A guerrilha dos pretos do Benedito (Parte 3)

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A guerrilha dos pretos do Benedito (Parte 3)

Um grupo de escravos afro-brasileiros realizou durante 40 anos uma série de ataques vitoriosos, com métodos similares à guerrilha, e transtornou as classes dominantes do Espírito Santo e de certo modo até o Império de Pedro II.

Surgidas em S. Mateus, ao norte da hoje capital Vitória nos anos 1800, as ações rebeldes estão sendo consideradas por historiadores entre as mais destacadas lutas quilombolas do país, 200 anos após Zumbi dos Palmares (ver tais fontes nas Partes 1 e 2 desta reportagem).

Religião assustadora

Chefiados por Benedito Meia-Légua (inspirador da expressão “Será o Benedito?”), na região norte do E. Santo, no vale do Rio Cricaré, onde há dezenas de comunidades quilombolas, diversos pretos escravos fizeram história.

Entre eles uma figura que se tornou lendária,  Viriato Cancão-de-Fogo. Cancão é um pássaro, também conhecido como gralhão.

Dizia-se que Viriato só andava na escuridão, nunca na luz do dia, e era temido por seus poderes, por praticar a cabula. Esta era uma religião de matriz africana, que se tornou assustadora para fazendeiros e autoridades das classes dominantes.

Segredos dos islâmicos

A cabula foi criada na Bahia pelo guerrilheiro capixaba Benedito Meia-Légua (portanto o líder de Viriato) em suas andanças divulgadoras da rebelião abolicionista.

De perfil sincretista, a cabula baseou-se em elementos secretos dos negros muçulmanos malês e do grupo étnico banto (este trazido da África Central/Angola). Ao adotar também uma pitada de influência indígena, é considerada às vezes como precursora da umbanda, credo típico do Brasil.

A baiana cabula (praticada também no ES, MG e RJ) provocava pânico nas classes dominantes brancas por possuir um conteúdo subversivo antiescravatura embalado em rituais clandestinos, invocando espíritos ancestrais guerreiros, que fortaleciam o ânimo do povo preto em se libertar e em combater o sistema que o oprimia.

Adotada em massa no Cabula, bairro da capital baiana que conservou seu nome, segundo Olga Cacciatore o vocábulo “cabula” é derivado do termo “cabala”, que chegou ao conhecimento da etnia banto através dos negros mulçumanos (Dicionário de cultos afro-brasileiros, Olga G. Cacciatore, Edit. Forense Universitária, 1977)  

A cabula e a Revolta dos Malês

Embora não tenhamos achado registro sobre a presença dos guerrilheiros de Benedito na famosa Revolta dos Malês, baiana, o fato de a religião criada por ele conter ingredientes islâmicos mostra um vínculo evidente com o episódio rebelde ocorrido na Bahia e com a religião muçulmana.

A Revolta dos Malês é considerada o maior levante de escravizados da história do Brasil. Palavra do idioma iorubá “imalê“, que significa “muçulmano” ou “islâmico”, foi uma revolta popular de escravizados africanos que ocorreu na capital Salvador, em 24 de janeiro de 1835.

Os malês também eram conhecidos como nagôs na Bahia, designação dada aos falantes da língua iorubá na antiga Costa dos Escravos, hoje parte litoral de Benim, Togo e Nigéria.

Os nagôs islâmicos tinham o costume de registrar os acontecimentos em árabe, a língua sagrada dos muçulmanos. Anotações encontradas servem para entender os motivos e antecedentes do levante. Fato curioso é que, neste caso, os escravos eram mais cultos que seus donos, na maioria analfabetos. 

Candomblé com amuletos de Alá

A Revolta, além dos aspectos político e social (fim da escravatura e conquista da liberdade) teve também um caráter religioso muito forte. Entre os nagôs havia aqueles que eram devotos dos orixás, do candomblé, embora tivessem proximidade com o islã e em sua maioria fossem islâmicos. Ou seja, houve uma mescla de crençasː os rebeldes, mesmo os que seguiam as diretrizes do candomblé, andavam com amuletos protetores dos malês (muçulmanos).

Nesse encontro das duas religiões (candomblé e islamismo), os nagôs (malês e filhos de orixá) tiveram um ponto de convergência que foi útil para a unidade da revolta, mesmo sem que se tenha obtido o  sucesso objetivado.

Devido a uma denúncia anônima a polícia sufocou o levante malê, que embora mal sucedido, foi muito importante, e ajudou a enfraquecer o sistema escravocrata existente no país.

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