O monopólio de streaming Netflix trás em seu catálogo o pequeno, e interessante, documentário de 23 minutos chamado “Sovdagari – O Mercador”de Tamta Gabrichidze. Nele, acompanhamos a atividade de um homem apresentado como “mercador” que percorre o interior rural da Geórgia, ex-república soviética em uma van, oferecendo uma variedade de produtos como roupas usadas, bolsas, brinquedos de plástico, cosméticos e mesmo caixas de caquis aos camponeses dos povoados que visita. O que chama a atenção do espectador nisso tudo é que em vez de realizarem o pagamento dos produtos em laris (a moeda local), os camponeses pagam suas compras em batatas, tendo cada produto seu preço tabelado em quilos de batatas.
Eis a trama que ocupa a maior parte do documentário, o mercador dirige as estradas, mostrando os campos e os tratores velhos (provavelmente herança do período soviético), como as condições humildes dos camponeses, quando estacionados em suas vendas. Nas negociações entre camponeses e o “mercador” para além da relação mercantil, além de ofertas e pechinchas, conhecidas nossas do comércio informal, assistimos também suas precárias condições materiais e a desesperança dos idosos em relação à vida em seu país. Ao final o “mercador” se revela um atravessador – possivelmente autônomo – que realiza logística entre os camponeses e uma central em Tbilisi, onde também recarrega seu estoque com roupas de segunda mão para futuras trocas, ilustrando o quão desvalorizado é o produto desses pequenos agricultores.
Pela desesperança e monotonia imperante nas imagens e falas, mesmo parece que por ali sempre se viveu assim e certamente para os grandes monopólios da cultura e (des)informação, como a Netflix, é melhor que assim o concluam seus espectadores, ignorando a rica experiência do socialismo na Geórgia, ou mesmo, injustamente, a considerando-o culpado presente situação do país. Tarefa que este artigo visa contrapor.
Um pequeno país de grande história
Localizada no Cáucaso, a Geórgia tradicionalmente esteve dividida entre vários principados feudais desarticulados e comprimida entre impérios maiores como o persas e turcos, até que por fim, o czarismo russo que anexou os territórios habitados pelo povo georgiano na primeira metade do século XIX. Sob jugo da autocracia russa, a “prisão de povos” segundo as palavras De Lênin, o povo georgiano sofreu todas as agruras sofridas demais povos submetidos ao Czar somado à opressão cultural pelo chauvinismo grão russo. Situação essa que somente se reverte a partir da Revolução Socialista de Outubro que destruiu o Império Russo e estabeleceu as repúblicas socialistas, como a Transcaucásia (que inclui a Geórgia), que em 1922 conformam a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS.
Em 1924 após a morte de Lênin, coube ao georgiano, nascido em Gori, Josef Stalin liderar a União Soviética no caminho da construção do socialismo sob intenso cerco internacional. Sob sua direção o povo soviético, de todas as nacionalidades, alcançou façanhas nunca antes conquistadas pela humanidade como o sufrágio universal (independendo de renda, sexo, nacionalidade ou etnia), a erradicação do analfabetismo e de várias moléstias, a coletivização do campo e a industrialização menos de 10 anos. Afora isso coube a URSS liderar a humanidade progressista no enfrentamento à besta nazifascista, sendo a vitória simbolizada pela bandeira vermelha hasteada no Reichstag.
Após a guerra que ceifou 1/6 da população soviética, arrasou campos, destruiu indústrias e a infraestrutura da metade ocidental da URSS, coube aos povos soviéticos, entre eles o georgiano, reconstruir a grande pátria socialista e retomar a marcha das façanhas. Entre 1945-1953, a URSS não só encontrava em pleno desenvolvimento econômico, como ele beneficiava o povo de várias formas concretas. Segundo Ludo Mertens em Stálin: uma outra visão a produção industrial em 1948 já havia superado a de 1940. Na Geórgia viu-se a abundância de bens de consumo e redução das tarifas de luz.
O comunista e escritor Graciliano Ramos, à época presidente de Associação Brasileira de Escritores, durante sua viagem à Checoslováquia e URSS em 1951(narrado em A Viagem), teve a oportunidade de visitar a República Socialista Soviética da Geórgia a convite dos escritores locais. Em vez de encontrar mendicância e camponeses trocando batatas por batons, encontrou uma sociedade onde inexistia a própria mendicância e o povo tinha fartura de alimentos para o corpo e o espírito. Enquanto os escritores que no Brasil encontravam privações materiais e censura em seu país, na Geórgia gozavam condições decentes de vida e tiragens médias de livros superiores às do próprio Brasil que à época possuía 51 milhões de habitantes, contra os pouco menos de 3 milhões da R.S.S. da Geórgia.
Restauração Capitalista e crise
Após a morte de Stálin (1953), particularmente com o XX Congresso em 1956, o revisionismo que já vinha ganhando força na direção do PCUS logra se impor no controle do partido e estado soviético. Nos anos que sucederam, apesar de conservar em parte das conquistas da revolução na saúde e educação, aos poucos a Geórgia foi empobrecendo, vítima de uma política de especialização econômica continuada no governo Brejnev que beneficiou algumas repúblicas soviéticas, como as do Báltico, que receberam as principais indústrias em detrimento das repúblicas do Cáucaso e da Ásia Central, que se concentraram na produção de bens primários. Isso fomentou o desenvolvimento de um substancial mercado negro que caracterizou a economia soviética nas décadas de 1970-1980 e contribuiu para transição da economia de planejamento central para a capitalismo privado durante o período da dissolução da URSS. Nos anos seguintes a Geórgia, em uma grave crise econômica, foi o butim de uma disputa entre a superpotência atômica russa a superpotência hegemônica única USA pelo domínio da importante cordilheira do Cáucaso e seus recursos naturais, resultando em duas invasões pela Rússia e uma “revolução colorida” (golpe de estado) fomentada pela CIA.
Assim então, a Geórgia que abolia as tarifas de eletricidade e tinha uma produção editorial superior à brasileira se tornou a terra onde se tomam batatas de camponeses miseráveis os oferecendo tralhas e roupas velhas. Não muito distinto de nosso país onde as redes de logística estrangulam os pequenos produtores, oferecendo presos irrisórios (comparáveis às tralhas) pelos seus frutos suados, mantendo a economia camponesa eternamente deprimida. Em Gori, a despeito dos cacarejos da reação mundial, ainda se celebra o natalício de seu filho mais ilustre.