“E nós também somos brasileiros, e nós também somos revolucionários, e nós também somos mártires (…) o sangue dos escravos dos homens é irmão do sangue dos escravos dos povos, ambos caem na face dos algozes, ambos clamam vingança ao braço do futuro” (Castro Alves, Gonzaga ou a revolução de Minas, 1867).
Pode-se dizer, sobre a literatura brasileira, e talvez mesmo sobre toda a literatura latino-americana, que da forma violadora dos senhores nasceu a substancial contestação dos subalternos. A devassa da Inconfidência Mineira teve significados econômicos e políticos claros, mas, culturalmente, refletiu também esta realidade. Buscava-se ali arrasar não apenas os fulgores revolucionários, mas também a terra fértil de uma intelectualidade nacional com aspirações burguesas incipientes, descritas em versos tanto quanto em discursos e cartas conspirativas. Esta colocação, porém, não contempla ainda fielmente o processo muito mais violento, nos tempos coloniais, imposto contra os povos autóctones e os povos forçosamente transmigrados para as terras brasileiras sob o jugo da escravidão. No caso destes, é muito mais exata a exposição fanoniana, exposta na obra Em defesa da revolução africana, que define a violência cultural do colonizador como um engessamento e mumificação, desvalorização e exotização das manifestações não-ocidentais de visão de mundo e correspondentes expressões ideológicas e artísticas. O indianismo romântico da Iracema de José de Alencar (não à toa considerado por parte da tradição acadêmica como o pai do romance nacional), em nossa história literária, é a culminação deste propósito, por um lado. A figura de Castro Alves, porém, impõe-se, à época e de forma prototípica e emblemática, como a negação interna e externa do projeto, como a necessária pedra no meio do caminho, que não se desloca do caminho e acaba por se tornar parte dele, mas, ao mesmo tempo, o torna em um problema a ser considerado por retinas fatigadas – e também, o que é mais importante, pelas viçosas. Esta condição de problema, muito além dos aspectos teóricos e descritivos, é a própria natureza das transformações ocorridas na literatura brasileira na modernidade histórica, principalmente.
Não tão surpreendentemente, a incompleta, porém nada episódica, transformação da colônia em nação (a grande nação semicolonial que ainda existe) tem seu ponto de viragem mais ou menos próximo à perseguição, por vezes caricata, que permeia o século XIX e início do século XX, de uma identidade na literatura. O problema nacional brasileiro, neste quesito, confunde-se com o problema literário no plano filosófico e político. Questionamo-nos de um lado: somos um povo nacional, mas a forma nação é adequada ao conteúdo colonial/semi-colonial de nossa economia? E de outro: o sistema literário nacional foi consolidado, mas, podemos dizer que seu conteúdo nacional está em acordo com sua forma ou é dela, de alguma maneira, o motivo? Igualmente, a forma imposta pela violência exploradora e repressora busca anuviar o conteúdo real para suprimir sua revolta, a revolta daqueles que são seus criadores diretos ou seus interpretes. Dos encômios e hipérboles performáticas e pedantes, no geral, do barroco e de parte do arcadismo às satíricas e desafiadoras pontuações da primeira fase do modernismo, há sempre a tentativa de se dizer a terra, existindo, neste sentido, um continuum óbvio que não deve ser esquecido. Porém, há também uma pronunciada contradição, contradição esta que pode ser expressa, de forma diluída, como a contradição entre o idealismo e o materialismo, mas também entre o deísmo e o subjetivismo e coletivismo (de forma reticente). Desde o primeiro comentário de Pero Vaz de Caminha sobre os indígenas e os autos do padre José de Anchieta à descrição do Frei Francisco do Rosário, comentada por Antonio Candido (Iniciação à Literatura Brasileira: resumo para principiantes), do abacaxi como uma fruta análoga à vontade divina, evidencia-se o deísmo; o subjetivismo é característica clássica do romantismo, como melhor evidencia sua segunda geração, emuladora da geração do mal do século; subjetivismo e coletivismo são duas forças concorrentes no modernismo, como nos demonstra, do lado subjetivista, o psicologismo de algumas obras e contos de Lispector e, do lado coletivista, a transgressão gramatical de Mário de Andrade, a poesia política de Drummond, a tradução da cultura e da língua como fenômeno regional em Guimarães Rosa, a crítica social e populismo em Jorge Amado etc[1]. Mesmo a obra de Lispector, porém, é necessário pontuar seriamente, traz em si a crítica da condição feminina na sociedade, transcendendo o subjetivismo de tipo romântico.
Claro, não há como considerar unilateralmente e apressadamente a produção literária brasileira e as diversas expressões culturais que são englobadas dentro da literatura oficial e não-oficial. É, primeiramente, impossível dizer que a literatura oficial, considerada arte, não foi, em muitas ocorrências, precedida pela cultura espontânea, de sistema próprio ou transgressora, mesmo que apenas na logística, do sistema vigente. Anedótico, neste sentido, é o comentário de Jorge Luís Borges sobre a obra Martin Fierro e a poesia gauchesca. O escritor argentino considera que a poesia gauchesca difere da poesia dos gauchos, na medida em que a primeira é a reprodução artificial, própria dos homens cultos, da segunda, música dos payadores. Da mesma forma, considerando-se que a violência cultural contra as terras brasileiras era tamanha que não pudemos, até os anos 1808, à época da fuga da família real para o Rio de Janeiro, ter acesso à prensa tipográfica, fosse controlada por censores ou não, é possível dizer que a importância de um Gregório de Matos, um dos mais destacados poetas barrocos e críticos, à época, da sociedade colonial, teria sido perdida não fosse sua sobrevivência cultural na memória coletiva e o trabalho do autor e de terceiros para transcrever parte dos seus poemas recitados, os quais só viram a página de livro no século XIX. As primeiras academias literárias, no século XVIII e XIX, reconheceriam a importância deste resgate cultural e confrontar-se-iam, na figura de Feliciano Joaquim de Sousa Nunes, em seus Discursos político-morais (1758), obra publicada em Lisboa, com a dura realidade da desvalorização e ostracismo do escritor e, mais amplamente (ou mais restritamente, a depender da apreensão do conceito), do intelectual brasileiro. O autor teve sua obra confiscada e destruída, assim como diversos membros das academias literárias, ao longo dos anos, seriam investigados, presos, exilados e tachados de subversivos por adotarem ideologias iluministas.
O Gigante de Pés de Barro colonialista e imperialista buscou impor sua estética, mas a matéria fonética, a interface semântica, a interpretação, a sintaxe, tudo que é humano, social e psíquico, teimou em encarar, em buscar, mesmo que em agonia, a liberdade na literatura, em movimento análogo às diversas lutas regionais, motins e revoltas que pululam na história do Brasil e de toda a América Latina. Prova disso é a diferenciação linguística necessária entre a nossa língua e aquela falada em Portugal. São o mesmo e o outro, em tantos aspectos quanto quisermos contar. O padre José de Anchieta foi o primeiro a encarar esta alteridade, ainda no século XVI, buscando promover, no melhor de suas condições, um encontro cultural com o indígena, uma transculturação, de fato, nunca conclusa – invertida por Heitor Villa-Lobos, em suas bachianas, nas quais vê nos movimentos contínuos de nossa expressão musical uma impressão do europeu –, produzindo uma gramática do tupi, a qual forneceria o material para a formação da primeira língua brasileira, a Língua Geral, bem como textos em tupi. O “déspota ilustrado” Marquês de Pombal foi responsável pela proibição da Língua Geral. N’O triste fim de Policarpo Quaresma, vemos a personagem principal encarar a problemática desta língua em meio à arroubos nacionalistas propositalmente caricatos e frequentemente frustrantes. A própria escrita de Lima Barreto, nesta e em outras obras, é um desafio estético, por vezes sob o disfarce de desafio gramatical, das concepções de eruditismo vetustas e ao mesmo tempo muito vigentes ainda do parnasianismo e de toda a tradição clássica.
Lima Barreto, um pré-modernista muito mais marginal, muito mais universal, que a grande maioria dos pitorescos escritores da primeira fase desta escola, parece desafiar o leitor a encarar o novo status da nação frente ao mundo e, principalmente, frente a si mesma. Sua escrita é a grande anunciadora de uma época tanto quanto de um povo. Apesar de não gostar, em vida, de ter sua obra comparada à de Machado de Assis, há uma coincidência grande entre as obras dos autores, que é também contraditória, e justifica um certo encanto comum do leitor: ambos dão voz à cidade, mais profundamente às transformações ocorridas da metade do século XIX ao início do século XX no cenário geográfico urbano brasileiro, especificamente no Rio de Janeiro. A importância disto está em se deixar o todo exótico e ideal do indianismo e ir até às partes concretas do país, movimento desenvolvido melhor dentro do naturalismo, de certa forma, mas que encontra em Machado sua voz mais reconhecível (ao menos no que concerne a então capital) e em Lima Barreto, herdeiro desta tradição, sua voz mais crítica ou mais congruente, até a segunda fase do modernismo. No primeiro, encontramos a exaltação, mesmo que ácida, da vida citadina, uma performance estética impecável de todos os elementos que compõem a existência carioca desenvolvendo-se em meio à ação, ao drama e à comédia. No segundo, a genialidade se demonstra de forma sutil, quando se levanta, por exemplo, em uma breve passagem d’O triste fim, a condição de uma senhora, Maria Rita, que deixara de ser escrava após a abolição, a quem se atribui “saudade” de servir, uma vez que sua vida é uma de alguém que não tem passado, a quem foi negada a história de vida própria, e de quem se pede que cante músicas dos tempos de escrava, pedido este feito por um membro da família que a possuía, no bairro Benfica.
Outro ponto chave para a compreensão do olhar de Lima Barreto sobre a urbanização é a ideia fixa de Quaresma de tornar-se camponês e mostrar a riqueza da terra, bem como de transformar a situação agrária do país. O Quixote carioca, que termina seus dias fuzilado na mesma cidade de onde saiu, defendendo a dignidade dos presos da Revolta da Armada e criticando o governo que buscara apoiar em nome da nacionalidade, da pátria em construção, do republicanismo “heroico”, é muito lúcido em apontar, em plena ebulição dos projetos draconianos de organização da miséria nos espaços urbanos, a centralidade da questão da terra e da produção agrária, a condição profundamente agrária de nosso país. Não muito antes da escrita do livro e exatamente no período em que ele se passa, surgiria, em decorrência principalmente da crise agrária, a primeira favela, no Morro do Livramento.
Em última instância, podemos considerar O triste fim de Policarpo Quaresma como o protótipo final ou o primeiro exemplar do romance verdadeiramente brasileiro em forma e substância, bem como o sucessor espiritual da poesia de Gregório de Matos, no que tange a impressão um pouco picaresca da sociedade e, em menor grau, do anti-herói que se tornaria, por excelência, nosso herói, esta última pressentida por Manuel de Almeida em sua única obra, Memórias de um sargento de milícias, que, porém, está muito mais próxima do Macunaíma, como bem explana Antônio Cândido em seu artigo Dialética da malandragem (1970). O ineditismo de Barreto, assim como sua capacidade sintética, está em usar o que havia de melhor e mais avançado e próprio, do ponto de vista estético e cultural, na tradição literária e na língua, coisas que não se confundem, confrontar com isto o contexto histórico e político-militar da República, e não se deixar levar nem pelo vernaculismo forçado (que serve ao ou aceita parcial ou totalmente o exotismo conservador) nem pelo motivo sempre impúbere da pura e simples denúncia. O autor encara, de forma desapaixonada, o processo “civilizatório”, negando os seus louvores barrocos e não o ignorando idealisticamente ou egoisticamente como os românticos. Vai além da crítica muito mais remanescente de Balzac que de Dickens do realismo machadiano e eleva, com maestria, a intenção e a intuição naturalistas. O resultado é o que todos que podem ler sua mais conhecida obra certamente reconhecerão: a destruição de um mito por seu mais franco arremedo, a negação da jornada heroica republicana e positivista, em curso, pela transformação do (anti)herói em sua vítima fortuita e corriqueira, vítima também da própria comédia de erros, que lhe torna, por fim, em um desiludido antes de um morto. Interessante, de um ponto de vista histórico, é notar que a Revolta da Armada marca também uma das primeiras intervenções ianques no território da República, primeira política e depois militar. Anunciava-se a época imperialista.
Se é impossível negar que, em resposta ao que apontamos no início do texto sobre a situação particular da expressão cultural dos povos autóctones e historicamente escravizados, Lima Barreto busca desenvolver crítica muito mais mordaz em Recordações do escrivão Isaías Caminha, atitude que lhe custa o sustento e a reputação, que suas meditações propriamente políticas se fazem muito mais concretas em suas crônicas e artigos de jornal, devemos, ainda assim, admitir a pujança d’O triste fim. Esta se dá, claro, em parte pelo fato desta ser sua obra maior, mas, igualmente, e mormente, pela metalinguagem que guarda em si não apenas a história da literatura brasileira, de sua formação, seus caminhos e descaminhos, mas a profecia zombeteira de sua renovação, bem como pela universalidade do seu tema. A invenção do romance brasileiro por Lima Barreto se dá, outrossim, pela invenção, em nosso país, do romance que se nega a ser romance, isto é, que se nega a buscar estar acima das classes, dos confrontos políticos, das convulsões sociais. Não à toa a catarse de Policarpo Quaresma se dá no momento em que ele se embate com a crueldade e covardia contra a gente miserável e miscigenada.
Este grandioso trajeto ainda não encontrou, nem encontrará apenas na pura escrita, seu fim. É um fruto da história do povo, que contorna-se com linhas distintivas substanciais e formais precisamente quando passamos da condição colonial à semicolonial, quando a exploração e a violência se tornam tanto mais claras nas consciências. A literatura brasileira, de forma geral, foi conhecida sensivelmente e atingiu grandes ápices em diversos de nossos autores, antes e principalmente depois de Lima Barreto, porém, resta ainda construir sobre a pedra angular de um Castro Alves, sobre o arcabouço da desilusão primeva de um Quaresma com a pátria, que o torna em um brasileiro, como anunciam as primeiras páginas do livro, sim, mas em um brasileiro vitimado pelo próprio sonho de ir além da herança dos escombros coloniais, resta ainda construir, dizemos, uma literatura do povo brasileiro, como arma, preparação ideológica e frente de combate contra a imposição formalista e o engessamento cultural.
*Marconne Oliveira é formando em Letras, professor de redação, escritor e tradutor.
[1] Se quiséssemos traçar paralelos continentais com o coletivismo, poderíamos ainda nos remeter, por exemplo, à historiografia mágica de Garcia Márquez em Cem anos de solidão e ao épico sociológico e geográfico de Neruda, em seu Canto geral. Neruda, de fato, é transgressor máximo do gênero épico, cria uma mitologia que é de fato uma antropologia, seus heróis são frutos do povo, a benção que recebem é a história das suas lutas, levantam-se do chão repisado e recusam-se a desistir na pugna contra a quimera colonialista e imperialista. N’As uvas e o vento, ainda, coloca-se em par com Maiakovski, torna a história da luta proletária, da Rússia à China, na culminação da história da humanidade, revelando no sorriso manso de Mao Tsetung a inevitabilidade da vitória da revolução.