O povo indígena amazônico Kaapor, revoltado com o descaso das gerências federal e estadual, decidiu implantar um sistema de autogoverno e autodefesa em seu território.”Não esperamos justiça do homem branco, nós é que construímos nossa justiça.”
Neste outubro, aniversário de Darcy Ribeiro, AND resgata livro pouco conhecido do antropólogo sobre a tribo, que ele chamava de Urubus-Kaapor.
Quem são
Os kaapor, falantes da língua tupi-guarani, vivem hoje no norte do Maranhão (TI Alto Turiaçu)e parte no Pará.Eram tidos no começo dos anos 1900 como um dos povos nativos mais hostis do Brasil. Sua “pacificação”, em 1928, demorou quase 70 anos, e a tribo ostumava dizer que, naqueles contatos iniciais, ela é que “amansou” os brancos.
Seu território é cobiçado por empresas estrangeiras e nacionais pois lá existe o Cinturão Gurupi, um vasto depósito aurífero, cujos recursos são estimados em 158 mil quilos de ouro, quase o mesmo do total da produção dos USA, que é de 200 mil quilos.
Um “Conselho de Gestão”
Em uma Nota os Kaapor revelaram porque e como se autorepresentam e se autogovernam desde 15 anos atrás.
Eis o texto assinado pelo Centro de Formação Saberes Ka’apor:
“Nós povo Ka’apor estamos desde 2009 lutando para defender nossos direitos, nosso território para a gente viver com dignidade. Passamos muitas dificuldades e o governo só ajudou a destruir nosso território.
Só a nossa associação indígena (Tuxa Ta Pame) ajudou a gente a se organizar, conseguir projetos e a defender nossos direitos. Nem o governo e nenhuma outra entidade escutou a gente, lutou com a gente, passou sacrifícios com a gente e nem ficou do nosso lado na hora dos ataques dos madeireiros, das invasões, das mortes, na hora das cobranças do governo para proteger e dar segurança pra nós.
Temos nossa organização interna que tem a ver com nossa cultura. Temos nosso Conselho de Gestão Ka’apor, que são pessoas, lideranças de aldeias respeitadas que não fazem coisas erradas, que não vivem como karai (branco), que valorizam e respeitam a nossa cultura, respeitam as outras lideranças, que escutam os conselhos das aldeias e dão conselhos para outras lideranças.
Temos nosso Acordo de Convivência que ajuda a gente viver melhor em nossas aldeias.
Por tudo isso, a gente comunica vocês que nenhuma entidade do Maranhão pode falar, representar, escolher pessoas e decidir por nós. Nós não vamos aceitar. Só o nosso Conselho de Gestão Ka’apor com a aceitação da maioria dos conselhos das aldeias”.
Marchando dentro do território
Um grupo de entidades indígenas e indigenistas brasileiras e da América Latina fez uma saudação ao povo Kaapor pela iniciativa de este promover uma Marcha (Pelo Bem Conviver na Floresta por Autonomia, Autogoverno e Autodeterminação) dentro de sua área ancestral, contando um pouco da história das suas lutas.
A seguir um resumo adaptado do texto:
“Uma vez mais o povo Ka’apor através de sua organização ancestral Tuxa Ta Pame demonstrou sua força, nos dias 12, 13 e 14 de maio. Eles denunciam as atrocidades que os povos originários, comunidades tradicionais quilombolas e camponeses sofrem pelas mãos do latifúndio, de madeireiros, da mineração, do garimpo, dos especuladores de crédito de carbono e do agronegócio.
O Estado brasileiro e governos do PA e MA,inclusive o governo federal, são peças ativas desse projeto de genocídio do povo Ka’apor.
E o assassinato?
Em solidariedade aos Tuxa Ta Pame, exigimos uma resposta da PF ao assassinato de Sarapó (chefia tribal,em 2022), revelando seus mandantes que estão ativos e continuam perseguindo lideranças e apoiadores.
(Autoridades) facilitam a exploração ilegal dos bens da floresta como faz a Agência Nac. de Mineração (ANM) quando libera títulos minerários dentro e no entorno da TI Alto Turiaçu, com o conchavo do IBAMA (Inst.Bras.do M.Ambiente e Recursos Naturais) apadrinhado pela elite do agrobusiness, pelo ostracismo efetuado pela FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e Ministério dos Povos Indígenas aos povos que não concordam com sua política institucional de amansamento da rebeldia indígena frente ao apagamento de suas raízes e culturas via políticas colonialistas.
Como o Tuxa Ta Pame é o único grupo dentro do território que se opõe a essa nova forma de colonialismo empresarial-político-estatal sofre com a desigual correlação de forças onde até prefeitos (bolsonaristas) do Partido Liberal neonazista garantem advogados e todo tipo de assessoria político-jurídica- policial para realizar investidas contra todos aqueles e aquelas que dizem não a esse projeto de dominação dos povos da floresta. Temos que denunciar permanentemente!
Por isso os Ka’apor liderados pelos Tuxa Ta Pame não esperam a justiça do homem branco, constroem justiça com autodefesa para seu povo e território e, experiências de governança que demonstram ter clareza de seu projeto de vida.
Algumas entidades assinantes:Núcleo de Educação Popular Paulo Freire (NEP/UEPA)/Asamblea de Articulación de Los Pueblos del Kollasuyu, Argentina /Mirasawa Murukutu Tupinambá Kuri’o Ytinga – Maery /Red de Descolonialidad y Autogobierno /Sindipetro – Sind.dos Petroleiros PA/AM/MA/AP/ – Sind. Docentes Univers.Est. Pará (SINDUEPA)/ Ald.Tupinambá Padeiro (BA)
Descoberta: diário de Darcy em livro
Neste outubro, caso ainda vivo, o respeitado antropólogo Darcy Ribeiro faria aniversário de 102 anos. Existe um livro pouco conhecido que Darcy publicou pouco tempo antes de falecer, justamente a respeito da tribo que o encantava desde décadas atrás.
Trata-se da obra Diários Índios: os Urubus Kaapor, editado em 1996 pela Companhia das Letras, em forma de cartas à esposa Berta Ribeiro, cuja Introdução (adaptada por AND) diz:
“Berta, abro este diário com seu nome. Dia a dia escreverei o que me suceder, sentindo que falo com você. Ponha sua mão na minha mão e venha comigo. Vamos percorrer mil quilômetros de picadas pela floresta, visitando as aldeias índias que nos esperam, para conviver com eles, vê-los viver, aprender com eles.”
Assim começam os diários de campo nos quais Darcy, entre 1949 e 1951, anotou o que viu e ouviu nas duas expedições que fez às aldeias Kaapor, na fronteira entre o MA e o PA. Toda a riqueza cultural desses índios está registrada aqui, de maneira simples e apaixonada. Ouvimos, junto com o jovem Darcy, a descrição que os índios fazem de seus costumes, seus antepassados próximos, suas origens míticas. E, à medida que nos envolvemos com o relato, vamos concluindo da grande perda que representa para todos nós a destruição violenta dessas sociedades.