No dia 25 de Agosto, as famílias camponesas da Área Revolucionária Mãe Bernadete celebraram vigorosamente 1 ano da retomada das terras com grande festa do corte popular e ato político que reuniu mais de 300 pessoas entre camponeses, dirigentes, organizações democráticas, apoiadores da luta pela terra, familiares e amigos do valente acampamento, dirigido pela Liga dos Camponeses Pobres (LCP) do Norte de Minas e Sul da Bahia.
O Corte Popular de parte das terras da Fazenda Lagoa dos Portácios, retomada pelos camponeses, parcelou 72 lotes para os posseiros e áreas coletivas. O Corte Popular ocorreu em meio à resistência e defesa do direito sagrado às terras, onde as famílias de posseiros já viviam desde seus antepassados, mas que nunca tiveram seus direitos reconhecidos. Se organizaram, levantaram suas vozes, suas foices, seu direito a legítima defesa e sua luta tem servido de exemplo e inspiração para milhares de famílias sem terra das comunidades camponesas da região, que sonham com o seu pedaço de terra para viver e trabalhar com dignidade.
Muitas famílias já construíram barracos e estão produzindo em seus lotes e preparam os terrenos para o período das chuvas e plantio das roças. Vários quilômetros de estradas vicinais já foram abertos pelo trabalho coletivo em mutirão pelos camponeses e a entrada de muitos lotes já estão com colchetes (tipo de entrada feita nas cercas para dar acesso aos lotes e passar carroças, carros e outros veículos). Durante os primeiros trabalhos, alguns sabotadores, como agentes da Faroeste (“empresa de segurança” contratada pela Calsete) tentaram trancar estas passagens, mas os camponeses reabriram.
O Acampamento Mãe Bernadete resistiu a duas megaoperações de despejos pela PM e voltou para as terras, desmentiu as calúnias, enfrentou as perseguições do latifúndio, as armações jurídicas para criminalizar as famílias e reconstruiu os barracos queimados pelos pistoleiros, contratados pela Calsete.
Segundo afirmou um representante da Liga dos Camponeses Pobres do Norte de Minas e Sul da Bahia “a luta e resistência dos posseiros por estas terras já conta inúmeras façanhas e a Festa do Corte Popular representa um marco importante que celebra as vitórias, sistematiza as lições e aprendizados coletivos, que alinha os amigos e demarca quem são os inimigos de classe dos camponeses pobres, preparando para o próximo período.”
Neste segundo semestre, os camponeses anunciam a ampliação de suas roças, a tomada de todas as terras da Fazenda Lagoa dos Portácios e a defesa do corte popular, enquanto se preparam para enfrentar nova reintegração de posse, pois que há uma liminar contras as famílias, emitida pelo juiz da comarca Arthur Neves.
Em entrevista durante a festa, a representante do Comitê de Apoio à Luta de Montes Claros afirmou que “graças à combatividade das famílias e a grande campanha de solidariedade desenvolvida em todo o país, coordenada pelos Comitês de Apoio ao Acampamento Mãe Bernadete em Salvador, Belo Horizonte e Montes Claros e à conjuntura eleitoral, o Estado se viu obrigado a se pronunciar no processo, não podendo mais ignorar a demanda histórica das famílias que desde 2010, com apoio da LCP exigem o reconhecimento de suas posses e denunciam os crimes contra o povo, crimes trabalhistas e ambientais cometidos pela mineradora antes de abandonar as terras. O procurador federal do Incra se manifestou no processo anunciando interesse do órgão na questão em litígio e que o juiz local considere o conflito social aqui instalado, criando com isso um impasse temporário e uma situação desfavorável para os latifundiários.”
A festa do Corte Popular
Durante todo o final de semana e especialmente no domingo o clima era de grande alegria, orgulho, atenção e vigilância com a segurança e expectativa com o grande momento do Ato onde foram entregues os Certificados de Posse dos lotes, pelo Comitê de Defesa da Revolução Agrária (CDRA), eleito pela Assembleia Popular (AP).
Ainda estava escuro quando os foguetes anunciaram o grande dia. Era gente trabalhando pra todo lado, colocando faixas, bandeiras vermelhas, montando a tenda, carregando ferramentas, tachos, cadeiras, lenha, água, garrafas e alimentos.
As 9 horas o som já estrondava com canções de vaqueiros e salvas aos convidados, crianças corriam por toda parte e um companheiro anunciava a programação com grande ânimo, num potente carro de som cedido por apoiadores. No barracão da assembleia as bandeiras da LCP, do MFP e do Acampamento tremulavam no alto. Logo, um companheiro do Marreta (Sindicato da Construção Civil de BH) fez questão de levantar a bandeira e orgulhoso a entregou para ficar ao lado das demais. Dois painéis chamavam atenção, um com 100 fotos contando a história do Acampamento Mãe Bernadete e outro sobre o 9 de agosto, saudando a heroica resistência camponesa armada de Santa Elina, Corumbiara (RO). A bandeira da Palestina estava por todo lado, ela foi tomada como símbolo de persistência e resiliência que inspirou os camponeses em sua justa luta.
A festa foi muito bem organizada. Foi servido um delicioso almoço para todos convidados, com fartura e sem desperdício. Uma recepção impecável! Tendas, barracões, estacionamento, portarias que controlavam o fluxo da estrada e serviço de segurança pelos moradores. O calor próprio deste mês de agosto e o tempo seco contrastavam com água gelada servida à vontade e o ambiente agradável à sombra das árvores. Como toda festa camponesa, teve leilão, rifa, barraquinha para ajudar nas despesas e muita música.
O Ato
A abertura do ato iniciou-se com o canto Conquistar a Terra, palavras de ordem e muitos foguetes. Após compor a mesa com as organizações, uma companheira da Liga dos Camponeses Pobres apresentou um histórico da área e o objetivo político daquela festa. Ao final de sua comovente intervenção, que fez brotar água nos olhos de alguns daqueles protagonistas, ela afirmou com muita contundência o seguinte balanço, onde usa uma metáfora comparando o latifúndio a uma onça acuada:
“Somos vitoriosos sim! Não é porque a batalha acabou, não é porque a onça está morta, somos vitoriosos porque temos sustentado essa luta dia a dia. Somos vitoriosos porque temos encurralado cada vez mais a onça e sustentado e afirmado que essa terra é nossa, com nossas roças preparadas, com nossas assembleias e comemorações mês a mês, com mutirões e almoços coletivos e com nossa festa de hoje, contando com a força da nossa organização e nossos apoiadores e reafirmando cada vez mais que essa é a Revolução Agrária. Estamos destruindo o latifúndio e a Revolução Agrária vai assegurar que todos os camponeses de nosso país tenham um pedaço de terra. Enfrentando os inimigos de perto e de longe, conscientes que a luta camponesa é parte da luta de classes, de camponeses, operários e trabalhadores, no campo e na cidade, contra exploradores e opressores e o velho Estado latifundiário burguês, serviçal dos interesses do imperialismo. E nossos inimigos têm organizado o seu Estado, o monopólio de imprensa como estes radialistas boca de lixo, as forças repressivas, como denunciamos os policiais que estão conluiados com a Faroeste, que eles estão trabalhando para o Lineu. Denunciamos quando os companheiros foram ameaçados, não abaixamos a cabeça quando nossos apoiadores foram presos, os companheiros se organizaram, foram para a porta da delegacia para impedir que eles fossem levados para Guanambi. Então na nossa luta, temos muito o que comemorar. Quero dizer que em um ano nós fizemos coisas que levariam muitos anos, nós aprendemos e ensinamos e nos transformamos em outras pessoas, já não somos aqueles que iniciaram essa batalha. Hoje somos outros, mais fortes e mais preparados, antes diziam são os “sem terra” mas hoje falam: Acampamento Mãe Bernadete e amanhã, dirão: Comunidade Mãe Bernadete! Hoje temos nossos lotes, nós temos terras porque brigamos para defender o que é nosso e se antes os latifundiários vizinhos cantavam marra pra cima de nós e roubavam nosso gado, hoje nós botamos o gado deles pra fora das nossas terras e o latifundiário parasita e explorador teve que nos pedir por favor para atravessar nosso terreno, pras mesmas pessoas que antes ele pisava no pescoço e achava que sempre iríamos ficar com a cabeça baixa. Hoje nós andamos com a cabeça erguida companheiras e companheiros! Porque estamos provando pra todo mundo quem são os bandidos nessa historia e na nossa sociedade, que é a burguesia, o latifúndio como a Calsete parasita, que vivem de explorar o trabalho, o suor e sofrimento do nosso povo, de arrancar as riquezas da terra e deixar a gente só com miséria. Nós levantamos a cabeça e sob as bandeiras vermelhas da Liga nós vamos seguir tomando as terras da Lagoa dos Portácios, avançar com mais tomadas de terras no sul da Bahia, em aliança com os quilombolas e indígenas e em todo estado, fazendo a Revolução Agrária, parte da Revolução Democrática, em curso em nosso país. Viva o Acampamento Mãe Bernadete! Viva! De quem é essa terra? É nossa! Nem que a coisa engrossa! Essa terra é nossa!”
Seguiram as intervenções da coordenação política do Comitê de Defesa da Revolução Agrária, Liga dos Camponeses do Norte de Minas e sul da Bahia, Movimento Feminino Popular (MFP), Comitê de Apoio à luta pela terra (CALT), Comissão Nacional das Ligas de Camponeses Pobres, Liga Operária, Marreta – Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Belo Horizonte e região. Estes últimos viajaram mais de mil quilômetros para prestigiar a atividade. Além disso participou o advogado das famílias, querido e admirado por sua firmeza frente as chantagens e ameaças do latifúndio e judiciário.
O companheiro responsável técnico pela topografia do Corte Popular, enviou uma calorosa e emocionante mensagem de saudação, expressando sua satisfação em ter contribuído com aquela conquista. Outros advogados da Associação Brasileira dos Advogados do Povo (ABRAPO), que atuam conjuntamente na defesa da área, também enviaram vibrantes mensagens de saudação. O companheiro da Comissão Nacional das Ligas transmitiu mensagem do companheiro Claudemir, historiador e dirigente do Movimento Esquerda Socialista (MES) afirmando que é uma dádiva que um acampamento camponês em nosso país possa ter resistido por tanto tempo ao despejo e afirmou que havia muito o que se comemorar e muitas lições. A Frente Nacional de Luta – Campo e Cidade (FNL) e sua direção estadual em Minas Gerais, também enviou uma saudação classista ao Acampamento Mãe Bernadete e à LCP, em agradecimento ao convite e diante da impossibilidade material de comparecer à festa.
O ato remarcou profundamente o significado político daquela celebração e muitas intervenções registraram isso de várias perspectivas, como por exemplo, a valoração dessa resistência do Acampamento Mãe Bernadete em meio ao crescimento da ofensiva da extrema-direita no país com o “invasão zero” e no terreno jurídico o PL para criminalizar a luta pela terra, o assassinato de lideranças camponesas, quilombolas e indígenas por todo o país, os ataques recentes contra os Guarani-Kaiowá no MS e a política de apaziguamento com a extrema-direita feita pelo governo de coalizão reacionária. Também foi tratado como exemplo desta política, o plano safra deste ano e a desproporção de valores concedidos ao agronegócio (R$ 420 bilhões) e à chamada agricultura familiar (R$ 76 bilhões).
O Comitê de Apoio à Luta Pela Terra saudou e expressou “o compromisso de continuar a apoiar a Área e difundir sua luta como exemplo de que só a luta destemida e sem ilusões com o Velho Estado pode conquistar a terra para os camponeses. Que é preciso destruir o latifúndio, câncer da nossa sociedade, que impede o desenvolvimento do nosso país, sufoca os trabalhadores da cidade e impede o desenvolvimento da ciência e da indústria, pois tudo é dado ao latifúndio, que não contribui com a previdência social, produz somente commodities para exportação e são isentos destes impostos”. O Comitê de Apoio ao Acampamento Mãe Bernadete de Salvador enviou uma viva saudação, destacando que a luta camponesa como aquela serve de exemplo aos estudantes e trabalhadores de Salvador. Em um dos trechos enfatiza: “com muito otimismo revolucionário, nos permitimos dizer que a nova marcha que iniciaram não é outra senão a que anuncia novos e mais combativos levantes camponeses no sul da Bahia”. A companheira do Movimento Feminino Popular, saudou calorosamente a todos, especialmente as mulheres de nosso povo e as companheiras do acampamento Mãe Bernadete, que tiveram papel fundamental lutando ombro a ombro com os companheiros.
Pega do Boi no Mato
Fato marcante que foi muito celebrado durante a festa, tanto no ato como nas rodas de conversas foram os episódios ocorridos durante a Festa da Pega do Boi no Mato, ocorrida em julho deste ano. Esta festa tradicional reúne milhares de pessoas na comunidade vizinha “Cheira-Cabelo”. Ela é muito importante para a economia dos camponeses que participam em peso, colocando barraquinhas e concorrendo a prêmios como vaqueiros. A atração principal consiste em dominar um boi em disparada na mata de “capoeira”, o que exige muita coragem e ousadia.
Segundo os camponeses relataram à época ao correspondente de AND: “o latifúndiário, aproveitando-se desse momento, preparou uma ofensiva que reuniu interesses da extrema direita latifundiária na cidade, para tentar nos expulsar das terras e desenvolver uma campanha de criminalização.” Ocorre que o feitiço se voltou contra o feiticeiro e segue o relato dos camponeses: “quando o acampamento foi invadido pela Faroeste junto com o gerente da Calsete, que cantou vitória por ter incendiado vários barracos e roubado nossos pertences, como moto e outros objetos, foram surpreendidos pelos companheiros que se mobilizaram no meio da festa, se reunindo para defender nossas terras, botando pra correr a tropa de pistoleiros, era uma turma grande e tinham muitos foguetes” expressando a contundência de sua superioridade numérica e moral.
Ainda segundo os relatos dos camponeses: “O latifundiário contratou agentes de segurança pública para mandar prender os nossos apoiadores, por meio de armação, tentou levá-los para outra cidade, mas a organização popular falou mais alto impedindo as malignas intenções. Na mesma hora, fizemos uma vaquinha entre as famílias e também pegamos emprestado entre apoiadores, para pagar a fiança. Liberamos os companheiros na noite do mesmo dia. Assim foi a Festa da Pega do Boi no Mato deste ano! Foi bem diferente…”
Os Certificados de Posse
O Comitê de Defesa da Revolução Agrária e a Assembleia Popular outorgaram aos camponeses, o certificado de posse de lote individual, juntamente com os documentos que descrevem as coordenadas geográficas no terreno, das posses individuais, reconhecendo pelos critérios definidos coletivamente pela Assembleia Popular o seu direito, de acordo com o regimento interno da área, direito conquistado com luta, perseverança e organização.
No final do emblemático ato de entrega dos certificados, onde cada família se apresentou a frente para receber seus documentos, uma companheira chamou atenção de todos, afirmando que este dia será um marco da nova fase da luta, dizendo que “os inimigos estão preparando nova ofensiva contra a agora Comunidade Mãe Bernadete e que segue o processo criminal, com incrementos de novas armações contra os companheiros que foram presos. Convocamos para que todos os amigos e apoiadores se mobilizem, entendendo que a gravidade da situação política em nosso país revela que a extrema-direita está mais encorajada do que antes contra os pobres em luta pela terra, que contam com o trabalho assíduo dos oportunistas de plantão que apontarão seus dedos duros contra os que lutam de verdade, vão dizer que nossos documentos ‘não valem’, fazendo coro com os latifundiários. Durante as eleições tentarão passar a aparência de normalidade, enquanto reina um ambiente de grande crise e instabilidade. Nós devemos mais do que nunca ter firmeza e certeza da vitória do povo, por sua justa causa e por ser uma força nova que cresce e ganha experiência a cada batalha, enquanto que a causa do latifúndio e seus aliados é uma causa decrépita, atrasada e injusta e seus problemas são insolúveis.”