Desde o início do ano, vigorosas mobilizações de estudantes e professores têm exigido a revogação do Novo Ensino Médio (NEM), reforma educacional nefasta que, por mais que em “suspensão” pelo governo federal, segue implementada em escolas de Norte a Sul do País.
O NEM pode ser traçado até 2013, quando foi primeiramente proposto pelo deputado federal Reginaldo Lopes (PT). Depois, seu terreno foi ainda mais preparado com a Base Nacional Curricular Comum do governo de Dilma (PT), em 2014. A reforma foi finalmente implementada no governo Temer (2017) e seguiu avançando a passos largos no governo de Bolsonaro e generais e no início do governo de Luiz Inácio, quando foi suspensa (seu avanço, e não sua implementação) pelas grandes manifestações e greves que se levantaram. Agora, os estudantes e professores seguem a exigir a revogação da reforma, negada por Luiz Inácio e seu Ministro da Educação, Camilo Santana, ambos favoráveis ao conteúdo do NEM.
A fim de esclarecer melhor o conteúdo da reforma, o Comitê de Apoio – Guarulhos realizou uma entrevista com a professora de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo e coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Política Educacional e Gestão Escolar (GEPPEGE), Márcia Jacomini.
A Nova Democracia (AND): Para começar, nada melhor do que introduzir o que o NEM significa para a Educação. Você poderia trazer como ele está acontecendo nas escolas?
Márcia Jacomini (MJ): O NEM, para a Educação, significa uma mudança na concepção de educação básica que estava presente na LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação] de 1996, porque ela [a LDB] compreende a formação básica de toda pessoa como a educação infantil, o ensino fundamental, e o ensino médio, ou seja toda pessoa tem o direito de cursar o período de educação obrigatória dos 4 aos 17 anos (isso já pela emenda constitucional 59/2009).
Então, quando vem a proposta do NEM, esta ideia de uma educação comum de formação básica é “quebrada”, porque o NEM faz uma diferenciação na formação. À medida que os estudantes escolhem itinerários, eles deixam de ter uma formação comum, então, a depender do itinerário que o estudante escolhe, ele deixa de ter matérias no segundo e no terceiro ano do ensino médio como Física, Química, Biologia. Se ele escolhe um outro itinerário, ele deixa de ter matérias como História, Geografia, Filosofia, Sociologia. Ou seja quebrou-se aí a ideia do ensino médio como parte da educação básica.
AND: As Bases Nacionais Comuns Curricular (BNCC) e de Formação de Professores (BNCFP) vieram uma atrás da outra e em conjunto com o NEM. O que elas propõem?
MJ: A BNCC, além de trazer uma perspectiva uniformizante do currículo para todo o país, retoma algo que já está presente na educação brasileira desde os anos 90, que são as habilidades e as competências. Ou seja, ela organiza todo o currículo por base nestas e introduz as habilidades emocionais por meio do projeto de vida. Então esta BNCC é um ajuste do currículo escolar a um novo momento na organização da sociedade no que diz respeito ao trabalho e às questões sociais, ou seja, é uma forma da escola cumprir um papel no sentido de formatar a juventude para ingressar num mercado de trabalho em que não há mais empregos em que ela é orientada e teoricamente formada.
Por isso, as competências emocionais: para esses jovens quererem ser “empreendedores de si mesmos”. Então nós temos aqui um ajuste da educação nacional por meio do novo currículo para a formação de um novo ser humano: um que não se interessa ou não vai brigar para ter emprego, salário, carteira assinada, mas que vai se adaptar a uma situação em que ele vai trabalhar por conta própria e recebendo esse nome de “empreendedor”.
A BNC Formação também é uma adaptação dos cursos de formação de professores (dos cursos de licenciatura) à BNCC, ou seja, se você tem uma nova proposta de formação pra educação básica, os professores que vão ministrar aula nessa nova proposta de formação também precisam ser formados na mesma perspectiva, então os cursos de licenciaturas estão sendo orientados para diminuir a parte de formação teórica e aumentar uma formação mais prática articulada diretamente à BNCC. Então é a diminuição das disciplinas de fundamentos e um aumento de disciplinas de caráter mais prático no sentido de ensinar aos professores como aplica a BNCC na educação básica.
AND: Onde esses ataques querem chegar? Qualquer um percebe que eles não agradam nem os estudantes secundaristas, nem os pedagogos, então a quem interessa que elas se realizem?
MJ: Nós tivemos no início desse ano o momento mais expressivo de resistência pela revogação da reforma com manifestações, principalmente dos estudantes muito significativas, porém, no ministério da Educação, a perspectiva do Camilo Santana não é de revogação, até porque ele concorda que não é necessário mudar o NEM e tem manifestado bastante acordo com a proposta da reforma, embora reconheça que temos problemas no que diz respeito à implantação, mas mantém uma compreensão de que não há problema na concepção, é um problema de implementação.
As possibilidades de uma revogação efetiva, está colocada evidentemente, mas ela depende essencialmente de grandes mobilizações, ou seja, nós não temos uma situação em que o ministério da Educação está com uma postura pela revogação, e penso que os estudantes são fundamentais nessa luta. Ou seja, se tem um setor da sociedade que pode contribuir de maneira efetiva para a revogação do NEM são os estudantes, é a juventude, suas famílias.
Isso pode acontecer sim porque, hoje, eles estão percebendo o que significou escolher um itinerário e se surpreenderam ao chegar na escola este ano e descobrir que eles não estão tendo aulas das disciplinas que, normalmente, eles tinham; estão bastante revoltados com isso. Então pode ser que a gente tenha aí mobilizações que leve o governo a tomar uma postura pela revogação. Esta é uma lei, portanto é o Congresso que faria esse processo de revogar a reforma.
AND: Como a grande burguesia local e o imperialismo principalmente ianque determinam o que é educação de qualidade e garantem a aprovação de seus projetos?
MJ: Em toda sociedade, a educação tem a função de garantir uma certa coesão social para perpetuar a si mesma. Evidentemente que a educação também vai acompanhando as mudanças na sociedade, então não é uma situação específica desse momento que quem esteja determinando o tipo de educação que as classes populares devem ter seja a das classes dominantes, porém nós estamos vivendo um momento em que o grau de ingerência e de participação das classes dominantes, principalmente por meio dos aparelhos privados de hegemonia (por meio dos institutos, por meio das fundações) organizados pelos diferentes tipos de capital têm orientado as políticas educacionais e a educação no Brasil. A presença deles no Estado, nos governos é muito, muito expressiva, então a gente tem realmente uma situação em que eles estão determinando a política educacional.
Isso se explica por que está havendo uma mudança na proposta de educação escolar, e ela busca responder aos novos desafios que estão colocados para a formação da juventude num contexto em que o “mundo do trabalho se reorganiza” e as questões sociais estão cada vez mais gritantes à medida que a concentração de renda só aumenta no nosso País.