Para Erika Mariano, que fotografa o mundo.
1
Era o dia 19 de maio de 1976 – dia largo, aziago, interminável. Todavia as razões elencadas para tal juízo as deixaremos para um segundo instante deste nosso ensaio. Por ora, nos situemos ao artifício da leitura compartilhada sobre o registro fotográfico acima. Se trata de um joguete e de uma ilusão. Pouco importa. Fundamental deixar claro que as regras do joguete fomos nós que as criamos de forma irrestrita e arbitrária. Importante adiantar, desde logo, que resolvemos nos colocar a uma roda de interlocutores de ocasião – fabulados todos ao sabor deste que escreve; como personagens que são, não se lhes concederá qualquer garantia de direito de resposta. Para com estes constructos de voz ventríloqua, combinamos as regras de um jogo aleatório no que lhes cedemos a voz afim de evitarmos o solilóquio daquele que escreve. E eis que sentados como que a uma roda de companheiros, a fotografia começa a girar de mão em mão sem que se lhes diga algo mais do que o nome dos tipos que a compõe. A cada qual destes convivas imaginários, lhes forneceremos o parquíssimo tempo de três minutos. E então que eles se põem, de posse do registro temperado em sépia, a perscrutá-lo como quem procura ler os gestos de cada um dos retratados. O que segue abaixo é o resultado desta enquete ilusória e ficcionada. Está inaugurado o teatro de marionetes.
Talvez que o primeiro dos interlocutores viesse a destacar da fotografia, certa aflição e tristeza estampada à fisionomia de Ernesto Sábato, e fora esta, de fato, a sua impressão quando pusemos a ponta do dedo sobre o dorso de Sábato – a cabeça pendendo; os olhos escorregados ao canto inferior da lente bifocal; a pele vincada à altura do pescoço como signo de tensionamento; os dedos recolhidos à palma da mão semicerrada. – Não resta dúvidas de que Sábato está desolado, em desconforto! – Nada respondemos no intuito de evitar as trelas que não dispomos aos portadores de certeza categóricas. E lançamos fora o primeiro de nossos bonecos desalmados.
À direita do escritor de Sobre heróis e tumbas, o segundo de nossos auxiliares ensaia tomar o protagonismo da fala a destacar a condição esbelta, altiva do sacerdote fotografado: Trata-se de um ancião com ares de resoluto, sabedor dos mistérios entre o céu e a terra, é o que me parece, ao menos… Está-se falando sobre Leonardo Castellani, e ele continua: – As mãos concavadas ao suporte de boina e pasta; certa expressão viril apesar das prerrogativas da batina; os olhos alongados para fora do quadro e dos rigores dos protocolos, é tudo o que tenho a dizer! De nossa parte, assentimos com a cabeça, de certo que a leitura da imagem sugere o que se dispôs acerca de Castellani. Todavia falta dizer. Guardemos conosco o que dele sabemos. Ao menos por ora.
No que tange a Jorge Luís Borges, não sabemos se seria o caso revelar ao nosso terceiro fantoche, a condição avançada e progressiva de sua cegueira. Não a do boneco manietado em cordas, claro está, mas a do autor de Funes, o memorioso. É que nos queda a impressão de que se silenciarmos acerca deste fato estaríamos furtando ao nosso hermeneuta de plantão importante peça ao seu esforço analítico. Talvez que ele sugerisse a indiferença de Borges estampada ao seu olhar sem norte, longínquo, transcontinental; espécie de empáfia ou ares de superioridade à europeia; como se fora em gesto automático que Borges reproduzisse os motes aristocráticos – um seu flanar pelos caminhos bifurcados dos bosques e esculturas, lagos e laranjais aos Jardins de Versalhes, a bengala em madeira e cabo de metal com adaga camuflada. Ainda no que tange a Borges, escutamos de nosso novo parceiro de apostas o assanhamento de conjecturas acerca da rugosidade escarpada do lóbulo da orelha do distinto escritor argentino (seria uma orelha de abano ou de mercador?! – mas rechaçamos as troças afinal Borges não haveria de ser confundido com o seu personagem que não consegue esquecer…). E insiste o nosso bonequinho de trapo: – É que nos parece infinita em sua dimensão topográfica essa orelha, não te parece também? Na certa que ele, como escritor, deve saber bastante bem a imprescindível tarefa social e política da escritura – porque escrever seria ouvir, sobretudo isto, ouvir com olhos atentíssimos as vozes que vem do povo. Palmas e silêncio ao comício improvisado é o que lhe voltamos a este boneco sem medida às coisas. Não sabe nosso camarada acerca do rosário de Jorge Luís Borges um terço, uma conta…
E por fim, e então, acerca do tipo mais à esquerda da fotografia o que dispomos em informação ao nosso quarto interlocutor é que se tratava de Horacio Esteban Ratti, poeta e ensaísta, presidente da Sociedade de Escritores Argentinos (SADE). Apenas isto e não mais. E, de pronto, nosso companheiro salienta que parece ter cabido a Ratti o anúncio de que a fotografia deva ter sido o último dos protocolos da afamada reunião. – Mas sob que bases esta impressão? – lhe perguntamos. – Note o gesto de cumprimento, a mão que se encaminha a este senhor de bigode, em farda, este senhor com olhar complacente e inseguro. – Está falando de Videla? Ele nos faz que sim com a cabeça recolhendo em seguida o figurino que lhe dispusemos ao cenário improvisado. Da leitura da fotografia, tratemos agora do que lhe escapa de todo à superfície de seu registro. É que nos parece que a profundidade de campo, tantas vezes, trespassa os limites do quadro.
2
Era o dia 19 de maio de 1976. A fotografia imortaliza apenas uma parte daquele encontro. Seus comensais nos arrebatam à mesa de trabalho com o que se lhes restou do hálito avinagrado da ceia funesta e indiferente. Importante que se descreva a locação da cena infame: estava-se à Casa Rosada, palácio tomado de assalto ao povo pelo governo de facto. Quase cinquenta anos depois, eis que estamos a evocá-lo como se tal reunião ainda demandasse de nós um blocado de palavras, um emaranhado de argumentos que busca esgarçar a farsa e a ignomínia. Como restabelecer o mote daquele almoço sem antes descrever a ocupação dos talheres, pratos e taças de um cristal fino, reluzente e imprestável, ou o seu cardápio de etiquetas e sofisticações? Whisky, Jerez e suco de frutas. Pudim de verduras, broto de aspargo, salsa branca e molho golf. Garrafas de vinho envoltas em guardanapos de pano branco. Ravioles com molho de tomates. De sobremesa, saladas de frutas com doce de leite ou creme, conforme o gosto. Finalizamos com café – este, o testemunho de Esteban Ratti.
Era pauta da reunião, para além dos afagos e cordialidades, o quefazer da cultura, os acordes de uma política que a alavancasse uma vez a ‘ordem restabelecida no país’. É que a Argentina estivera tomada pelo caos generalizado e pela violência cometida pelos subversivos apátridas em nome de uma ideologia forânea. Esta era a senha de ingresso distribuída previamente à reunião. Ninguém que lá estava passara incólume e disperso a esta cadeia de fatos e certezas, afinal sequer que havia completado dois meses do fatídico 24 de março de 1976 no qual se consumara o Golpe de Estado na Argentina. O homem em farda, à fotografia, atendia por ser o comandante da Junta Militar, Jorge Rafael Videla, católico fervoroso, devoto de todas as horas, o cabelo engomado para trás, o sapato impecavelmente lustrado, o bigode simetricamente aparado. Fora ele quem enunciara em cadeia nacional as seguintes palavras:
(…)
Face ao imenso vazio de poder, capaz de nos afogar na dissolução e na anarquia; à falta de capacidade de convocatória que tem demonstrado o governo federal; às reiteradas e sucessivas contradições evidenciadas na adoção de medidas de qualquer espécie; à falta de uma estratégia global que, conduzida pelo poder político, enfrentasse a subversão: à carência de soluções para problemas básicos da Nação cujo resultado tem sido o incremento permanente de todos os extremismos; à ausência total de exemplos éticos e morais que devam servir de exemplo na condução do Estado; à manifesta irresponsabilidade no manejo da economia que provocou o esgotamento do aparato produtivo; à especulação e a corrupção generalizada, e tudo isto somado se traduz em uma irreparável perda do sentido de grandeza e de fé; as Forças Armadas, em cumprimento de uma obrigação irrenunciável acaba de assumir a condução do Estado. (…) A condução do processo será exercida com absoluta firmeza e dever de ofício. A partir deste momento, a responsabilidade assumida impõe o exercício severo da autoridade para erradicar definitivamente os vícios que afetam o país. Para isto, além de continuar combatendo sem trégua à delinquência subversiva aberta ou encoberta, se extinguirá toda demagogia, não se tolerará a corrupção ou a venalidade sob qualquer forma ou circunstância, tampouco qualquer transgressão à lei ou oposição ao processo de reparação que se inicia (…).
Assinam tal proclama:
Jorge Rafael Videla, Comandante Geral do Exército
Emilio Eduardo Massera, Comandante Geral da Marinha.
Orlando Ramon Agosti, Comandante Geral da Aeronáutica.
A estratégia discursiva impressa na proclama parece cindir o tempo histórico em duas bandas repartidas pela metade: um antes e um depois. Entre eles, o hiato de tempo suspenso pela panaceia do Golpe de Estado, ou tal como se o menciona ao comunicado oficial: ato prestigioso, heroico e estamental de defesa e salvaguarda da Nação. A prerrogativa constitucional das Forças Armadas como garante da ordem econômico-política e social está presente no chamamento que parece referendar as palavras dos chefes militares. Seriam eles o último dos recursos, a retaguarda moral de reintegração do que se fizera caótico. Se antes era o vilipêndio e o descalabro, agora se inaugurava o processo de sua reorganização. Se antes fora a corrupção, o desmando e a anarquia, agora se instalava o reino da ordem e da justiça imprescindíveis a restauração da integridade do Ser Nacional. Seria necessário, nos termos da Proclama, sob a ajuda de Deus, a responsabilidade e esforços coletivos de todo o país. Era preciso formar consenso, estender tentáculos, fazer avançar em patchwork a trama enrijecida que sustentasse a gravidade das ações. Desde as hostes religiosas tal como a encarnada na voz do Monsenhor Bonamín, no primeiro dia do ano de 1976, proferida na Base Aérea de Chamical, em La Rioja: O povo argentino cometeu pecados que só podem ser redimidos com sangue. Era imprescindível que se fizesse retumbante o brado da chusma publicitária de Clarín, La Nación, Gente e tantos periódicos e semanários a serviço de seus interesses de classe.
Pérolas de propaganda e agitação como estas pululavam aos olhos das gentes:
[Subversão] é também o conflito entre pais e filhos, entre pais e avós. Não é somente matar militares. É também todo tipo de enfrentamento social. (Gente, n.560, 15/04/1976)
O terrorismo não é considerado como tal somente por matar com uma arma ou colocar uma bomba, mas também por ativar, por intermédio de ideias contrárias à nossa civilização ocidental e cristã, outras pessoas. (Clarín, 18/12/1977)
Subversão é toda ação clandestina ou aberta, insidiosa ou violenta, que busca a alteração ou a destruição dos critérios morais e da forma de vida de um povo, com a finalidade de tomar o poder ou impor a partir dele uma nova forma baseada em uma escala de valores diferentes (…). A ação, portanto, está dirigida à consciência e à moral do homem a fim de afetar os princípios que o regem para substituí-los por outros consoantes com sua filosofia; (…) a ação subversiva afeta todos os campos dos afazeres nacionais, não sendo sua neutralização ou eliminação uma responsabilidade exclusiva das Forças Armadas, mas do país e de toda a sociedade. (La Nacíon, 20/04/1977).
Conforme mencionamos, menos de dois meses haviam passado desde o renascimento do mundo aos interesses do capital monopolista internacional sob a plataforma programática da política econômica encetada por José Martínez de Hoz, e imposta pelo tacão de ferro da canalha fardada vende-pátria, seria celebrado aquele almoço. Não fora a primeira das refeições com setores estratégicos nacionais. No dia 09 de maio de 1976, a ceia fora compartilhada com representantes da comunidade científica. No dia 17 de maio, com as autoridades religiosas da Conferência Episcopal Argentina. Dois dias depois, 19 de maio de 1976, Jorge Luís Borges, Ernesto Sábato, Horacio Esteban Ratti e o sacerdote Leonardo Castellani estiveram repartindo os quitutes em corpo presente. Falavam em nome da cultura. Porém nem todos puderam estar presentes.
3
Talvez que tenha sido nesta máquina de datilografar que Haroldo Conti, em carta datada de 02 de fevereiro de 1976, tenha escrito a Roberto Fernández Retamar para contar a situação em que se estava vivendo naquela Argentina de meados dos 70’. São palavras de Conti:
No que tange à situação, as coisas andam de mal a pior. Fui informado, de forma confidencial por um amigo militar, que correu risco de vida para me passar essa informação, que se espera um golpe sangrento para março. Inclusive os serviços de inteligência calculam uma cifra de 30 mil mortos. (…) Nossa casa, por ser ampla e reservada, tem servido de esconderijo de companheiros que estão com problemas… Diariamente, tem havido ‘quedas’ e eles precisam de nossa atenção e cuidado, movendo meio mundo para localizá-los antes que os matem.
Aos que tomam de forma apressada a este depoimento, poderia soar incongruente que os desaparecimentos forçados, os assassinatos à luz do dia, estivessem se dando desde antes do golpe de Estado que implantou a última das ditaduras militares na Argentina. Importante seria atentar que, já desde o ano de 1974, em pleno governo constitucional de Juan Domingo Perón, e sob os auspícios do ministério de Bem-Estar Social, a cargo de José López Rega, se financiou e organizou o grupo paramilitar TRIPLE A (Alianza Anticomunista Argentina) responsável pela perseguição e assassinado de 1122 pessoas entre militantes políticos, lideranças sindicais, operários, estudantes, intelectuais, professores. Tal cifra consta do relatório oficial da CONADEP sobre a violação aos direitos humanos.
Destaquemos ainda o acionar do Comando Libertadores de América, também conhecido como Escuadrón Libertadores de América ou Grupo Interrogador de Detenidos, umbilicalmente em conformação com o Exército argentino uma vez que suas principais lideranças eram compostas por membros do alto oficialato tais como o Gal. Luciano Benjamín Menendez e Héctor Perez Vergez, em ação conjunta com oficiais do setor de informações D2 da Polícia de Córdoba.
Nas palavras da pesquisadora Melissa Paiaro:
(…) o Destacamento de Inteligência 141 Gal. Iribarren se encontrava sob as ordens do General Menéndez. Este departamento abrigava a central de inteligência, da qual dependiam quatro seções: Política (1ª Seção) – que tinha como função a centralização e seleção de informação acerca de atividades sindicais, políticas, estudantis, etc; Calle (2ª Seção), destinada a diligências, escutas e infiltrações; Operações especiais (3ª Seção – OP3), encarregada de operativos, sequestros, interrogatórios e translados; e Logística (4ª Seção), que provia material para o funcionamento necessário do acionar repressivo e clandestino. O pessoal responsável por estas tarefas era composto por oficiais de menor patente, suboficiais e pessoal civil destacado ao serviço de inteligência.
Todavia, tamanho dispositivo de violência operado pelo braço estatal em sua franja complexa e complementária de legalidade e ilegalismos não para por aí. No dia 05 de fevereiro de 1975, sob o Decreto n. 261/75, o governo constitucional de Maria Estela Martínez de Perón, conferiu às Forças Armadas argentinas o direito de neutralizar e/ou aniquilar àqueles que foram designados como ‘elementos subversivos’ na Província de Tucumán, situada ao noroeste entre Salta, Santiago del Estero e Catamarca. Tomemos a letra do referido Decreto:
A Presidente da Nação Argentina em Acordo Geral de Ministros,
DECRETA:
Artigo 1°: O Comando Geral do Exército procederá a executar as operações militares que foram necessárias com efeito de neutralizar e/ou aniquilar o acionar dos elementos subversivos que atuam na Província de TUCUMÁN.
Artigo 2°: O Ministério do Interior porá a disposição e sob controle operacional do Comando Geral do Exército os efetivos e meios da Polícia Federal que lhe forem requisitados através do Ministério de Defesa, para seu emprego nas operações a que se faça referência no Artigo 1°.
Artigo 3°: O Ministério do Interior requerirá ao Poder Executivo da Província de TUCUMAN que proporcione e coloque sob controle operacional o pessoal e os meios policiais que lhe forem solicitados pelo Ministério de Defesa (Comando Geral do Exército), para seu emprego nas operações iniciadas.
Artigo 4°: O Ministério de Defesa adotará as medidas pertinentes a efeitos de que os Comandos Gerais da Marinha e da Força Aérea prestem a requerimento do Comandante Geral do Exército o apoio necessário de emprego dos meios para as operações.
Artigo 5°: O Ministério do Bem-Estar Social desenvolverá, em coordenação com o Ministério de Defesa (Comando Geral do Exército), as operações de ação cívica que se façam necessárias sobre a população afetada pelas operações militares.
Artigo 6°: A Secretaria de Imprensa e Difusão da Presidência da Nação desempenhará sob indicação do Ministério da Defesa (Comando Geral do Exército), as operações de ação psicológica simultâneas que lhes forem necessárias.
Artigo 7°: O gasto que demande o cumprimento da missão encomendada pelo presente decreto até a soma em pesos de QUARENTA MILHÕES será incorporado à jurisdição 46, Comando Geral do Exército, correspondente ao Orçamento do ano de 1975 (…).
Importante salientar que se tal Decreto situava como área da ação de perseguição e aniquilamento de cidadãos argentinos o território de Tucuman; em 06 de outubro deste mesmo ano de 1975, sob os Decretos de n° 2770/75, 2771/75, 2772/75, será a totalidade do território nacional argentino que estará sob tal regime de exceção.
Questão de ordem: não seria o caso de interpelar ao Comando da Junta Militar em sua proclama de 24 de março/1976 do estapafúrdio diagnóstico acerca do estado de coisas pelo qual passava a Argentina, sobretudo no que Jorge Rafael Videla, Emilio Eduardo Massera e Orlando Ramon Agosti (os seus signatários) se isentavam de qualquer participação e/ou protagonismo no caos que se alastrava no país? Não estavam as Forças Armadas imiscuídas até os dentes no charco lamacento que eles diziam combater? É o que Rodolfo Walsh em sua Carta a Junta Militar, em 24 de março de 1977, exatamente um ano após o golpe, irá asseverar. São palavras de Walsh:
Em 24 de março de 1976, os senhores derrubaram um governo do qual faziam parte, para cujo descrédito contribuíram como executores de sua política repressiva, e cujo término estava fixado por eleições convocadas para nove meses mais tarde. (…) Os senhores restauraram a corrente de ideias e interesses de minorias derrotadas que tolhem o desenvolvimento das forças produtivas, exploram o povo e desintegram a Nação. Uma política semelhante só pode ser imposta transitoriamente, proibindo os partidos, intervindo nos sindicatos, amordaçando a imprensa e implantando o terror mais profundo que a sociedade argentina jamais conheceu.
Era este o cenário que rodeava a Haroldo Conti quando escreveu a seu interlocutor cubano. Conti, tal como Walsh, carregava consigo a certeza de que seus dias estavam contados. Que a perseguição encetada pelos agentes do terrorismo de Estado a serviço dos interesses monopólicos do grande capital (internacional e local) lhes seria impiedosa. Conti e Walsh, entre tantos, conheciam de perto a ferocidade sem limite da classe burguesa quando em defesa de suas negociatas e saqueio. Os militares prestavam sua continência à perfeita consumação da receita ditada pelo Fundo Monetário Internacional encarnada, àquela hora na Argentina, na pessoa do Ministro José Martinez de Hoz e sua equipe econômica.
PS: Haroldo Conti era militante político do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), além de escritor, jornalista e professor.
4
04 de maio de 1976. Uma data sitiada entre duas outras que nunca se despregaram do calendário daquele ano. Havia passado 41 dias desde o golpe de Estado. E 15 dias depois, seria realizado o almoço de recepção para o Petit comité cultural convocado por Jorge Rafael Videla.
Está-se a casa de Haroldo Conti situada a Calle Fitz Roy, 1205, em Villa Crespo. Nela estão Haroldo e sua companheira Marta Scavac de Conti, sua filha de 7 anos, e o bebê de 3 meses do casal. Além da família, estava também Juan Carlos Fabiani, companheiro de militância no Partido Revolucionário de los Trabajadores (PRT). Na noite anterior, Haroldo e Marta haviam ido ao cinema. Coisa raríssima sob as circunstâncias de que se estava vivendo. As crianças ficaram sob os cuidados de Fabiani. Era necessário desanuviar um pouco a cabeça tomada pelo excesso de trabalho – Haroldo escrevia de forma compulsiva – e pela obcecada rotina de cuidados para com a segurança pessoal e dos companheiros de organização política. Afinal eram tempos aziagos nos que, a cada dia, como a um plano sequência, iam caindo militantes políticos, lideranças sindicais e estudantis, escritores, jornalistas, cineastas, homens de teatro, professores e simpatizantes da luta de vida e morte contra a opressão capitalista que varria o continente como um todo e, em particular, a Argentina, sob o terror implantado pelo regime militar. Terror que se aprofundara ao limite sob a planificação estatal e paraestatal de ações terroristas que, àquela altura dos fatos, atendia em ser o modus operandi da dominação burguesa.
Era meia-noite e quinze quando Haroldo e Marta chegam em casa. A porta de entrada parece estar emperrada. Haroldo tenta o ingresso até que a porta se escancara com toda a força. Dentro da casa, a patota de assalto. Em seu testemunho, Marta conta que eram de seis a oito pessoas. Sua lembrança é povoada de vozes ruídos tormentos gritos estrondosos e uma réstia de imagens embaçadas e fugidias. Dentre estas imagens, está a da arma engatilhada com silencioso. Até que é jogada ao chão e amarrada. Lembra ter visto a Juan Carlos Fabiani, sentado ao solo, amarrado também. Haroldo é levado para os interiores do apartamento. Já não lembra mais de ver qualquer facho de luz, já não lhe havia halo pelo qual atravessar um fiapo estreito de lembrança. Tudo a partir de agora se lhe chega pelos carretéis da audição. Do quarto do casal, lhe invadem os movimentos descompassados que parecem surgir do chão. Marta entende que é Haroldo a resistir que lhe amordacem. Ouve também o arrastar dos móveis que serão subtraídos pela rapinagem do bando. Lhe perguntam pelo dinheiro: – Onde está o dinheiro? Onde está? Lhe tomam pelo braço, lhe conduzem para os interiores da casa. Insistem pelo dinheiro. Afirmam que se está em guerra e que não se pode deixar a solta qualquer semente que desabroche num tempo futuro. Marta entra em desespero. Marta, de imediato, capuz ao rosto, sabe ler nas entrelinhas, ela sabe que estão se referindo a seus filhos de 7 anos e de 3 meses. Dentre a canalha miliciana, há um que está a par dos percursos literários de Haroldo. Este lhe pergunta pelo romance Marcaró, pela recente viagem a Cuba, lhe pergunta pelo porquê da viagem, Marta escuta as ameaças que se voltam a Haroldo, que ele irá pagar bem caro por isto; Marta se intromete. Pergunta o que farão a Haroldo. Eles dizem que será preciso submetê-lo a interrogatórios. Ela tenta negociar a permanência de Haroldo, que eles não precisariam levá-lo a qualquer lugar, que ali ela poderia auxiliar nas respostas. E lhe fora de um chute em bate pronto, uma patada seca nos rins, a dor aguda e física, dor esta material concreta encarnada e que lhe é outra fonte de lembrança que se soma aos sabe lá quantos efeitos sonoros a trepidar na cabeça, Marta continua a insistir, mas é inútil. Ela pede que deixe que se despeça de Haroldo, que lhe permita que lhe dê um beijo. Eles respondem que lhe proporcionarão uma valsa de despedida. Marta está desnuda, com as mãos atadas às costas, encapuçada, com marcas pelo corpo. Eles dizem de sua elegância. Marta está sendo conduzida até a sala e eis que sente bem de perto a presença de Haroldo, seu corpo quente, Marta quer estender as mãos para tocá-lo, não consegue despregá-las, ela começa a chamá-lo: ‘Haroldo, Haroldo!’ e escuta ao ouvido a sua voz:
Estou aqui querida, fique tranquila, estou bem. Marta diz que precisa vê-lo, que necessita vê-lo. Ele se aproxima e lhe beija o queijo – única parte do seu rosto que permanecia descoberto. Marta é tomada pelo desespero. Percebe que Haroldo deve estar sem capuz senão não lhe conseguiria alcançar o queixo, tocá-lo com os cuidados que lhe dispôs. Marta sabe o que significa estar sem capuz. Sabe que é a condição de ingresso a uma roda que não parará de girar. Começa a gritar desesperadamente. Um tipo lhe arrasta e lhe arremessa sobre a cama lançando-se sobre ela. Na cabeça tapada, o cano do revólver. De perto, o grito de ameaças, que se cale de uma vez por todas, ao longe a voz de Haroldo pedindo-lhe que cuide do filhote deles de três meses. Fora a palavra definitiva que lhe chegara de Haroldo.
São palavras de Marta:
(…) A partir daí começou uma busca entre todos, começando por nosso refúgio que era a revista Crisis onde estava o querido companheiro Federico Vogelius. Também lá estava Rita, essa grande mulher que foi sua companheira. Começamos a fazer as denúncias em escala internacional, de todo tipo. Eu percorria os lugares de imprensa, as redações, levando o comunicado a todas as agências, bati em todas as portas de redações, fui a todos os lugares porque diziam que a ordem do governo nacional era não mencionar a Haroldo Conti. Depois de três dias, a Rádio Colonia fez a denúncia do sequestro. Percorremos diferentes caminhos para buscar saber onde ele estava. Federico Vogelius fez contato com um homem de imprensa, da Secretaria de Imprensa de Videla, em troca de um quadro de pintura que custava uns cinco mil dólares. Este homem nos deu a informação de que Haroldo estava em Vesubio e que não iríamos voltar a vê-lo e que a mesma coisa ia se dar com Haroldo.
5
Era de conhecimento público o sequestro de Haroldo Conti à ocasião da recepção de Videla àquele dia 19 de maio. Em meio ao ravióli banhado em molho de tomates, e os brotos de aspargo, e o Jerez, o Whisky, os sucos variados, o pudim de verduras, a salada de frutas com doce de leite, os guardanapos brancos rodeando as garrafas de vinho, havia o fato do sequestro de Haroldo. Marta Scavac disse que buscou contato com o sacerdote Leonardo Castellani, que fora visitá-lo em sua residência, que lhe contara o que lhe havia ocorrido. Castellani havia sido professor de Haroldo quando este estivera em um seminário de formação religiosa. Segundo Marta, Castellani quedou perplexo com tudo o que ela lhe relatara. Disse que já havia desistido de ir ao almoço porque estava adoentado, mas que a partir de tudo o que ouvira de Marta, ele não faltaria à recepção exclusivamente para interceder por Haroldo, que iria fazer todo o possível para localizá-lo. Marta conta que outros buscaram os contatos com Esteban Ratti – que também intercedeu por Conti na reunião com Jorge Rafael Videla. Sobre se conseguiram contactar com Sábato, Marta não diz nada, apenas pontua que quanto a Jorge Luís Borges, era absolutamente tácito que não se trataria de procurá-lo.
O tempo, o tempo. O tempo é o maior tesouro de que o homem pode dispor. Embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento. Sem medida que o conheça, o tempo é, contudo, nosso bem de maior grandeza, não tem começo, não tem fim. Há quem diga que irremediavelmente, o tempo acaba por lavar tudo nas caldeiras do esquecimento. Há quem diga, Borges o descreveu, da necessidade de fazer girar as hélices do esquecimento para que não padeçamos o de que sofria Funes, o memorioso, enganchado que estava à escritura de tudo, ao registro dos pormenores de cada fato comezinho até ao ponto de se ver enredado à inércia, a paralisia, a catatonia. Como se nos fosse necessária a potência que transfigurasse o que se dera, que lhe fizesse submergir aos porões do passado o que nos afigurou doloroso demais para seguirmos em frente. Talvez que sim. Necessário não se deter ao trabalho de Funes. Necessário não se reter aos movimentos de Sísifo. Todavia certos fatos deixados à solta costumam se ocupar do trabalho de sempre e sempre nos tomar de arrasto. Por vezes ao susto, noutras sob o assombro do desatino.
Daquela reunião não terminada, que retorna pelas palavras deste ensaio, recolhe-se ainda hoje alguns testemunhos. Gabriel Garcia Márquez conta que o sacerdote Leonardo Castellani, octagenário e enfermo, pediu a Videla que intercedesse por Haroldo Conti, e que fizesse o possível para que ele, Castellani, pudesse vê-lo. O que acabou por se dar. Castellani pode visitar a Haroldo no dia 08 de julho de 1976, no cárcere de Villa Devoto, mas era tarde demais, sequer que lhe fora possível entabular uma conversa. Haroldo agonizava. Esteban Ratti também levou a Videla a sua indignação pelo que estava passando Haroldo e lhe entregou uma lista de outros onze escritores presos. Diz-se que Videla não esteve muito eloquente, manteve-se mais ouvinte do que falante. De Sábato, à saída da recepção, em depoimento à imprensa, ele disse que tudo transcorreu em altíssimo grau de compreensão e respeito mútuo. Ao lhe perguntarem a sua opinião sobre Videla, Sábato afirmou: O General Videla me deixou uma excelente impressão. Trata-se de um homem culto, modesto e inteligente. Me impressionou a amplitude de critério e a cultura do presidente. Sobre Jorge Luís Borges, sabe-se que discorreu longamente sobre seus últimos quatro meses vividos nos Estados Unidos, e que tratara aos militares de cavaleiros. Em depoimento à imprensa, Borges afirmou: Lhe agradeci pessoalmente o golpe de Estado de 24 de março – que salvou o país da ignomínia, e lhe manifestei minha simpatia por haver enfrentado as responsabilidades do governo.
André Queiroz – Escritor, ensaísta e realizador cinematográfico. Professor Titular no Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS/UFF)
Notas:
(1) Cf. VERBITSKY, H. Medio siglo de proclamas militares. Buenos Aires: Página/12 & Editorial Sudamericana, 2006 (p.147-9).
(2) Cf. NOVARO, M & PALERMO, V. A Ditadura militar argentina (1976-1983) – do golpe de Estado à restauração democrática. São Paulo: Edusp, 2007 (p. 117).
(3) Cf. Cartas de Haroldo a Roberto Fernández Retamar: http://conti.derhuman.jus.gov.ar/areas/institucional/a-roberto-fernandez-retamar.shtml
(4) PAIARO, M. “Exhibir el terror. El Comando Libertadores de América: entre el asesinato político y la restauración de la honra”. IN:SOLIS, A. C. & PONZA, P. (Comps.). CÓRDOBA A 40 AÑOS DEL GOLPE – ESTUDIOS DE LA DICTADURA EM CLAVE LOCAL. Córdoba: Universidade Nacional de Córdoba, 2016
(5) Cf. https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/decreto-261-1975-210287/texto
(6) Sobre os efeitos e circunstâncias de tais decretos, sugerimos nosso ensaio Os Corpos estão no porta-malas – alguns apontamentos sobre o filme La Casa de Argüello. IN: https://passapalavra.info/2020/02/130027/
(7) Cf. WALSH, R. “Carta aberta de um escritor à Junta Militar”. IN: OPERAÇÃO MASSACRE. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2010 (p.247).
(8) El Vesubio foi um dos centros de sequestro, detenção, e desaparecimento forçado utilizado pelo Exército argentino durante a última das ditaduras militares (1976-1983). Cf.: https://es.wikipedia.org/wiki/El_Vesubio
(9) SCAVAC, M. “Palabras de Marta Scavac”. IN: ROMANO, E. (Comp.) HAROLDO CONTI – alias Mascaró, alias la vida. Colección Presencias. Buenos Aires: Ediciones Colihue & Ediciones Centro Cultural de la Memoria Haroldo Conti, 2008 (p.69).
(10) ________. “Entrevista a Marta Scavac de Conti. IN:TCHERKASASKI, J. MIRAR LA MUERTE – conversaciones com mujeres de escritores desaparecidos. Buenos Aires: Catálogos, 2008 (p.53)
(11) Trecho de Raduan Nassar em seu romance Lavoura Arcaica.
(12) Cf. GARCÍA MARQUEZ, G. IN: RESTIVO, N. & SÁNCHEZ, C. HAROLDO CONTI, biografia de un cazador. Santa Fe: Homo Sapiens Ediciones & Editorial TEA, 1999 (p.207).
(13)
Cf. Los almuerzos de Videla. Por Gabriela Liszt. La Izquierda Diário, 20 de mayo 2016 – https://www.laizquierdadiario.com/Los-almuerzos-de-Videla