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O lançamento do filme de Santiago Mitre, Argentina, 1985, tem causado furor em amplíssimos setores da esquerda liberal pequeno-burguesa, promovendo, em moto-contínuo, o gesto automático de compartilhar disseminar e fazer viralizar o produto da Amazon Prime Vídeo – que, nos termos de sites especializados, tem feito campanha forte para entrar com tudo na briga pelo Oscar de melhor filme estrangeiro. O sucesso nos mais prestigiados festivais é a parte prévia deste roteiro de uma virtual coroação insuspeita.
Não é necessário muito esforço de fabulação para elencar o conjunto de enunciados despejados do vozerio ventríloquo e loquaz que pulula por aí: “a Argentina tem muito o que ensinar ao Brasil, afinal eles fizeram o seu dever de casa”; “lá os milicos aprenderam com quantos paus se faz uma canoa”; “é por isso que nós vivemos o que vivemos – o “gado” a exigir a volta da ditadura”[1]; “o Brasil é um país sem memória feito de um povo submisso e alienado… muito diferente dos hermanos” – e segue, num fluxo em cascata, a toada inequívoca de pitacos e opiniões nas quais nem há sombra ou menção de que as contradições estejam inscritas no processo histórico – todo e qualquer, aqui/lá/acolá/algures; além disto, o que é corriqueiro a este festim de ideias vagas e fastidiosas, o de que a luta de classes não passa de peça de museu ao Parnaso de Instituições “filo-harmônicas” de “espírito republicano”, este mantra que tomou de assalto o horizonte rebaixado do de tais esquerdismos.
Todavia, não joguemos pedras fáceis aos incautos pegos em “calça curta” – afinal a sanha de adesão às pautas da hora (que os move) é condição imprescindível ao “não cancelamento” de que grassa a conduta corriqueira deste novo fundamentalismo de vestes liberais –, além de ser, também, espécie de moeda de troca no toma-lá-dá-cá de motivações e interesses comezinhos. Acrescente-se a isto, o efeito letárgico/lisérgico de massiva propaganda, custeada pelos oligopólios de comunicação e publicidade, e/ou travestidas à roupagem de “institutos de pesquisa”, que costumam atuar manufaturando a chamada opinião pública, soldando-a em juízos que retroalimentam o artefato tecno-comunicacional e a mais-valia ideológica (daí extraída) como num efeito bumerangue de incitação e repuxo (input-output). Em síntese, poderíamos apontar certo efeito-manada perpassado por cálculos oportunos a estas referidas hostes. Ousamos afirmar que é deste lugar e posição que pululam, sob a forma cirandeira, em inúmeros casos (pero no siempre…), os vivas e os salves ao produto da Amazon Prime Vídeo.
Isto posto, sigamos em frente. Falemos um pouco do filme de Santiago Mitre. Do que apresenta e do que, sorrateiramente, parece propor – por meio do que diz, mas sobretudo, no quê e no tanto que cala.
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Seguindo a fala de algumas das personagens de Argentina, 1985, o que se desbordará nos 140 minutos do filme de Santiago Mitre são as entranhas daquele que fora o julgamento mais importante da história argentina – através do qual foram imputados pelos crimes de homicídio, privação ilegítima da liberdade, tortura e roubo qualificado aos comandantes das juntas militares que estiveram à frente do autodenominado Processo de reorganização nacional (a última e mais terrível das ditaduras empresariais-militares, entre 1976-83). Mas não é somente este aspecto o de se trata no filme de Mitre.
A uma de suas camadas, podemos dizer que o filme é a descrição em tons quase épicos da coragem e obstinação do Promotor Júlio Cesar Strassera e seu Adjunto, Luís Moreno Ocampo – subsidiados por juveníssima equipe de assessores que, sob hercúleos esforços, e em tempo recorde, atuando contra tudo e contra todos, circulando em giras pelos quadrantes da Rosa dos Ventos argentina, buscava empreender espécie de “travessia ao deserto” como em uma cruzada de unificação nacional a uma sociedade cindida e mortificada [2]. Desde Jujuy, Salta, Santiago del Estero, Tucumán, Entre Ríos, Missiones, San Juan, Rosário, Córdoba, Catamarca, Corrientes, Mendoza, La Pampa às terras geladas da Patagônia, os jovens viajam, em aviões, ônibus, trens, lombo de llama, recolhendo depoimentos, desemaranhando tramas e traumas urdidas ao silêncio e à dispersão [3] – operada pelo terror da violência militar e “religadas”, a este instante descrito ao filme, pelo caráter pedagógico-terapêutico da democracia como valor universal. [4] Este, nos parece, é um dos polos centrais do filme: a ode publicitária à “democracia formal e em abstrato” – que se firmava no governo do radical Raúl Ricardo Alfonsín. [5]
É através do coroamento mítico do herói individual, no caso Júlio Cesar Strassera, que está assentada a estória que se conta sob o prisma do corte liberal burguês – segundo a qual as massas de trabalhadores organizadas – como sujeito político ativo e protagonista do processo histórico em curso -, é o que se apaga sob efeito de trucagem. O filme esquece ou faz esquecer a estes atores políticos imprescindíveis a que um governo de turno não abocanhasse e o regulasse em sua liturgia institucional. E de tal maneira isto, que podemos afirmar de forma categórica que no filme Argentina, 1985 o que se fez desaparecer de todo são as camadas populares organizadas e segmentos consideráveis dos setores médios da população argentina, protagonistas (que foram e são) nos combates não apenas contra a ditadura dos militares a serviço dos interesses monopólicos internacionais e locais; como também nos episódios diários e intensíssimos da luta de classes contra a espoliação dos direitos elementares e fundamentais do povo argentino durante os governos constitucionais.
No filme Argentina, 1985, de Santiago Mitre, tais lutas e a militância política partidária, sindical, estudantil, suas pautas e organizações ou são objeto de blague e trocadilho, [6], ou são subsumidas e encaixotadas na condição despolitizada e genérica de vítimas [7]– tidas como reféns da gravidade de circunstâncias descarnadas de veio histórico nas que não se consegue enxergar elencados os fatores causais da “aludida violência”, ou sequer que se evoca o tecido político que as entramava. Tecido diverso e tensionado de natureza geopolítica intercontinental e de rebatimento local, tangido pelas injunções imperialistas de contínuo saqueio das riquezas nacionais em nossos países periféricos. Retorcido pela cumplicidade interna da oligarquia agrária e por amplíssimos setores da subsidiária burguesia nacional, hospedeira contumaz dos acordos gestados nas matrizes dos oligopólios internacionais do capital monopolista.
Ao filme de Santiago Mitre, a tônica dos testemunhos dos depoentes, em seus relatos, no julgamento “mais importante da história argentina” são tributários do giro de capoeira, do arrasta pé narrativo, dos acordos de coxia do alfonsinismo, ou noutros termos mais incisivos, do golpe e arroubo semântico midiático-judiciário-penal elaborado ainda quando da apresentação do informe final da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), presidida por Ernesto Sábato, constituída como uma das primeiras medidas do mandato do governo Alfonsín [8], no dia 15 de dezembro de 1983 – reclame exigido pelas Las Madres de la Plaza de Mayo e outros organismos de Direitos Humanos [9].
Ao prefácio do relatório intitulado Nunca Mais, logo ao seu primeiro parágrafo nos toma de assalto os argumentos que contribuirão em reforço para a fundamentação política do que veria a ser cunhado sobre a expressão La Teoría de los dos demónios. Teoria esta que se tornou o solo hermenêutico/epistemológico das políticas de memória encetadas pelo Estado argentino durante os anos do alfonsinismo ou da chamada “transição democrática”. Em poucas palavras, apenas para que possamos dar nome aos bois, tal argumentação atestava um certo lugar de alheamento inocente e refém de amplos setores da chamada população civil, ou noutros termos, da sociedade argentina, face a um estado de violência generalizada no território argentino. Violência que teria dois sujeitos, ou demônios, de valências opostas, os extremismos de esquerda e da direita, como que a uma batalha entre duas bandas de delinquentes. Exatamente a este modo e sob este eixo de interpretação causal. Vejamos o trecho que mencionamos:
Durante a década de 70, a Argentina foi convulsionada por um terrorismo que provinha tanto da extrema-direita quanto da extrema-esquerda, fenômeno acontecido em muitos outros países. (…) Aos delitos dos terroristas, as Forças Armadas responderam com um terrorismo infinitamente pior do que aquele por elas combatido, pois a partir de 24 de março de 1976, contaram com o poder e a impunidade do Estado absolutista, sequestrando, torturando e assassinando milhares de seres humanos [10]. (grifo nosso)
Todavia, atentemos que a data de entrega deste relatório, com tal juízo impresso, é o dia 20 de setembro de 1984. Exatos nove meses e dez dias após a assunção de Raúl Alfonsín à Presidência da República, no dia 10 de dezembro de 1983. Digno de nota são os decretos presidenciais nº 157 e 158, datados de 15 de dezembro do mesmo ano de 1983 – ou seja, cinco dias após assumir o cargo. Vejamos o de que se trata. Ao decreto nº 157 declara-se a necessidade de promover a perseguição penal com relação aos atos cometidos posteriormente ao dia 25 de maio de 1973 [11] contra distintas pessoas por atividade ilegais. Ao decreto nº 158, submete-se a julgamento sumário ante o Conselho Superior das Forças Armadas aos integrantes da Junta Militar que usurpou o governo da Nação no dia 24 de março de 1976 e aos integrantes das duas Juntas Militares subsequentes. Noutros termos, perseguição sumária por um lado – até que se lhe conforme o julgamento con arreglo a la ley, algo que, de fato, já se lhe apresenta de forma prévia no corpo do que enuncia o próprio decreto; e pelo outro, o julgamento em condições especiais internas e ao sabor do corporativismo de tropa.
Se o filme de Santiago Mitre aborda as dificuldades de fazer migrar esta condição de regalia aos militares até que se lhes configure o tribunal civil e a façanha de Strassera/Ocampo; peremptoriamente, se cala no que tange à outra metade, apenas mencionada sob a pecha denegatória de subversivos e extremistas – forma de tomar a si o juízo prévio de Alfonsín àquele decreto no qual se acusa aos que combateram contra o arbítrio vende-pátria de distintas ditaduras e de seus governos títeres em defesa de planos econômicos que desnacionalizaram setores estratégicos nacionais, privatizando plantas industriais lucrativas estatais e desindustrializando de forma ostensiva o seu parque produtivo. Isto sem que apontemos as demissões, o achatamento salarial, as listas negras nos postos de trabalho. A despeito disto, tratou-se de se lhes reiterar, nos mesmos termos cunhados pelos militares, a condição de terroristas a serviço de interesses externos que escolheram ao nosso país para medir suas forças [12]. E a este juízo, acrescenta-se a motivação da imputação: delitos de associação ilícita, instigação pública a cometer delitos, apologia ao crime, e outros atentados contra a ordem pública e rebelião [13]. Seguindo, para um maior esclarecimento, o de que se trata e previa por meio do famigerado decreto de Raúl Alfonsín:
Para isto, o Presidente da Nação Argentina decreta: Artigo 1º – Declare-se a necessidade de promover a perseguição penal, com relação aos atos cometidos posteriormente a 25 de maio de 1973, contra Mario Eduardo Firmenich (L.E. 7.794.388); Fernando Vaca Narvaja (L.E. 7.997.198); Ricardo Armando Obregón Cano (L.E. 2.954.758); Rodolfo Gabriel Galimberti (C.I. 5.942.050); Roberto Cirilo Perdía (L.E. 4.399.488); Héctor Pedro Pardo (L.E. 7.797.669); y Enrique Heraldo Gorriarán Merlo (L.E. 4.865.510) pelos delitos de homicídio, associação ilícita, instigação pública a cometer delitos, apologia do crime e outros atentados contra a ordem pública, sem prejuízo dos demais delitos de que resultem autores imediatos ou mediatos, instigadores ou cúmplices [14].
Segundo Roberto Perdía, um dos imputados, lhes estava garantida a continuidade do ato persecutório pelo aparato jurídico-policial-penal do Estado. Antes, ao sabor do arbítrio militar, por meio de seus grupos de tarefa e campos de sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento; agora, aos modos do legalismo institucional do regime democrático. De forma sub-reptícia, a transição estava acordada; seus lineamentos de conformação não costumam se mostrar de todo ao escrutínio da opinião pública.
É a este encalço silenciado – vá se saber se quando da feitura do argumento e do roteiro. Se quando da apresentação da proposta de projeto a ser desenvolvido. Ou se às costuras, dobraduras, escolhas e restrições à finalização em ilha de montagem, que o filme de Santiago Mitre sitiou-se ao anúncio das vítimas à bastardia perversa e, em excesso, de um agrupamento de sádicos.
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No que tange a valia de tal solo de significação e compreensão acerca do estado de violência aos tempos do terrorismo de Estado na Argentina, muitas águas já rolaram. O referido prefácio do Nunca Mais, por exemplo, foi retirado em edições mais recentes do Relatório Sábato. Os decretos de Alfonsín permanecem públicos a disposição de quem ou os queira investigar, ou os preserve ao esquecimento, sob o consolo da filiação narrativa a que se queira fazer circular. Que o filme de Santiago Mitre, em 2022, de alguma forma colabore a um tal revisionismo tergiversante – que se amolda tal como uma peça publicitária aos avanços inequívocos de uma democracia sem elos de continuidade com o seu passado imediato, cremos ser algo que deveria ser matéria de reflexão e debate. A elegia à democracia formal de Alfonsin, pelo efeito de suspensão analítica proposta por Argentina, 1985, não colabora ao avanço de tais problematizações.
Todavia, não cremos que se esteja a esticar a corda crítico-analítica ao afirmar que a peça fílmica de Santiago Mitre está moldada sob a hipertrofia do aparato judiciário como força motriz ao garante do ordenamento social – todo e qualquer. E, vez mais, sob uma pegada acrítica tal como primam as peças de natureza publicitária. Em tais condições, claro está que a leitura que se destila acerca de tal aparato reforça a sua suposta e inequívoca condição de neutralidade, más allá de sua função classista. A uma narrativa desta ordem, uma sua participação nas regulagens persecutórias quando do terrorismo de Estado é, quando muito e de hábito, mencionado aos sussurros e tropeços impingidos à personagens individuais – amoldadas seja pela adesão ideológica, ou pela cumplicidade oportunista, ou pela covardia dos que observam e nada podem fazer para girar ao inverso a trama ubíqua das horas aciagas. O filme corrobora tal perspectiva nas vezes em que se remete ao drama de consciência de Júlio Cesar Strassera – afinal ele teria ou não se omitido quando dos terrores barbáricos acionados pelos militares? Eis aí uma questão deslocada – deriva-se de uma análise concreta dos fatos a uma problematização de ensejo ético-moralizante.
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Outro ponto a ser evocado ao menos a título de interrogação sobre estes silêncios que despencam do tempo de tela do filme de Santiago Mitre: o que fora feito dos atores e cúmplices civis empresariais, assim como de seu projeto político-econômico – este sim, vetor e coração sistêmico do Processo de Reorganização Nacional, perfeitamente encarnado nos postulados de José Martínez de Hoz? [15] Por que será que não se lhes reservou nenhum minuto de atenção nesta novíssima e prestigiada peça do cinema político argentino? Bem sabemos das limitações e dos recortes inevitáveis para que um roteiro cinematográfico se arredonde e se (nos) torne palatável [16], mas o que parece escapar deste cálculo não seria o perfeito acorde entre forma e conteúdo sob a planilha ideológica do que se busca comercializar? A quem e ao que interessa o escamoteio da dinâmica imperialista em suas “intenções” programáticas ao campo geopolítico e econômico – condição estratégico-tática dos golpes militares dos anos 60-70, em América Latina? Não está depositada a este silenciamento a condição histórico revisionista do terrorismo de Estado sob o prisma único e exclusivo das demandas e pautas dos organismos internacionais de direitos humanos? Não se está a omitir a condição causal da cooptação das Forças Armadas locais que a demoveu de sua função de garante da soberania nacional e da guarda de fronteiras, assim como do seu compromisso histórico para com o desenvolvimento estratégico nacional e regional autônomo? Não se está tergiversando acerca da sua redefinição como espécie de Força Especial de Intervenção Interna sob os pressupostos da famigerada doutrina de segurança nacional? Mas a quem isto? Para o garante de quais interesses e de quais grupos e corporações econômicas internacionais e locais? No filme que se candidata ao Oscar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, sob a campanha forte, encetada pela marca empresarial a que atende, para entrar com tudo na disputa à almejada estatueta, talvez não haja tempo e espaço para tal questão de ordem.
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Desconfiamos que se se cala acerca deste ponto, a estória que se conta não seria composta sequer pelas duas pontas do novelo de Ariadne.
A estória contada seria como que uma história manca, bastarda, a tropeçar em pernas trôpegas. Por exemplo, ao se arrancar dos militares a sua funcionalidade estratégica àquele então, um seu trafegar em marcha subalterna para com os interesses e acordos que se tramavam desde o Departamento de Estado Norte-Americano, incluindo aí, as Academias Militares e seus manuais gestados seja na avalancha neocolonial francesa em terras argelinas, ou na dos estrategos de West Point transladados à Escola das Américas no Panamá; ou à criação das Escolas Superiores de Guerra em nossos países de América Latina com a adoção dos pacotes curriculares que seguiam na instrução desde o baixo clero dos praças aos píncaros do alto comando militar [17]. Ou aos “tratados binacionais” de cooperação em assuntos de segurança interna, de guarda costeira continental e de compra de armamentos. Se se esquece de pautar a estes pontos cegos ao roteiro, acabamos inevitavelmente derivando para o baixo clero das explicações de cunho moral e psicologizante acerca das condutas humanas a atentar contra as genéricas abstrações acerca da natureza gregária dos homens. Júlio Cesar Strassera, o promotor e a personagem, se encarregará de evocar em nome da “comunidade argentina e da consciência jurídica universal”, em seu relatório final entregue aos Juízes do Tribunal Civil, a condição de sadismo como perversão moral para além de toda e qualquer Teoria da Guerra. Sadismo, perversão moral, Teoria da Guerra – são termos usados à revelia dos manuais de guerra contra-insurgente e das técnicas de combate exaustivamente aplicadas pelos militares franceses na guerra de libertação argelina e nos cursos de formação de militares na Escola das Américas por onde circularam mais de 60 mil militares da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Venezuela e Uruguai [18]. Quantos golpes de Estado escorreram desde a letra e o punho destes certames de preparação? Quantos atos de contra insurgência preventiva se forjou às minúcias sob a tutela da preparação estratégica da inteligência militar ao custeio da mais valia derivada do saqueio cotidiano das nossas riquezas nacionais? Calar-se sobre este eixo da “cadeia de produção” do terrorismo de Estado nos parece ser o que inaugura a via de ingresso ao equívoco do trabalho de memória que se diz exercitar por meio de uma obra cinematográfica deste tamanho porte, investimento e pretensão.
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Notas:
1- Enquanto se mantém os olhos cerrados para os reclamos de organizações tais como “Las Madres de los gatillos fáciles” acerca do morticínio promovido pelas forças de repressão do Estado nas periferias bonaerenses; ou para os avanços, em bases populares, de pautas neofascistas/neoliberais como as de Maurício Macri de Cambiemos; ou do revisionismo judicial que pleiteia o ultradireitista Javier Milei, principal liderança política de Libertas Avanza; ou para o complot mass mediático-judiciário e seus tribunais de exceção como na perseguição e condenação da principal liderança política popular de espectro peronista, Cristina Kirchner, entre outros.
2- Sem que recusemos admitir tal cisão interna do “tecido social” em níveis extremados – o que aponta Roberto Perdía, um dos principais dirigentes históricos de Montoneros, e da expectativa de que se pudesse reordenar um projeto nacional no que estivessem dispostos, para além dos setores das camadas médias representadas pelo radicalismo da UCR (Unión Cívica Radical), também os amplos setores do peronismo de esquerda e dos movimentos populares, importante atentarmos ao depoimento do historiador argentino Norberto Galasso que aponta que já durante a campanha eleitoral de Alfonsín o tema da “união nacional” era moeda corrente nos seus discursos, com alguns contrapontos. Nos termos de Galasso: “Com um discurso que apelava à conciliação nacional e a deixar para trás o fanatismo e a confrontação, o radicalismo ressurgia de suas cinzas representando aos setores médios e obtendo inclusive o voto de alguns setores da aristocracia operária desencantados dos dirigentes peronistas”. GALASSO, N. Historia de la Argentina – desde los pueblos originarios hasta el tiempo de los Kirchner”, Tomo 2. Buenos Aires: Colihue, 2012 (p.537) (grifo nosso)
3- Nos termos do filme: 16 tomos, 4 mil páginas, 709 casos, e mais de 800 testemunhas, eis o somatório das provas recolhidas.
4-Vejamos o que diz a primeira e a última das cartelas que abrem e fecham o filme de Santiago Mitre. A primeira diz: “Em 1983, a democracia é reinstalada depois de sete anos de ditadura militar. Alfonsin ordena julgar os ex-combatentes por crimes contra a humanidade. Estes se sentem vencedores de uma guerra contra a subversão só aceitando a sentença de um tribunal militar”. E a última cartela diz o seguinte: “Desde 1983, a Argentina vive permanentemente em democracia”.
5-Talvez nos caiba, ainda que nos limites de uma nota de rodapé, algumas palavras de esclarecimento acerca de Alfonsín e do que se representava por seu intermédio. Tomemos o depoimento de Norberto Galasso: “Como homem dos setores médios, Alfonsín foi influenciado, desde jovem, pela história mitrista e pelo liberalismo conservador que enxerga autoritarismo ou fascismo em todo movimento popular (…). A política se entende não como luta de interesses contrapostos – ou simplesmente, luta de classes -, mas como “persuasão”, “tolerância”, “consenso”, do qual resulta que suas aspirações democráticas entrem em um beco sem saída frente aos grandes poderes econômicos internos e externos” IN: GALASSO, N. Op. Cit. (p.535).
6-Como quando no relatório final apresentado por Strassera, a fim de salientar a arbitrariedade tonta da ação das bandas de perseguição e extermínio; Strassera descreve que se chegou a sequestrar membros das FAP (Federação Argentina de Psiquiatria) pensando que se estava sequestrando a militantes das FAP (Força Armada Peronista). E por aí basta a alusão torta a esta organização político-militar que combateu aos anos de Onganía a frente do período ditatorial anterior.
7-O nome de Firmenich (Mario Eduardo Firmenich) é apenas aventado num dos depoimentos das “vítimas” que afirma sequer ter conhecimento de quem se tratava. Destaque-se que Firmenich era o Secretário Geral da Organização Político Militar Montoneros, principal organização política da esquerda peronista, que atuava em inúmeros âmbitos, frentes e setores sociais: nas villas (favelas) e bairros populares, nas escolas e universidades, nos sindicatos e agrupamentos religiosos; através de diversos veículos de comunicação (jornais, revistas, volantes); assim como no campo militar com a formação de um exército popular de cerca de 10 mil homens. Constituindo-se, também, posteriormente, em 1977, no Movimento Peronista Montoneros.
8- Em seu livro Montoneros – el peronismo combatiente en primera persona, Roberto Perdía afirma que o governo radical de Raúl Alfonsín tomou para si as funções exclusivistas de “justiceiros e demiurgos da Nova História” em vez de acenar para um governo de frente nacional, o que, nos termos de Perdía, não haveria de surpreender afinal não estivera Alfonsín “no aceite do golpe de 1976 para evitar a dissolução nacional”? Perdía acrescenta ao evocar: “Os reservados diálogos do próprio Alfonsín com um homem forte do “Processo de Reorganização Nacional [ditadura militar], seu companheiro de Colégio Militar, Albano Harguindeguy, buscando uma saída à ditadura, mediante alguma reforma constitucional que fora facilitando sua retirada”. E conclui: “É por isso que, em 1983, um radicalismo que não havia sido capaz de aprender com seus próprios erros, voltava a tropeçar na mesma pedra”. (p.606-607)
9- Importante ressaltar que o filme não parece reservar nenhuma referência às verdadeiras batalhas campais travadas por aquelas que, ao se constituírem no ano de 1977, e que enfrentaram todo tipo de perseguição e abandono da parte das instituições e de amplos setores da sociedade argentina, eram apelidadas de Las Locas de la Plaza de Mayo. Tampouco, o filme de Salvador Mitre, estabelece qualquer vinculação entre a constituição do Tribunal Civil que irá levar a cabo o julgamento e condenação das Juntas Militares e estas demandas provindas de demandas populares através de suas organizações.
10- IN: Nunca Mais – informe da Comissão Nacional sobre o desaparecimento de pessoas na Argentina, presidida por Ernesto Sábato. Porto Alegre: LPM editores, 1984 (p.01).
11- Data de assunção do governo de Héctor Cámpora, candidato peronista encampado pela Frente Justicialista de Liberación (FREJULI), na impossibilidade de candidatura de Juan Domingo Perón por um dispositivo suspensivo que lhe fora imposto pelo governo da ditadura militar de Agustín Lanusse. Destaque-se que Montoneros estava dentre as principais lideranças políticas que tornaram possível o retorno ao regime político democrático. No que tange ao decreto, não faz alusão ao estado de exceção em que se vivia desde o golpe de Estado de 1955, os sucessivos golpes (1962, 1966) mediados por governos civis (Frondizi e Illia – ambos sacados por meio de golpes) nos quais o peronismo estava proscrito. Tampouco menciona a intervenção militar nos organismos de representação sindical, estudantil, as depurações e perseguições no interior de diversos setores da atividade produtiva (fábricas, engenhos etc.) ou em escolas, universidades, órgãos de imprensa classista, organizações de bairro e periféricas. No que tange ao período pós 1973, o decreto não menciona a configuração da banda paramilitar TRIPLE A (Alianza Anticomunista Argentina) em suas ações de sequestro e assassinato à luz do dia – a operar em comum acordo com o Ministério de Bem-estar Social, sob regência de José López Rega, assim como não menciona a repressão militar e o poder de polícia que lhe será conferido já no ano de 1975, durante o governo constitucional de Isabel Perón, sob o nome de Operativo Independencia.
12- Como descreve Rodolfo Walsh em sua Carta Aberta de um escritor à Junta Militar: “É na política econômica desse governo que se deve buscar não somente a explicação dos seus crimes, mas também uma atrocidade maior, que castiga milhões de seres humanos com a miséria planificada. Em um ano, os senhores reduziram o salário real dos trabalhadores em 40%, diminuíram sua participação na renda nacional em 30% e aumentaram de seis para dezoito horas a jornada de trabalho que um operário necessita para pagar a cesta básica. (…) Os senhores fizeram que as relações de produção regredissem aos primórdios da era industrial, e quando os trabalhadores quiseram protestar, qualificaram-nos de subversivos, sequestrando comissões inteiras de delegados que em certos casos apareceram mortos e noutros, não apareceram” IN: WALSH, R. Operação Massacre. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (p.254).
13- Cf. Boletin Oficial de la República Argentina, 15 de deciembre 1983: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d7/Decreto_157-83.pdf
14- Idem. No decreto, Raúl Alfonsín destaca que, a despeito de ter atingido a certos setores da população alheios a estas atividades ilícitas, o dano maior da ação repressiva do Estado sob a baqueta militar, se bem tenha permitido suprimir os efeitos visíveis da ação violenta e de ter conduzido a eliminação física de boa parte dos seguidores da cúpula terrorista e de alguns integrantes desta, foi ter dificultado o seu julgamento nos marcos legais dos máximos responsáveis de tal estado de coisas. Eis aí a escolha do demónio maior e alvo da ação punitiva do Estado.
15- José Martinez de Hoz, de família aristocrática, foi o principal mentor do projeto econômico do governo dos militares na Argentina dos 70”. Tomemos este trecho da matéria publicada em 26 de janeiro de 1977, pela Agência de Notícias Clandestinas (ANCLA): “”La Cantábrica” é uma das quatorze grandes plantas siderúrgicas da Argentina e uma das cinco com maioria acionária estatal. Em 1976, produziu 65 mil toneladas de aço e 75 mil de laminados. Emprega a 2.500 trabalhadores, e ao ser anunciada a sua privatização, realizava um plano de modernização que incluía um processo de redução direta que a tornaria independente da importação de ferro como matéria prima, de acordo com informes do Centro de Indústrias Siderúrgicas (CIS). A decisão de entregar “La Cantábrica” a capitalistas privados foi adotada pelo ministro da economia Martínez de Hoz, o maior acionista argentino da Acindar, a principal empresa siderúrgica privada do país, que também está instalando uma planta de redução direta, com o apoio de sua matriz norte americana, a U.S. Steel” IN: ANCLA: Rodolfo Walsh y la agencia de noticias clandestinas 1976-1977. Buenos Aires: Ejercitar la memoria editores, 2012 (p.115) (grifo nosso).
16- Claro está que deveríamos nos perguntar acerca do cinema político, sua tripla hélice: que tipo de filme? Para quem? Para que? A um sistema determinado pelas injunções da indústria monopolista atuante sob a forma dos conglomerados internacionais de Streamings, às três perguntas parece rebater a marca e intento dos produtores.
17- Citemos no caso das Forças Armadas brasileiras este depoimento do Gal. Octávio Costa: “(…) Como nunca deixamos de mandar estudantes à Escola Superior de Guerra de Paris, nossos oficiais voltaram com esse material na mão, toda a racionalização francesa sobre o assunto. Isso entrou pelo canal da nossa Escola Superior de Guerra, e foi ela que lançou as ideias sobre as guerras insurrecional e revolucionária e passou a nelas identificar o quadro da nossa possível guerra. (…) Isso tudo contribuiu para a formulação da nossa própria doutrina de guerra revolucionária, que resultou no movimento militar de 64. (…) Os documentos entram na ESG, realizam-se conferências e seminários. As ideias descem às escolas de estado-maior e começam a entrar nos currículos. Nos primeiros anos entram timidamente, depois tomam conta” IN: D”Araujo, M.C et ali. Visões do Golpe – a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994 (p.78-9).
18- Importante também destacar que a estes centros de formação militar, havia cursos ministrados por empresários, além de, claro está, o alto investimento empresarial a fomentar tais atividades.
* André Queiroz é escritor, ensaísta e realizador cinematográfico. Professor Titular no Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS/UFF)
Este texto expressa a opinião do seu autor.
* André Queiroz é escritor, ensaísta e realizador cinematográfico. Professor Titular no Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS/UFF)