretel complexo. 

É do processo o de que se trata e nele os atores se multiplicam e se desdobram em uma penca de atividades; produzir, desproduzir,  ensaiar, encenar – até parece que é muito o de que se descreve quando juntamos estas ações no sequenciado da frase, estes verbos em síntese, mas é muito mais ainda a fímbria do processo; é que teríamos que decompor cada verbo, decanta-los no seu fatiado de ações diárias e diminutas; a ordem do dia estirada sobre a esteira de ensaios, sobre o plantel de notações a serem resolvidas, por vezes em tempo recorde, noutras na distensão dos meses – um figurino que se vai ajeitando no corpo do personagem; a intimidade com o cenário, com os objetos cênicos, andar entre eles, tomar no aleatório um qualquer e refundar sentido, os milagreiros usam e abusam do realejo, um armarinho de gestos que se vai experimentando; o corpo do ator/atuador, matéria móvel-massa de contornos, vai se aprumando aos cuidados das palavras; o rudimento das técnicas de que se usa, de que se dispõe: o lápis deslocado, quase engolido, no vão dos lábios até que a voz acerte o ponto, até que o personagem emerja intacto e movediço, em sua coloquialidade, com os modos de sua prosódia; os exercícios de preparação da voz, aquecê-la até o lança-chamas do discurso, a voz empostada, é necessário falar para que todos escutem, e seguir, e seguir o corpo do atuador que avança, na contramão, um contra-tom, baixando a palavra o som o tom na boca como se as engolisse para que as gentes ingressem, cúmplices, partícipes, no que se vai tramando; será se percebe o tanto de trabalho que há aí? Será se se dá conta de que o teatro e a greve se constroem a cada dia desde cedo num jogo insistido obstinado até a colheita – deslocamento contínuo e devotado a cada pedaço de gesto para que a partitura se faça completa, atores em círculo, numa roda de celebração, João Velho de baquetas invisíveis às mãos, o espetáculo invoca o corpo coletivo da organização. A palavra merda que catapulta, incendiando por dentro e subindo em gira em regurgito num lança-chamas. Eles irão contar o passo a passo da greve vitoriosa em Eles não usam black tie. 

Eis a tarefa a que se lança a trupe, desempedrar a plateia, abrir alas para um teatro que salta, ele avança em ocupação, a sineta não custa a tocar, uma duas três e a luz baixa, eles já estão.

2

Mas giremos para trás as cordas do ensaio, voltemos até onde, na entrevista, João Velho levantava a voz no que dizia que não houve derrota alguma, Otávio, Bráulio e seus companheiros aguentaram firme o tranco que não era fácil. E foi vitoriosa a greve, o movimento operário organizado venceu na história que se conta e que, aos olhos de João Velho, é mais presente e atual e necessária do que antes. 

São palavras de João Velho:

Depois do fim da ditadura, com a reabertura, o teatro político, sobretudo o mais panfletário ficou chato. Agora volta a necessidade de a gente defender o óbvio, a peça Eles não usam black tie, por exemplo, não tem nada de panfletária, ela vai esticando a corda até o fim para deixar a plateia dançar por si própria. Só no final na cena da Maria e do Tião, o Guarnieri expõe a sua posição, ele diz ‘o fura greve é o fraco, o covarde’. Ao longo da peça, o Tião se defende, as questões dele são reais, tem gente na plateia que concorda com ele, gente que é mototáxi, não estou falando de gente com grana, rico, patrão, estou falando de gente que tá trabalhando com entrega, gente que diz ‘o cara vai ter filho, a situação dele é pesada, ele vai ter que cuidar do filho mesmo, digamos assim, o Tião não é um cara babaca, é um cara que não tem consciência da classe dele, ele tem medo de arriscar o emprego, mas é o que o Bráulio fala para ele: ‘arriscar o quê, arriscar salário mínimo é o mesmo que arriscar nada’, e depois você se perde, você se suja com a sua gente e você fica sozinho. Então esse senso de coletivismo versus o individualismo é super atual nos tempos que estamos vivendo.

Rio Memórias

Avanço um pouco no tema, menciono a questão da uberização das relações de trabalho, a desindustrialização crescente no Brasil há mais de trinta anos; certa ideia tão em voga como a do ‘empresário de si mesmo’ – espécie de planificação do sujeito neoliberal, hiper individualista, indiferente aos acúmulos históricos das lutas de sua categoria, sem quaisquer vínculos de classe ou com relação frouxa no trabalho, sem direitos garantidos, sem carteira assinada, sem férias remuneradas, sem final de semana pago, sem previdência social, sem aposentadoria digna, por vezes, sem ter sequer acesso aos meios de produção, ou os instrumentos necessários à prestação do serviço, e etecétera, nada absolutamente nada; atendendo como pessoa jurídica sob o eufemismo inflado e pomposo de microempreendedor individual. 

É que na questão que faço a João Velho também estou pensando nos ataques contumazes às representações sindicais, às organizações de luta coletiva dos trabalhadores na cidade e no campo – o assassinato de lideranças, a perseguição sutil ou deslavada aos que se organizam no campo popular; as diversas formas que assume a opressão político-econômica – seja através do seu braço armado legal ou paralegal (forças armadas, forças policiais, para militarismo e/ou bandas milicianas, agentes armados do tráfico de drogas); seja através do sistema jurídico-penal com seus juízes de toga e seus agentes carcerários em presídios que são morredouros; assim como os operadores da ‘trampa-legal’ com seus escritórios de advocacia para inglês ver e o mapa-múndi das leis que se multiplicam, que se esgarçam, que ‘intoxicam criminalmente’ o mínimo gesto do homem comum – aplanando no mais raso possível a sua grade de atuação desejada, neutralizando qualquer protesto, podando toda e qualquer insubmissão;  e segue a opressão das camadas populares, seja através do golpe de Estado midiático contínuo e onipresente que avança com seus mantras neofascistas e neoliberais (dois braços da mesma corrente da contraofensiva reacionária) sobre a consciência das massas; seja por intermédio do ‘comércio litúrgico’ das corporações religiosas disseminando passividade e teologia meritocrática e empreendedorista – eis o cenáculo no que talvez um personagem como o de Tião ganhasse ares de protagonista heroico e destemido, um parceiro ativo e multifuncional a fazer jus à participação [residual, claro está!] nos lucros da empresa para a qual ‘colabora’. Afinal, Tião é aquele que já dizia:

(…) eu fui um dos dezoito que furaram a greve. Só isso! Não te preocupa, Maria. O que interessa pra gente é que eu não vou perder o emprego. Eu entrei, furei a greve, o encarregado tomou nota do nome da gente. Deu mil cruzeiros pra cada um de gratificação e disse que a gente não ia se arrepender. Pra mim é o que basta. (…) Cada um resolve seus galhos como pode! O meu, eu resolvi desse jeito. Eu não podia arriscar. A gente precisa viver. (…) Greve é defesa de um direito. Eu não quis defender meu direito e chega! Tenho o meu emprego! (…) O que fiz tá feito e eu faria de novo. Não tenho nada que pedir desculpa a ninguém. O que fiz, faria de novo. Cada um resolve seus galhos do seu jeito! (…) Não tenho medo, sei me defender. Já deixei esse cincão [a mão fechada] na cara de muita gente! (…) Furei greve e digo para todo mundo.

É que Tião não quer repetir o roteiro que coube a seu pai Otávio e a tantos. Não quer gastar a vida na fábrica ou nas reuniões do sindicato para organizar a categoria. Tião não quer ter que matar um leão hoje, outro amanhã e ver que lhe falta munição e mantimentos. Talvez não queira que seu filho seja entregue aos padrinhos – como ele foi – para que pudesse ter uma promessa de vida melhor. É que Tião não quer ser operário e a seu ver fazer parte da construção da greve é ser ainda mais operário, é levar a fundo tal insígnia, é afundar nela como se fora um cancro que se carrega em silêncio e segredo, evitando dizer o nome, evitando o disse-me-disse, evitando explanar o fato até que o fato, num passe de mágica e simpatia, desapareça. Tião é dado aos poderes ocultos dos mistérios. Tião não quer que Maria envelheça na labuta em casa, entre fogão e tanque, roupa lavada para fora, sacola de mercado pesando no braço com estrias e varizes quando sobe as escadarias do morro da Providência. 

Tião não quer empregar o tempo de vida atrás das letras de livros que busquem compreender e decifrar e explicar aos companheiros as razões de tanta sofrência que não é castigo de deus, que não é por preguiça de um qualquer, que pelo contrário, é porque o terno de linho do patrão é o jaleco do operário, é porque a mansão do patrão é a água furtada de todos eles, é porque sua risada larga e frouxa faz ciranda nas costas dos muitos. Tião não quer oferecer o corpo à escritura dos fatos comezinhos, cotidianos, não quer que em sua pele se aprofunde os veios e os sulcos das lutas que custam, que

Homem em pé em frente a janela

Descrição gerada automaticamente com confiança média

custam, que custam, e que se arrastam sob chutes e bordoadas, e que se se levanta o corpo que cai num malabarismo de cordas e de vidas por um fio nada ainda é o que estará garantido, porque já chega outro chute, outra rasteira, outro tapete que se tira, outra porta fechada na cara dura, outra corporação fardada que se inventa como se fosse metade robocop, metade exterminador do futuro, futuro este dos que só tem de seu o que se lhes toma e eis que já chega, vem chegando outro cardume de impostos e de leis que saqueiam no que sacolejam meio mundo, e a gentes toda dentro, a Providência, a Leopoldina, o Santo Cristo, a Gamboa, o Alemão, a Maré, a Baixada, e que custa e que custa, e até quando será que para isto?

Tião quer empregar um modo outro aos ponteiros do tempo, quer que os minutos se precipitem ao futuro imediato, quer dar saltos cirúrgicos de amarelinha, quer elipses onde era passamento e andança, quer a sorte numérica de um jogo de azar, quer apagar no tempo o que for pesar e sacrifício, quer limpar as horas com sal grosso e detergente. Tião quer luvas impermeáveis para o quando da lida com a terra, uma lavoura cenográfica manipulada em ilha de edição e montagem, uma pinça em lugar do ancinho; ele quer o roseiral de plástico que não sofre da teimosia de morrer. Tião parece não aceitar o ramalhete de flores sempre-vivas que Otávio lhe oferece – as flores do deserto desidratadas, mas renitentes, flores que vencem o sertão das cobras e dos chacais, flor que não se rende a febre de intestinos do soldado amarelo de vidas secas, flor que resiste aos coturnos de sicários e das ‘volantes’, flor sem lugar à sombra, flor pisoteada de sol e de seca, mas flor sanguínea vibrátil pulsante que avança e que avança e avança sob acúmulos resinas rastros em sua educação pela pedra.

Aqui é João Velho tomando seu espetáculo sob as rédeas da análise crítica:

Quando eu coloquei o Tião para falar com a plateia daquela forma, a gente ficou com medo na hora, cara, parece que a gente tá defendendo o Tião aqui, e depois a Dona Romana e o Otávio, ou melhor, a Laura Campos Braz e o Pedro Rocha disseram ‘agora nossos papéis ficam mais difíceis, a gente tem que botar mais força’ – os atores falaram isso, porque essa sociedade, como você falou, tá pendendo pro Tião mesmo, tá pendendo pro pelego, e quem sou eu pra falar pra um mototáxi, pro entregador do ifood que tá ouvindo o tempo todo os coaches falando que ‘você tem que acreditar em si próprio’, os pastores, toda essa galera ‘granista’, e o Tião fala ‘a greve é um direito, eu não quero defender o meu direito e chega!’, então assim as pessoas estão sendo estimuladas a desistir dos seus direitos porque ‘cara, não quero o meu direito, e daí?! ‘E que que tem eu não ir pra greve, esse é um problema meu!’, – não!  Não, cara, você não tá entendendo, você faz parte de uma peça, e isso que tá rolando neste mundo é uma falta de conscientização. (…) O cara acha que só ele que faz, que ele só depende dele mesmo, é o que o texto fala ‘sozinho não adianta, sozinho não dá, não dá pra você achar que você vai resolver as coisas sozinho. No capitalismo, para você se dar bem você sempre vai ter que destruir alguém. É vitória em relação ao fracasso do outro, não é todo mundo se dando bem, aqui na peça o que se está falando é que não é pra todo mundo se dar bem, nem pra todo mundo se dar mal, é pra todo mundo segurar a onda…

3

Eu havia dito a João Velho de um certo desalento que me tocava quando da cena de Romana ao final da peça, a luz pouca, luz baixa, luz à pino sobre a mesa, o corpo de Romana vergado, o cabelo contido em coque, os braços sobre a madeira barata, a cabeça pendida para o lado, a máscara de rosto sob o peso dos anos, será que Romana estava cansada de guerra, será que Romana estaria farta de espetáculo e de luta? Romana quieta, silenciada, condensando nos olhos a resma de imagens sacudidas de ainda agora e de há tanto – o filho que lhe restou escorrendo dos companheiros na coxia da fábrica, e Tião irá embora pra cidade, irá passar fome entre estranhos, e Romana lhe será o abraço fatiado que contém e libera – ela que o conhecia tanto porque fora dela que ele saíra, como também dela saíra Jandira num dia alegre ao anúncio da vida que chega e já chega, e que não custa, é que Jandira se fora dela, da vida e de Romana, e agora Tião, para onde e até quando este roteiro, este ensaio?

Romana extenuada de combates, será ela guarda consigo o anúncio do fim? Final de partida, as cartas da sorte recolhidas, nenhum prato ou talheres dispostos, bule de café, guardanapo de pano, a boca do fogão já um nada de fogo morto, a fornalha deposta, ninguém chegará a estas horas, nenhum grito de criança recém nascida, algum parto fora calendário, o estouro falhado da champagne que é sidra, a simpatia dos sete trevos, o sete espadas, e avança a hora que avança, a luz parece que baixa ainda mais, sequer as notas rasgadas de Juvêncio – que já não toca perto, e sequer que chove porque chover seria algo mas não; o cruzeiro foge das vistas como a um lapso, não há dança, não há gira, já nada é ensejo, somente Romana permanece inteira àquela hora, os fatos caídos em cascata, a memória como película que corre solta e avança aos tropeços como draga que repuxa os filetes do que fora – o piquete dissolvido; alguns companheiros arrancados da construção da greve e levados às dependências odiosas do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS); a delação em surdina ou assumida de Tião e Jesuíno; Otávio com hematomas e traumas na altura do tórax, Bráulio incluído na lista dos procurados e o dia e as horas seguindo, aos saltos; a opressão policial costumeira em seu sicário ofício de se imiscuir entre as filas das organizações populares; os noticiários disseminando terror entre as gentes comuns e repetindo a exaustão que greve é baderna, é balbúrdia, é arruaça, espécie de refrão infame a semear paralisia, discórdia e prostração, que greve é isso e é aquilo e aqueloutro, e Tião tomando para si este caldo de cultura entornado como se fora um copo de café fortíssimo, sem voltas, sem recuo, cheio de empáfia e petulância; e Tião e suas frases feitas aos carimbos das corporações, e Tião e suas certezas de hora e protocolo, e Tião e sua boa nova de sempre e de há tanto, boa nova gasta em biscoito comido aos fornos do patronato; e Tião sob o tempero de gestos, um armarinho de condutas prefiguradas – o olhar mirando reto sua paisagem de pedra e bravata, a narina discretamente empinada, o queixo de aço em plataforma, as palavras como numa proclama de modos a ver se pesca cúmplices e parceiro, as urgências de uma vida que tem de ser resolvida àquele passe de mágica e que é para ontem, e que é para a véspera, e que é para a semana que passou; e toda essa carga de ajeites e ritmos em desafio de metas a cumprir e a cumprir e a superar a meta a cumprir que apenas e tão somente cabe a um passo solto e solitário, solito solito, reinado do indivisível eu em drible de bola uma finta um salto de obstáculo, uma tacada de números nos jogos de azar, um voo de andorinha que inventa para si verões que não estão em qualquer horizonte, e o filho que é Tião se vai, ele se vai. E Romana segue para a mesa, à cata do feijão.

No centro de tudo isto, Romana circunspecta, o corpo extenuado, as pernas juntas num recato, a luz pouca fatiada em sombra, o vazio de gente povoando os quatro cantos do ambiente, a panela cuidadosamente disposta ao colo, os dedos em pinça como se a um trabalho de debulhar grão a grão, separando na toada da hora definitiva o que for pedra, os ossos do ofício, do que for alimento, a semente crioula que faz durar o que insiste. Era isto o que eu pensava em dizer a João Velho, mas João se antecipara a isto, João repetiu uma ou duas vezes que fora vitoriosa a greve, que a greve dos operários metalúrgicos em ‘Eles não usam black tie’ fora vitoriosa.  

E o pano baixa…

Este texto expressa a opinião do autor.

Notas:
1 Eles não usam black tie foi escrita por Gianfrancesco Guarnieri em 1955 e encenada pela primeira vez em 1958. No espetáculo dirigido por João Velho, o elenco é composto por: Pedro Rocha, Mara Uchoa, João Amorim, João Velho, Laura Campos Braz, Luã Batista, Nino Batista, Pamela Alves, Tai Xavier e Tatiane Melo.

2 João Velho conta que buscou ‘atualizar’ a peça escrita em 1955, respeitando sobretudo o texto, mas compreendendo que o teatro contemporâneo incorporou novos elementos que não tinham lugar no teatro realista que se fazia àquele tempo. Como exemplo desta atualização, João comenta que buscou quebrar a quarta parede nas vezes em que coloca o personagem Tião se dirigindo diretamente ao público, num tipo de inflexão brechtiana. Nos termos de João Velho: “Eu resolvi botar na cena que Tião está conversando com Jesuíno, quando eles estão discutindo sobre furar a greve e boto o Tião olhando para a plateia, com a plateia vendo que Tião vai furar a greve, ele tá falando sobre furar greve na casa do pai, a plateia tá vendo, e ele olha pra plateia e diz ‘que foi? Eu vou furar greve sim! Se quiser me dar desprezo pode dar, ele fala com a plateia ‘que que foi, meu irmão!’, assusta a plateia, dá um sentimento de perigo teatral, isso pra mim fura, quebra a quarta parede, é uma coisa brechtiana, e já me dá um alívio porque estamos em um diálogo com a contemporaneidade de alguma forma, é um teatro moderno ainda, mas tá com um frescor, isso com relação a linguagem. Já em relação ao texto em si, eu pensei isto também, mas eu pensei que quando a gente vai fazer Hamlet, não tem nada a ver a poeirada do teatro, a forma como vai ser falada, as gírias da época, a época que a peça está passando, em relação a tudo isto a gente é fiel ao texto e, assim como no Hamlet que não é sobre isto o que se trata, não é sobre uma corte, sobre um rei, não é sobre o príncipe, é sobre política. Não se trata de falar sobre a nobreza daquela época, não é uma peça para saber história, Eles não usam black tie também tem isto, é uma peça sobre a luta de classes, talvez numa época anterior a de agora talvez fosse datado, mas agora tá mais atual do que nunca”.

3 Cf. GUARNIERI, G. Eles não usam black-tie. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011 (p. 93-94 e 96-97). Grifo nosso.

4 Como no poema de João Cabral de Melo Neto: “Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, frequentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições de pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la. Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse, não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma”. IN: MELO NETO, J.C. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008 (p.207)

5 No filme de Leon Hirszman (1981), a cena a que me refiro é dividida entre os personagens de Romana e Otávio, diferentemente do que na peça de 1955, na que Romana está solitária. Mais além dos aspectos que descrevo sobre esta versão, no filme há a cumplicidade do casal na sua teia de cuidados, o gesto das mãos a dividir o engenho, o joio o trigo, a fava o grão, até que as mãos se toquem num afago doce, umbilical; mais além, e ainda, a troca sutil de olhares sem que o ruído ou o murmúrio das palavras povoem a cena. João Velho bem lembrou que no filme de Hirszman, o personagem Bráulio, companheiro da luta e da vida, é assassinado pelos capangas da polícia. A cena de Romana e Otávio é cena subsequente a do velório de Bráulio. Diríamos que é, desde aí, do ajambrado de batalhas ganhas e de batalhas perdidas, de avanços e de retrocessos, em síntese, dos sulcos profundos à pele dos personagens, que a cena se destila no tempo largo de cinco intensos minutos. E depois, será a marcha, a passeata – que acena a vitória da greve, e a condução do féretro como mártir da ação coletiva. No longa-metragem Solanas explicado às crianças (2024), que escrevi com Bento Vilela e que dirigi, reconstruo esta cena da cata de feijão, em clara homenagem-citação a Gianfrancesco e a Leon, porém na cena que construímos é Ana, a mãe, e Pino, o filho os que repartem a tarefa de semear e acolher. No meu filme, entretanto, o ato político da manifestação em defesa dos direitos fundamentais da colônia de pescadores será no dia seguinte, sendo a cena da mãe e do filho a expressão do acolhimento desta com relação a sorte do filho, principal liderança da comunidade de pescadores da região.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
Agora, mais do que nunca, AND precisa do seu apoio. Assine o nosso Catarse, de acordo com sua possibilidade, e receba em troca recompensas e vantagens exclusivas.

Quero apoiar mensalmente!

Temas relacionados:

Matérias recentes: