Em menos de um mês de diferença assistimos duas experiências distintas frente ao expansionismo de vizinhos. A primeira, em ordem cronológica, é a recente anexação do Alto Carabaque pelo Azerbaijão e a outra é o recrudescimento da guerra de extermínio de Israel contra o povo palestino. Em ambos os casos, o invasor se esforçou por realizar uma limpeza étnica, compreendendo o potencial represado pela população submetida ao seu jugo pode, quando atiçado, ser um punhal encravado no seio de seu Estado. A diferença principal está na reação de cada população inspirada pela sua direção política.
No caso da população armênia no Alto Carabaque1, enclave armênio no Azerbaijão, este ciente que a presença de uma população armênia seria hostil à sua política chauvinista pan-túrquica optou por favorecer a limpeza étnica de seu território recém-conquistado. A liderança política da população armênia no Carabaque, a República do Artsaque e sua fiadora a República da Armênia, após a derrota na guerra convencional com o Azerbaijão e seus aliados (a Turquia e os rebeldes sírios), capitulou perante ao Azerbaijão que invadiu o país encerrando a presença armênia de dois mil anos ali. Em menos de um mês mais cem mil armênios, órfãos de um Estado ou resistência organizada que os defendessem em seu território, cruzaram o corredor humanitário aberto pela Rússia e hoje os habitantes de origem armênios lá não somam uma centena.
Assim, em que pese a presença milenar Armênia naquela região, graças ao seu número presente, dificilmente os remanescentes constituirão uma resistência séria à ocupação. A tendência será que esses sejam assimilados ou expulsos pela migração de azeris doutras partes do Azerbaijão, atraídos por incentivos do governo de Baku como pelos baixos preços da terra, esvaziada à força. Quem, na verdade, vai ter que lidar, em um primeiro momento, com a insatisfação da população nativa do Artsaque é o próprio governo da Armênia que os recebeu, mas não conseguirá ressarcir as propriedades perdidas, os postos de trabalho destruídos e os cargos públicos extintos daquelas pessoas que habitavam a antiga república. Essa população, tal qual os antigos pied-noir2 na França pós migração da Argélia, será por gerações um estrato empobrecido e insatisfeito da população nacional que se sentirá traído pelo próprio governo (o que não é mentira). Nesses primeiros dias de imigração para Armênia, os ex-cidadãos de Artsaque já realizaram massivos protestos em Yerevan, capital do país, por conta de suas perdas não ressarcidas e da falta de condições para o seu restabelecimento.
Já a Palestina, em que pese as expulsões de populações árabes muçulmanas e cristãs, desde o século passado pelos grupos paramilitares sionistas (Haganah, Irgun, entre outros) e acelerada após a fundação do estado de Israel, o horizonte de uma limpeza étnica total mesmo nos piores prognósticos (ou melhores, para os sionistas) é muito distante. Mesmo com a Nackba3, que resultou na expulsão de 800 mil palestinos em 1947 para a Cisjordânia e Faixa de Gaza como para os vizinhos árabes e as demais expulsões pontuais que acompanharam a expansão dos assentamentos israelenses nas terras palestinas, a presença palestina é uma realidade incontornável em todo antigo território mandato palestino4: Israel ou nos territórios remanescentes palestinos.
Em Israel, dos dez milhões de habitantes, 21% da população é árabe que geralmente ocupa os nichos de menor remuneração na economia (construção civil, comércio varejista, funções domésticas), necessários para a viabilidade econômica de Israel. Além desses existem 5 milhões de habitantes nos territórios da Cisjordânia – muitos que trabalham e consomem em Israel – e Gaza e ainda a grande diáspora (cerca de 4 milhões) com fortes vínculos, inclusive político, com a resistência nacional, no Líbano, Síria, Jordânia e outros países. Já Israel, mesmo com políticas natalistas que conseguem sustentar taxas de fecundidade elevadíssimas para países de alto padrão de vida: 2,9 filhos por mulher (incluindo as “árabes israelenses” de maior natalidade), essas ainda são inferiores à dos palestinos de quase 3,6 filhos por mulher (em Gaza ainda maior). Ou seja, a tendência “natural” é que os árabes cresçam proporcionalmente. Neste caso, então, a única opção seria proceder pela “Solução Final” para a questão palestina: o extermínio dos palestinos ou sua expulsão.
Idealmente, para a extrema-direita sionista israelenses e seus apoiadores internacionais que a sustentam, Israel necessitaria substituir toda a população árabe-palestina por europeia e norte-americana de identidade judaica para evitar o colapso de setores inteiros de sua economia. Algo que não parece muito viável para comunidade judaica mundial, ela mesmo dividida quanto ao sionismo – ainda mais quanto a sua extrema-direita de Netanyahu, hoje à frente do estado israelense. Dos quase quinze milhões de judeus em todo mundo, menos de sete milhões habitam a entidade sionista de Israel, a despeito de todos os esforços por empurrar pessoas de religião judaica que habitavam a Europa há milênios (na França, por exemplo, já haviam judeus ali antes mesmo dos francos que deram o nome ao país) para o Oriente Médio. E, diante do escalonamento da luta de resistência nacional, não parece que um número significativo de judeus do mundo – em grande parte plenamente integradas às comunidades nacionais de seus países5 – estarão dispostos a realizar sua Aliyah6 para servir de bucha de canhão ou repor estoques no lugar de algum árabe em Tel Aviv.
Assim, diferente do Azerbaijão, que pode se livrar da totalidade dos armênios do Artsaque – dos milionários aos mendigos – e substituir pela sua população ligeiramente mais fértil e numerosa, Israel não pode, pelas condições logísticas, e nem conseguirá, por razões militares, eliminar a presença palestina, que não se entregará voluntariamente a eutanásia como defendem os proponentes do desarmamento do Hamas e outros movimentos. Ao contrário, a Resistência Nacional Palestina, é incisiva em contrapor à propaganda israelense para que os palestinos abandonem suas terras ancestrais. Os armênios, por sua vez, não tiveram a mesma sorte, mas ao menos poderão se orgulhar de não serem chamados de terroristas por Macron, enquanto aguardam os próximos movimentos do Azerbaijão, que por enquanto ainda está satisfeito com o que engoliu.
Esse texto reflete a opinião do autor.
Notas:
- Região montanhosa no Azerbaijão próxima à fronteira com a Armênia, habitada milenarmente por uma população de nacionalidade armênia que, durante a dissolução da URSS declarou independência do Azerbaijão com apoio à Armênia. Mais informações nos textos: “Armênia: entre três senhores e nenhuma garantia” e “Mais de 60 mil armênios são deslocados por ofensiva do Azerbaijão; entenda o motivo”. ↩︎
- “Pés escuros” em francês. População de origem francesa que habitou a Argélia Francesa durante sua vigência entre 1830 e 1962. Durante a Guerra de Independência da Argélia (1956-1962), esta parcela, que chegou a constituir 13% da população argelina, foi utilizada de bucha de canhão pela França contra a massa argelina árabe pró FLN. ↩︎
- “Catástrofe” em árabe. Nome para expulsão dos palestinos pelo recém-criado estado de Israel no rescaldo de sua independência e primeira guerra Árabe-Israelense (1947-1948). ↩︎
- Mandato Britânico da Palestina (1918-1947). Mandato da Liga das Nações exercido pelo Reino Unido (de facto uma colônia). ↩︎
- Em vários países do mundo, os judeus constituem o que é chamado de minoria modelo (model minority) pelos estadunidenses: uma minoria étnica que em média possui padrões sociais (escolaridade, renda, etc.) superior à média nativa, como por exemplo, são os nikkeis (descendentes de japoneses) no Brasil. ↩︎
- “Retorno” em hebraico. Política de estímulo a imigração de populações de fé judaica para estado israelense. ↩︎