A mando de cartolas e da Justiça, PM massacra torcedores no Maracanã

A mando de cartolas e da Justiça, PM massacra torcedores no Maracanã

Multidão de torcedores do Vasco foi alvo da PMERJ. Foto: André Fabiano/Código19/Estadão 

Não é apenas dentro de campo que o Campeonato Carioca de Futebol, em outros tempos conhecido como o “mais charmoso do Brasil”, dá sinais de uma morte trágica. Após uma confusão logística e judicial generalizada promovida por cartolas de Fluminense e Vasco às vésperas da decisão do primeiro turno do torneio estadual, dezenas de milhares de torcedores foram reprimidos pelo Batalhão Especializado de Policiamento em Estádios (Bepe), órgão pertencente à PM, nos arredores do já finado Estádio Jornalista Mário Filho.

O imbróglio teve início quando o Vasco, mandante da partida, anunciou a venda de ingressos para o Setor Sul aos seus torcedores. O presidente do Fluminense, Pedro Abad, decidiu impetrar na Justiça uma solicitação reivindicando a mesma porção do estádio para seus torcedores que, por ora, fora atendida.

Na versão do mandatário das Laranjeiras, o Fluminense teria o direito de posicionar seus torcedores no Setor Sul do estádio, mesmo como visitante, uma vez que essa seria uma previsão do contrato firmado entre o clube e o Consórcio Maracanã S/A. Já Alexandre Campello, presidente do time de São Januário, defendeu que seu clube deteria desde 1951, por tradição, o espaço.


Pedro Abad, presidente do Fluminense (esq.) e Alexandre Campello, presidente do Vasco (dir.). Fotos: Lucas Merçon/Fluminense e Rafael Ribeiro/Vasco


A origem do impasse

No ano anterior ao citado pelo cartola, ficou acordado entre os clubes cariocas que o primeiro campeão no Maracanã recém-inaugurado para a Copa do Mundo de 1950 daquele ano teria o direito vitalício de posicionar sua torcida em um dos lados do estádio. Ao se sagrar campeão estadual depois de vencer o América na final, o Vasco escolheu o lado direito do estádio, o famigerado “Setor Sul”. No entanto, ironicamente por ocasião de uma segunda Copa do Mundo no país mais de seis décadas depois, a história mudou. Após as “reformas” que desfiguraram o estádio, um consórcio privado da Odebrecht passou a administrar o local e a firmar contratos de acordo com seus próprios interesses.

Iniciava-se então, poucas horas antes da partida, um jogo de interesses pessoais e uma série de trapalhadas do Poder Judiciário do estado do Rio de Janeiro.


Cronologia dos fatos

Para a surpresa do Fluminense, numa reunião marcada para que se chegasse a um consenso, o Consórcio Maracanã S/A se posicionou alegando que o direito de escolha do setor pelo clube não estava previsto no contrato em casos onde o mesmo não fosse o mandante da partida. Frente ao impasse promovido pela não aceitação das propostas por nenhuma das partes, a Justiça resolveu acatar uma nova solicitação do Fluminense, na qual o clube pedia a interrupção das vendas de ingressos sob pena de multa de 50 mil reais por hora, desconsiderando que, naquele momento, mais de 30 mil bilhetes já haviam sido vendidos. Com isso, a quebra de braços se intensificou até culminar numa arbitrária decisão da desembargadora Lucia Helena do Passo, determinando pela realização da partida com portões fechados, também sob pena de multa, dessa vez de meio milhão de reais. A ação, novamente, havia sido solicitada pelo Tricolor.

A desembargadora Lucia Helena do Passo, paparicada por parlamentares em sua posse. Foto: Reprodução/Blog do Ferreirinha

A diretoria do Fluminense não se aquietou e passou a fazer declarações oficiais por meio de seu presidente em tons belicosos para a partida, citando o aproximar de uma “guerra”, apesar de pedir para que seus torcedores não fossem ao estádio. O Vasco, por sua vez, declarou que enfrentaria o risco das multas pela venda de ingressos e pela entrada de sua torcida no estádio, uma vez que a argumentação contratual do Fluminense havia sido refutada pela própria concessionária.

Como resultado, no dia da partida, poucas horas antes do certame, milhares de torcedores, majoritariamente do Vasco, já cercavam o estádio na expectativa da abertura dos portões, ao qual o Cruzmaltino havia prometido que seriam abertos às 15h. No entanto, mesmo após o início do jogo às 17h, os torcedores continuavam do lado de fora do estádio; dessa vez por conta do Juizado Especial do Torcedor presente no Maracanã, que não liberou os acessos ao estádio alegando submissão à decisão da desembargadora.

Foi aí que a PM do estado do Rio de Janeiro, por meio do Bepe e de sua cavalaria, deu início ao espancamento generalizado de torcedores. Como não podiam esvaziar as ruas entrando para as arquibancadas, os adeptos se tornaram um bloqueio humano para o trânsito da região. De dentro de um estádio apático e sem cantos, mas com a bola rolando, jogadores e comissões técnicas demonstravam certa tensão com os barulhos ininterruptos de bombas lançadas pela polícia para que os torcedores deixassem os arredores do estádio e voltassem para casa. Do lado de fora, cassetetes, spray de pimenta, bombas de efeito moral, balas de borracha e de fogo foram utilizadas contra duas torcidas que estavam representadas em massa por mulheres, crianças e idosos. Segundo a PM, esses torcedores tentaram invadir o estádio.

Vascaíno de 53 anos levou cassetete no rosto por não conseguir correr (esq.); menino de 14 anos mostra ferimentos na perna (cen. esq.); jovem é atendido por moradores com buraco de tiro no joelho (cen. dir.); munições estavam vencidas e/ou raspadas (dir.). Fotos: Leonardo Sul

As dezenas de milhares de pessoas que faziam uma bonita festa se converteram em algumas centenas de desnorteadas em meio a um cenário de destruição, com feridos ao chão, crianças perdidas dos pais e idosos que não conseguiram fugir.


Medidas se confirmam impopulares

Frente ao total rechaço da população por conta das decisões tomadas tanto pelo judiciário quanto pela repressão, e até mesmo da imprensa, uma vez que a transmissão da partida havia se convertido em um velório, a desembargadora voltou atrás e decidiu que os portões fossem liberados para os torcedores quando a partida já se encaminhava para o segundo tempo. Tudo depois que centenas de famílias foram para suas casas.


Jovem em fuga protege bebê em meio à repressão da polícia nos arredores do Maracanã. Foto: Alexandre Cassiano/Agência O Globo

Nas arquibancadas, a torcida do Vasco em maioria esmagadora, juntamente a minoritária torcida do Fluminense, foram vistas ecoando de forma unida cantos de protesto, principalmente contra o presidente do Fluminense, Pedro Abad. Apesar de uma grande massa de populares terem adentrado ao estádio, com ou sem ingressos, já que não havia mais tempo hábil para o processo de revista e passagem em catracas, o espetáculo já estava manchado definitivamente, e mais uma vez de sangue. De torcedores. Do povo.

{gallery}0repressaomaracana{/gallery}

 

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
Agora, mais do que nunca, AND precisa do seu apoio. Assine o nosso Catarse, de acordo com sua possibilidade, e receba em troca recompensas e vantagens exclusivas.

Quero apoiar mensalmente!

Temas relacionados:

Matérias recentes: