Há uma longa estrada que vai da rua principal do histórico bairro de Shejaiya ao extremo norte das terras ocupadas da Palestina, em Safad, como disse o escritor Ghassan Kanafani. Esta estrada vai de um extremo a outro da Faixa de Gaza, mas também corta a história. É a estrada de Saladino, campeão da Batalha de Hatim, observada de cima pela viva memória de Shuja al-Din Uthman al-Kurdi, emir da continuada resistência à invasão dos cruzados. É a estrada que ecoa o clamor pela revolta contra o Mandato Britânico e contra as lideranças submissas, vindo dos morros de Ya’bad, em 1935. Saído da boca do Sheikh Izz al-Din al-Qassam, antes de sua heróica morte, este grito também sinalizou a transformação da luta por uma nação independente, pela restauração da honra e da liberdade de todo um povo subjugado, dentro das condições da nova época. Das massas mais empobrecidas que atenderam o funeral de al-Qassam, partiram as pedras que impuseram o desafio ao maior poder então presente no mundo, transformadas em projéteis e em foguetes e bombas nos anos 1980 e 2000, na Primeira e Segunda Intifada. Assim como não se curvaram perante ao poder colonial dos britânicos, essas massas não se curvariam perante os sionistas.
Esta longa estrada também está coberta de membros perdidos de combatentes, homens e mulheres, idosos, crianças, de sangue, dos “escombros feios da derrota”. Os heróis, como al-Qassam, e as massas, não viram ainda seu fim, impedidos, sucessivamente, pela violência do imperialismo britânico, pela traição de lideranças reacionárias internas e dos países árabes e pelo sionismo, apoiado no maior inimigo dos povos, na superpotência hegemônica única USA. Entretanto, como Shejaiya, tantas vezes destruída e reconstruída, desafiante e inquebrável, como o povo palestino, que transformou pedras em foguetes e bombas, os escombros da derrota em imperativos da vitória, a estrada, em si, não pode ser apagada, esquecida, e cada membro decepado, cada canto ocupado, só faz aumentar o desafio, só faz avançar a marcha.
Os impedimentos relativos, como as lágrimas, não podem conter ou arrefecer a luta, que os transcende. O medo, sentimento individual, não pode senão perecer frente à necessidade da coragem multitudinária, que torna-se um gigante dentro de cada um, um gigante maior do que qualquer uma das já enterradas ou moribundas forças que se projetam como eternas. A estrada que liga Shejaiya à Safad, que liga Gaza ao Vietnã, às favelas e campos brasileiros, é a única força verdadeiramente eterna, a força da rebelião popular. Nós, hoje, somos testemunhas, mas também agentes desta força.
O “dia seguinte”
Recentemente o presidente ianque Joseph Biden afirmou: “Como alguém que teve um compromisso vitalício com Israel, como o único presidente estadunidense que já foi a Israel em tempos de guerra, como alguém que acabou de enviar as forças do USA para defender diretamente Israel quando este foi atacado pelo Irã, peço-lhes para dar um passo atrás, pensar no que acontecerá se este momento for perdido. Não podemos perder este momento”. Continuou, ainda: “É hora de esta guerra terminar e de começar no dia seguinte”. Com oito meses de guerra, de resistência e firmeza dos combatentes e do povo palestino, de ataques covardes e genocidas do Estado sionista, as suas palavras são a de um homem desesperado e incapaz, um reconhecimento de fraqueza.
A derrota militar sionista frente à Resistência Nacional Palestina renova-se dia após dia. Do ataque surpresa e devastador imposto às Forças de Ocupação em 7 de outubro do ano passado à sua incapacidade de atingir, em oito meses, quaisquer dos objetivos estabelecidos na guerra declarada no dia seguinte, não há como negá-la. As organizações militares palestinas, nesse período, têm se comprovado capazes de não apenas manter, mas desenvolver qualitativamente suas capacidades de combate, como bem recentemente, quando tomaram novos reféns em uma emboscada complexa. A derrota política de “Israel”, por sua vez, transcende fronteiras como nunca antes na história do confronto já quase secular.
Essa é uma derrota expressa na desordem interna, na fragmentação em todos os níveis das forças políticas e militares: fragmentação na coalizão reacionária de Benjamin Netanyahu com a extrema-direita de Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, em ameaça constante de ser dissolvida; fragmentação entre as forças governamentais colonialistas de forma geral, e especialmente dentro do gabinete de guerra “misto”, que se digladiam sobre a melhor forma de manter de pé a ocupação, continuando ou estancando o genocídio aberto e declarado; fragmentação entre forças políticas locais e o governo central, extenuada pela destruição no norte; fragmentação entre as forças militares, com inúmeras demissões de nomes importantes desde o início da guerra e uma clara falta de coesão nas tropas, que também se reflete, lado a lado com a derrota militar, em sua baixa moral.
Na sociedade sionista, o fiasco vem criando ondas de protestos contrários à permanência de Netanyahu no governo e à estratégia militar sionista, incapaz de reaver os prisioneiros de guerra, evidenciando a crise, a fragilidade e precariedade, de fato, que é também ideológica, desse poder reacionário. Os protestos e a debandada dos colonialistas também aumentam ainda mais frente à destruição dos assentamentos nas terras palestinas ocupadas no norte, imposta pela organização anti-imperialista libanesa Hezbollah em apoio à Resistência Nacional Palestina e ao povo.
No plano das relações entre o Estado sionista e seu amo, o USA, a própria declaração de Biden já diz muito. Netanyahu está contra as cordas, precisamente pois também o está o próprio Biden, na medida em que sua cumplicidade com o genocídio do povo palestino não pode mais ser escondida ou menorizada. O primeiro deles deve decidir entre ir contra os estertores e latidos da extrema-direita e aderir ao “plano” de Biden, perdendo sua coalizão, ou desafiar o ianque e, assim, selar seu já inglório destino. Em qualquer caso, o abalo foi realizado, e aqueles como Ben-Gvir fazem questão de aumentar seu impacto.
Frente ao mundo, as imagens do genocídio, das crianças morrendo de inanição, dos bebês queimados no mais recente e covarde ataque contra Rafah, não podem ser apagadas da consciência coletiva. As manifestações populares, as ocupações de universidades, o desafio imposto em diversas partes do mundo aos governos e monopólios que mantém relações com o Estado sionista, bem como o reconhecimento da cumplicidade do USA, de sua coordenação do genocídio por meios econômicos e militares, da cumplicidade de todos os países imperialistas, aproximam-se cada vez mais de uma radicalidade e abrangência que não se via desde a guerra do Vietnã. O que já se tinha como certeza, ao menos por parte das massas, nos países árabes, o ódio à ocupação, o protesto frente aos ataques contra o povo palestino, se alastra por cada canto do globo, pressionando Biden e seus pares, forçando-lhes a refrear sua sanguinolência contumaz e a, seja em palavras ou em atitudes parciais, colocarem-se contra a execução da “solução final” de Netanyahu e seu gabinete de guerra. As pressões por um cessar-fogo, as pressões econômicas, com a diminuição das exportações e importações sionistas, seja devido ao bloqueio iemenita ou à impossibilidade de governos reacionários, como o da Turquia, de negociarem com o Estado sionista, as pressões legais pelo reconhecimento do Estado palestino, que já se alastra mesmo pelos países imperialistas europeus, e pela condenação de Netanyahu por sua participação em crimes de genocídio, são também parte de um movimento global em defesa dos direitos do povo palestino encabeçado pelas massas.
É neste cenário que a proposta de Biden por um cessar-fogo surge, sem que sua pretensão “redentora” consiga enganar a qualquer um. Está mais do que claro que, dado o sofrimento em Gaza, um cessar-fogo abrangente, a retirada das Forças de Ocupação e a troca dos colonos e soldados prisioneiros de guerra tomados pela Resistência pelos prisioneiros políticos palestinos do Estado sionista, são objetivos desejáveis, de fato assegurando uma vitória inessofismável do Dilúvio de Al-Aqsa, dos combatentes palestinos e do povo e cimentando na história a pior derrota dos sionistas, que voltariam humilhados à uma “fortaleza” cujas estruturas se comprovaram podres.
A proposta do ianque, porém, contém uma cláusula que ao mesmo tempo não pode ser concretizada e nem aceita: a sua ideia de “dia seguinte”. Neste dia seguinte, fantasiam os imperialistas, reacionários guardiães de uma ideologia anti-científica, o que aconteceria seria aquilo que os romanos chamaram de status quo ante bellum, o retorno de tudo ao seu “devido lugar” – neste caso, da opressão corriqueira do povo sob o poder ocupante e do genocídio lento e gradual em Gaza mediante a imposição de bloqueios. Contudo, querem que a roda da história gire para ainda antes do 07 de outubro, para 2005, antes da eleição do Hamas para o governo da Faixa de Gaza, com a imposição de um poder “não-beligerante” em seu lugar. Querem vítimas silenciosas.
Mas o povo palestino, prova a história e prova o Dilúvio de Al-Aqsa, não aceita vitimar-se. Após os acordos de paz de Oslo e a capitulação do Fattah, a Segunda Intifada tomou de assalto o Estado sionista e ceifou a vida de mais de mil colonos e soldados das Forças de Ocupação. Tais números, com a operação vitoriosa do ano passado, foram atingidos com apenas um dia. A resistência popular não aceita compromissos com a paz dos cemitérios e não recua.
A proposta de Biden, também, esbarra na necessidade de Netanyahu de manter de pé seu governo falido. Enquanto a Resistência Nacional Palestina, em golpe histórico, encurralou não apenas as Forças de Ocupação, mas também a superpotência hegemônica única USA, que as mantém, os interesses precariamente costurados das duas partes estão agora por um fio de se separarem. A indefinição do “dia seguinte” frente às tensões existentes entre os dois governos, ambos possivelmente com os dias contados (o de Biden por conta das eleições), é representativa da desestabilização geral da correlação de forças na região e no mundo, repetida no Extremo Oriente e na Europa.
A decadência sionista e ianque, apressada pela bravura palestina, é um golpe duplo no mito de “invencibilidade”, que também renova a fé na luta armada das massas contra a opressão, retira dos olhos do povo as areias depositadas após a queda da URSS e afronta o sonho hitlerista do USA de dominação mundial completa, de imposição e chantagem a nível mundial mediante o aparelhamento de organizações internacionais, subordinação econômica e superioridade militar. O “dia seguinte” de Biden e do imperialismo ianque será para eles nada além de mais um passo em direção de seu fim.
Antebellum
O imperador, decadente, curvado, purulento, anda nu. É sempre a voz da criança, em meio às multidões, que o denuncia. É sempre o novo que desafia o velho.
Os ianques também se utilizam da expressão latina ante bellum, aglutinando as duas palavras, para se referirem ao período histórico imediatamente anterior à Guerra Civil que resultou no fim da escravidão, o período de agitações antes da tempestade. Este significado está mais próximo da realidade atual que aquele que o “dia seguinte” de Biden busca fazer parecer possível. A Resistência Nacional Palestina lançou contra a pradaria ressequida do imperialismo uma faísca potente, animando não apenas a luta pela libertação do próprio povo nacional, mas dos povos de todo o mundo, animando o protesto, a exigência mesmo, da retomada de uma luta comum contra os inimigos dos povos mundiais, os imperialistas e seus lacaios. Não há como voltar atrás. Os novos escravagistas, aqueles que se beneficiam da exploração e da violação dos povos, estão fadados ao fracasso, que já se anuncia de forma amplificada na queda iminente do sionismo. A guerra presente e a manifestação das massas demonstra uma verdade que tanto se buscou esconder: não é a violência em abstrato que é rejeitada pelos povos, mas a guerra injusta. A luta pela liberdade, por outro lado, conta com amplo apoio das massas populares e jamais pode ser parada.
A vitória dos povos frente ao imperialismo, hoje, é como “uma criança pronta para nascer se movendo incansavelmente dentro de sua mãe”. Uma criança que vem de Gaza, pela estrada que liga Shejaiya à Safad e aos mais profundos rincões dos países oprimidos do mundo. E a história também comprova: o velho sempre deve dar lugar ao novo.