No dia 9 de janeiro, em Itacoatiara, interior do estado do Amazonas, presos da Unidade Prisional do município (UPI) queimaram os colchões de suas camas durante uma rebelião contra as restrições e violações de direitos básicos cometidas pelo velho Estado, como a falta de energia, água, alimentação decente e o direito de visitas.
O levante foi reprimido pelas tropas da Polícia Militar, que usaram spray de pimenta e disparos contra o protesto. A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) negligenciou as exigências dos presos e afirmou em nota que tudo não passou de uma “ocorrência pontual”. A versão do órgão contraria a de ativistas e pesquisadores do tema, que insistem que a constante negação do direitos básicos, dentre eles as visitas regulares, tem sido frequente nas unidades prisionais amazonenses.
O professor Dr. Fábio Candotti, sociólogo e pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) descreveu que hoje em dia a interdição dos visitantes se dá através de novas justificativas: “Não é exatamente proibição de visitas, é uma política de controle da entrada que usa as imagens do body scanner como justificativa. O body scanner era para eliminar as outras formas de revista, mas virou uma revista a mais, altamente invasiva, radioativa e que serve para mais arbitrariedade. A pessoa que fica na função de ler a imagem diz que tem uma mancha e barra [a visitante] ou manda passar de novo, o que é mais radiação”.
Familiares desmentem versão ‘oficial’
Ouvida com exclusividade por um correspondente local de AND, uma familiar de um dos presos, que preferiu permanecer anônima, nos contou sobre o que houve naquele dia, em contraposição a versão da direção do presídio repercutida pelos monopólios de imprensa.
Segundo ela, é uma farsa a acusação de que se tratava de uma “briga de facções”, versão repercutida em portais sensacionalistas locais. A manifestação dos encarcerados era puramente em prol da reivindicação de condições mais humanas na cadeia.
Outra notícia falsa repercutida localmente é de que os presos estariam fazendo reféns durante a revolta. Essa versão foi desmentida por familiares que estavam presentes durante o protesto. “Só entraram essas duas famílias de presos [no momento do ato] e elas foram ouvidas em uma reportagem lá na frente [do presídio] e elas falaram que em nenhum momento os presos colocaram elas de refém. Os presos estavam gritando que era pra eles [a polícia] parar de estarem atirando e jogando spray de pimenta e abrir espaço para tirar as visitas que estavam lá dentro, mas em nenhum momento eles fizeram isso. Então no meu ponto de vista quem manteve as meninas como reféns foi a polícia”.
Abusos constantes
Essa familiar relata também que os abusos da direção do presídio não são só com os presos, mas também perpassam as famílias. Segundo ela: “Aqui no presídio de Itacoatiara os direitos dos presos e das famílias são violados, entendeu?”. Segundo ela, ameaças e flagrantes forjados contra os familiares são frequentes na unidade prisional.
Ela afirma ainda que o protesto não se resume a questão das visitas, mas também exige o cumprimento de direitos básicos. “E isso que eu nem relatei da energia [elétrica] que não tem, né? É um calor insuportável, a água, que não tem bebedouro. A comida, né? E como é que o Estado pede ressocialização do preso, se eles deixam os presos desse jeito?”
Más condições não são de hoje
As péssimas condições de vida nos presídios denunciadas pelos detentos e familiares não é de hoje. Em entrevista ao AND ainda durante a pandemia, o professor de CiÊncias Sociais da Ufam, Dr. Fabio Candotti já relatava uma série de iniciativas da administração prisional no estado para reduzir o contato dos presos com seus familiares, dentre elas, a que ficou conhecida como “televisita”.
“A SEAP [durante a pandemia] criou uma visita online, uma televisita, que em princípio durariam 5-10 minutos. Essas visitas eram sempre assistidas por funcionários do presídio e o relato comum dentre os familiares era que quando a pessoa presa começava a relatar problemas de saúde as ligações eram cortadas. Para evitar então que cortassem o pouco tempo que os presos tinham em suas visitas os mesmos passaram a evitar qualquer tipo de denúncia”, diz o pesquisador.
Do ponto de vista do velho Estado, é fácil compreender quais são os objetivos políticos da interdição e burocratização desse direito básico: o contato com os familiares representa um dos únicos canais de denúncia efetivos que a população carcerária tem para repercutir as crueldades e desumanidades cometidas nos presídios.
Dados de 2021, do Monitor da Violência, apontam que o estado do Amazonas consta com uma superlotação de 196,2% em suas unidades prisionais, configurando um dos maiores índices de superlotação do país. Em números concretos, esses dados apontam que há cerca de 10.692 presos para apenas 3.610 vagas.
Segundo a Defensoria Pública do Amazonas, uma série de violações legais podem ser encontradas nas unidades prisionais do estado, dentre elas: presos provisórios há vários anos sem oferecimento de denúncia, prazos vencidos para a progressão do regime, cumprimento de pena em regime mais grave que o fixado na sentença, etc.
São dados regionais que revelam o impacto de um fenômeno nacional: segundo dados de 2021 do Sistema de Informações do Sistema Penitenciário (Infopen), cerca de 35% dos presos no país nem sequer foram julgados. No estado do Amazonas essa situação é ainda mais crítica, onde 46,9% dessas pessoas estão encarceradas sem condenação.