Foto: Rodrigo Duarte Baptista/AND
Não corroborar com a farsa eleitoral, não legitimar este grotesco jogo de cartas marcadas, é a única resposta que prepara terreno para as lutas que virão.
O primeiro turno consagrou uma vitória expressiva de Jair Bolsonaro (PSL) sobre Fernando Haddad (PT), obtendo aquele mais de 49 milhões de votos. Nos estados, aliados de primeira ou de última hora do capitão do mato lograram também rápida ascensão sobre seus concorrentes, destronando algumas figuras de proa da política tradicional do país. Delegados, juízes, militares, pululam agora como os representantes da “nova política”, abençoados por Deus, pela Bolsa e pelo Bispo Edir Macedo, não necessariamente nesta ordem.
Quanta hipocrisia! São estes burocratas e empresários novos-ricos que, diariamente, pisoteiam o povo mais pobre nas terríveis engrenagens jurídicas, policiais, administrativas do velho Estado reacionário. Se parlamentares corruptos formulam as leis, são estes senhores supostamente “éticos” que a fazem cumprir a ferro e fogo contra as massas, enquanto gozam de salários altíssimos e todo tipo de benesses, financiadas com o mesmo dinheiro público do qual se dizem guardiões. Sob esta camada “respeitável” abrigam-se ex-garanhões de filmes pornôs, matadores profissionais e politiqueiros do baixíssimo clero, no abjeto espetáculo em que se converteu a política oficial do país.
A verdade é que parte das massas, não enxergando uma alternativa que represente claramente seus interesses, e embrutecidas por anos de recessão e desemprego, foi capturada (por enquanto) por aqueles que têm falado mais alto “contra tudo o que está aí”. Isto fica provado pelo fato de que todos os principais partidos da “nova república”, e não apenas e nem mesmo principalmente o PT, sofreram com a defenestração de antigos caciques e a perda considerável de cadeiras no Legislativo e no Executivo. Também não devemos esquecer que cerca de 30% do eleitorado, 40 milhões, não compareceu ou votou branco ou nulo, o maior não-voto em décadas. Isto sim, marca a ilegitimidade destas eleições, como instância completamente incapaz de representar a vontade popular.
De fato, quando vemos que a Bolsa sobe e o dólar cai à medida que Bolsonaro avança, parece claro que o “mercado”, este governo invisível, já tomou sua posição. O que só corrobora a tese, sempre defendida por este jornal, de que as eleições não passam de um grotesco jogo de cartas marcadas.
Mas, afinal, qual o significado de uma eventual vitória da dupla Bolsonaro-Mourão?
É preciso dizer com firmeza: sua vitória será vitória de Pirro, pelo simples fato de que seu governo representará interesses diametralmente opostos ao da imensa maioria do povo brasileiro. Embora, no curto prazo, possa apresentar aparência sólida, pegando carona no Congresso Nacional (que adere quase que pela inércia a qualquer um que esteja no Planalto), seu desmascaramento será rápido. Dois tipos de contradições minam, desde já, a chapa ultrarreacionária: a contradição entre a cúpula e suas bases, porque, ao contrário do que dizem, eles governarão com/a favor de tudo o que está aí, frustrando os que os sufragaram; e dentro da própria cúpula, já cindida entre uma ala dita ultraliberal, ligada à banca internacional, que quer privatizar tudo o quanto antes, e uma ala que diz querer “preservar os setores estratégicos”, identificada a setores burocráticos do capital monopolista (papel dos militares discurso patrioteiro).
Um exemplo eloquente das contradições insolúveis que se abrigam no ninho dos ratos é a questão dos impostos. Tome-se o latifúndio (“agronegócio”): este só sobrevive, de fato, às custas de maciças subvenções do Estado, seja como crédito, seja como renúncias fiscais, e seu apoio será mantido desde que o conjunto da população siga sendo escorchado para sustentá-lo. O Estado “mínimo” prometido, portanto, será mínimo apenas no que tange aos direitos trabalhistas e sociais para a maioria, porque seguirá tendo o tamanho que tem na distribuição de privilégios para a minoria. A numerosa “classe média” de pequenos e médios proprietários (no comércio, transportes, serviços, indústria, etc.), tão ferrenhamente “bolsonarista”, logo receberá a fatura de gastos no Posto Ipiranga. Seu atual entusiasmo poderá então se converter no seu contrário.
A crise, portanto, continuará, e com ela a insatisfação popular e os protestos. O 28 de outubro não significará nem a sua solução, nem algum grande “retrocesso”, por mais ensandecida como tende a tornar-se a onda anticomunista, mas apenas o ponto de partida de uma nova vaga de grandes comoções políticas que virá inevitavelmente.
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O grande projeto de conciliação nacional representado pelo PT ao longo das últimas décadas fracassou e se esboroa a olhos vistos. Desde as Jornadas de Junho, a luta de classes no Brasil se radicaliza rapidamente. Marx nos dizia que a revolução será feita pelos que não têm nada a perder exceto seus grilhões. O que vemos é que a esquerda oficial do país, atada por mil laços à velha ordem, representa os que têm algo a perder, e são saudosos dos tempos em que os abalos sociais não vinham retirar a sua cara estabilidade no cargo e atrapalhar a sua rotina. Isto, para não falar dos que fizeram fortuna desde as cúpulas do aparelho de Estado reacionário.
O petismo (respaldado pelo revisionismo de PCdoB e outros falsos comunistas) que, ao longo das últimas décadas vendeu a independência do movimento operário popular, que o desmobilizou, despolitizou e o converteu num inofensivo apêndice da democracia burguesa, deu nisso. A emergência da extrema-direita não surgiu por alguma determinação divina, nem por loteria. É o processo histórico que a explica. Pretender substituir a luta de classes pelo populismo assistencialista enquanto se aplica todo o receituário econômico do imperialismo, foi parte da ofensiva geral da contrarrevolução mundial desencadeada nos anos 80 e só trouxe engano a grande parte das massas. E todos aqueles que alimentaram ilusões com uma espécie de transformação pacífica e indolor da sociedade brasileira, tutelada pelo alto, respeitosa com as “autoridades e as leis” – sabemos muito bem em quais classes essas autoridades são recrutadas e a quem as suas leis servem – estão colhendo o que semearam e destes, os que ainda identificam com os reais interesses populares estão obrigados a refletir com a maior seriedade e honestidade sobre isso.
Os reformistas tratam o fenômeno reacionário como situado fora das classes e das lutas de classes, numa suposta luta entre “civilização ou barbárie”, muito pouco convincente para os miseráveis que já conhecem a barbárie de perto na porta dos hospitais ou nas filas de desempregados. Não querem derrotar o tacão de ferro da reação numa luta de morte, mas amarrá-lo com as leis formuladas pela própria burguesia. No fim das contas, resta-lhes lamentar a desordem. Estas pessoas leram os filósofos burgueses e acreditaram piamente que a democracia burguesa era mesmo democrática, eterna e imutável. Lima Barreto, há cem anos, estava muito a frente destes intelectuais contemporâneos, quando clamava: “Ora, a lei! Que burla, que trabuco para saquear os fracos e os ingênuos!” 1.
O processo de reacionarização do Estado burguês-latifundiário, serviçal do imperialismo, é inevitável. Que outra forma de governo se compatibiliza com a brutal concentração de renda, de terra, com os milhões de desempregados e subempregados, com uma economia crescentemente primário-exportadora? Isto é um caminho sem volta. Na verdade, a reação não tem e nunca teve qualquer pudor em rasgar as suas próprias leis, se isto reclamam os seus interesses. Atacando as ilusões constitucionais, tão características de uma falsa esquerda oportunista eleitoreira, típica manifestação da ideologia pequeno-burguesa, Lenin dizia:
“Se o poder político do Estado se encontrar nas mãos de uma classe cujos interesses coincidem com os interesses da maioria, então é possível governar o Estado realmente de acordo com a vontade da maioria. Mas se o poder político se encontra nas mãos de uma classe cujos interesses divergem dos interesses da maioria, então qualquer governo segundo a maioria se transforma em logro ou repressão desta maioria. Qualquer república burguesa nos mostra centenas e milhares de exemplos disso… Por isso, todo o fulcro da questão, se ela for colocada de modo materialista, marxista, e não formal-jurídico, consiste em revelar esta divergência, em lutar contra o logro das massas pela burguesia” 2 (Grifo meu)
Não apenas os regimes fascistas, mas mesmo as constituições mais democráticas sempre previram e preveem as medidas mais extremadas contra a rebelião das massas (os diferentes estados de exceção). As liberdades democráticas nos servem como meio para preparar as grandes batalhas vindouras, e neste sentido devem ser defendidas, mas não como pretexto para renunciar àquelas batalhas, que mais dia menos dia eclodirão. O antípoda do fascismo, afinal, não é a democracia burguesa, mas a revolução proletária.
Notas:
1 – Lima Barreto, “O cemitério dos vivos”, p. 85.
2 – Ver Lênin, “Sobre as ilusões constitucionais”, edições Avante!, Obras escolhidas em 6 tomos, tomo 3 pág. 303.