Organizados em torno do dirigente comunista Zé Porfírio, os camponeses do norte de Goiás organizaram os Conselhos de Córrego, embriões do novo poder revolucionário. Foto: Reprodução
“O jeito é lutar por nosso chão, a história não falha, nós vamos ganhar”
No Norte de Goiás na década de 50 ocorreu uma das mais importantes lutas camponesas do país: a Revolta Camponesa de Trombas e Formoso. Os camponeses pobres que sofriam com a grilagem de terras se organizaram e defenderam seu chão dos latifundiários, em um combate dirigido pelo camponês José Porfírio, militante do Partido Comunista do Brasil (P.C.B.).
Além de Zé Porfírio, participaram da revolta auxiliando os posseiros diversos outros militantes do Partido Comunista, inclusive o camarada Ângelo Arroyo (que mais tarde faria parte do grupo de militantes que rompeu com o apodrecido PCBrasileiro e assumiram a tarefa de reconstituir o Partido enquanto partido revolucionário, posteriormente foi um dos comandantes destacados da Guerrilha do Araguaia).
ANTECEDENTES DA REVOLTA
A região de Trombas e Formoso era praticamente inóspita até a década de 50, quando Juscelino Kubitschek anunciou a construção de Brasília e da rodovia que ligava Belém a Brasília. Naquele momento, as terras da região voltaram a ser valorizadas. Até o momento em que os latifundiários empreenderam uma repressão feroz contra os camponeses da região, com o objetivo de fazer a grilagem de todas aquelas terras. Para isso, contaram com o apoio de diversos advogados e até juízes.
Os camponeses que viviam ali, cansados de esperar as promessas de Getúlio Vargas com a Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG), resolveram ocupar aquelas terras que pela lei do próprio Estado burguês-latifundiário estavam disponíveis à ocupação.
Imagine a situação de um camponês pobre que vive a trinta anos em uma região, vivendo do seu próprio trabalho – coisa rara em um país onde reina o latifúndio semifeudal e seus regimes de servidão e semi-servidão, onde reina o Foro, o Cambão e a Meação. Sendo obrigado, certo dia, a sair da sua terra por conta de um grileiro, se encontra sem casa, sem chão, sem nada. Esta é uma situação que indigna e revolta.
Os grileiros da região exigiam a saída dos camponeses das terras ao mesmo tempo em que exigiam um “arrendo” que não existia, com a justificativa de que os camponeses utilizaram de uma terra que não era deles e deveriam pagar por isso. Os camponeses resistiram não entregando sua produção para os grileiros, mas logo a coisa se agudizou bastante, quando um sargento pago por um grileiro tentou assassinar o camponês Nego Carreiro.
Quem pode contar essa história melhor é Valter Waladares, militante do PCB e combatente na guerrilha de Trombas e Formoso:
“O Nego Carreiro era um camponês, natural de Morrinhos (sul do estado), que havia se fixado no Coqueiro de Galho. Ele afirmava que não iria sair daquelas terras e, muito menos, entregar o que ele tinha conseguido produzir com tanto trabalho; dizia que era uma injustiça e fazia muita propaganda para os outros camponeses, no sentido de resistir à ofensiva dos grileiros. Ocorreu que o Peroca, juntamente com um sargento — que já estava comprado para eliminar o Nego — e alguns soldados foram até a posse do Nego Carreiro. Como ele não estava, mandaram um menino ir chamá-lo. Quando o Nego chegou, o grileiro anunciou qual era o seu intento. Não sei o que o Nego disse, mas levou o sargento a sacar o revólver. Só que o Nego atirava muito bem e tinha um belo 38. Neste momento, o Nego caiu no chão, acertou o sargento no meio da testa e feriu um soldado. O resto do pessoal do grileiro correu, deixando o corpo do sargento abandonado, até que os próprios camponeses o enterraram.”
“As coisas se precipitaram. Aí sentimos a necessidade de mandar logo as pessoas para ajudar. Tínhamos certeza de que viria uma resposta da polícia e dos grileiros, estes inclusive já estavam recrutando um grande número de jagunços. Neste momento, sentimos que a resistência iria se aprofundar, se tornar armada. Aí foi para lá inicialmente o Geraldão (líder camponês da Barranca, região da Colônia agrícola de Ceres); o Soares e o Zé (antigo mascate, ligado ao movimento camponês). Lá, eles começaram a organizar a associação, conversaram com os camponeses, fizeram algumas reuniões. Nesta época, nós prevíamos que as coisas se complicariam ainda mais porque era tempo de colheita e o Camapum estava mobilizando os jagunços para confiscar a produção.” *
A GUERRILHA E A CONSTRUÇÃO DOs embriões do NOVO PODER
Em 1954, ocorre o primeiro combate entre os posseiros e os representantes do velho Estado e do latifúndio. A vitória foi para os camponeses que botaram para correr os jagunços. Essa vitória representou o início de um triunfo muito maior. Na segunda fase do conflito, a organização dos posseiros espantava os latifundiários e os políticos.
Mesmo nas atitudes mais covardes do velho Estado, como de utilizar crianças e mulheres de escudo humano, os camponeses conseguiram derrotá-los. Durante o conflito os camponeses apenas progrediram: continuaram produzindo nas suas terras. Liderados pela recém fundada Associação dos Lavradores de Trombas e Formoso construíram ali embriões do novo poder revolucionário. Nos chamados conselhos de córrego os camponeses discutiam e tomavam as decisões.
Após diversas investidas falhadas do latifúndio e do velho Estado, os camponeses finalmente derrotaram seus inimigos. Com Zé Porfírio como deputado estadual começaram uma grande movimentação para que o governador de Goiás legalizasse as terras, e mais uma vez foram vitoriosos. Tudo caminhava bem na luta dos posseiros, sendo essa experiência uma das grandes vitórias camponesas, que prosseguiu até o golpe fascista de 1964, quando a ditadura recém instalada decidiu que iria acabar com a Associação, matando e torturando diversos camponeses.
José Porfírio e outras lideranças foram obrigadas a fugir. José escapa em meio à um tiroteio em Goiânia e vai para o seu estado natural, o Maranhão, seu filho Durvalino, de 17 anos, é torturado para revelar o paradeiro do pai e desaparece, Zé Porfírio junta-se com o camarada Alípio de Freitas para fundar o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), adota o nome de Feliciano e continua empenhado na luta camponesa até que em 1972 é preso e passa 6 meses no DOI-CODI de Brasília.
Após ser libertado, foi visto por pouquíssimas pessoas, já que a ditadura desapareceu com José poucas horas depois dele por os pés para fora da cadeia. Nunca mais foi visto, seus restos mortais nunca foram encontrados, a família de José é uma das muitas que nunca conseguiram enterrar seus parentes vítimas do terrorismo de Estado.
Não é de hoje que o velho Estado reprime o povo. A luta camponesa de Trombas e Formoso é prova de que os camponeses podem derrotar o velho Estado quando bem organizados. Apesar da destruição da associação e do desaparecimento de José Porfírio, temos hoje um movimento camponês de novo tipo, bem consolidado e organizado que realiza a revolução agrária e constrói os embriões do novo poder, os Conselhos de Córrego hoje são as Assembleias Populares das Áreas Revolucionárias. A consciência política está mais elevada do que antigamente e a revolução agrária é uma realidade.
Hoje, enquanto escrevo, diversas famílias que estão organizadas pela Liga dos Camponeses Pobres (LCP) nas antigas terras da fazenda Santa Elina estão sendo reprimidas pelos carniceiros do velho Estado e os guaxebas do latifúndio, mas em nenhum momento eles abaixaram a cabeça ou se deram por vencidos. Pelo contrário, a cada dia que passa resistem ainda mais, fazendo o velho Estado recuar. Trombas e Formoso não é exemplo único do triunfo camponês na história, os fatos estão mostrando que “Todos os reacionários são tigres de papel. Na aparência, os reacionários são terríveis, mas na realidade não são assim tão poderosos. Vendo a longo prazo, não são os reacionários mas sim o povo quem é realmente poderoso.” – Mao Tsetung
* Trombas e Formoso: o triunfo camponês, Ana Lúcia Nunes, 29/04/2006.