Obras artísticas de autores indígenas pela primeira vez ganham espaço na Bienal de São Paulo, que adotou como tema neste ano o verso “Faz escuro mas eu canto”, do poeta amazonense Thiago de Mello. Essa 34ª edição, iniciada em setembro, termina no dia 5 de dezembro e pode ser visitada presencialmente, em seu pavilhão no Parque Ibirapuera, na capital paulista, comprovando a vacinação anti-Covid na portaria.
As nações originárias das Américas estão na grande exposição artística com nove representantes, sendo cinco deles brasileiros e outros quatro internacionais (USA, Groenlândia, Chile e Colômbia).
A equipe de curadores do evento “propõe a Arte como campo de resistência, ruptura e transformação, questionando quais são as formas de arte e presença no mundo que são agora possíveis e necessárias? E, pergunta: em tempos escuros, quais os cantos que não podemos seguir sem ouvir?”.
ARQUEOLOGIA E ARTE ANCESTRAL TUPI
Além dos artistas atuais, a mostra conta também com a presença de antepassados tribais, de séculos atrás, com a exposição de oito vasilhas cerâmicas emprestadas por museus de São Paulo, acompanhada por um texto que revela tanto o papel das mulheres tupis/tupiniquins paulistas como autoras que empregaram sua cultura nas peças de barro, quanto a persistência de uma certa identidade ceramista revelada pelos estudos arqueológicos de Marianne Sallum e Francisco Silva Noelli.
Segundo Jacopo Crivelli Viscontti, curador da Bienal: “Estamos reunidos em território indígena, cabendo o reconhecimento ao povo Tupiniquim como os habitantes tradicionais dessa terra. Tal reconhecimento se estende às populações indígenas que por todo o território brasileiro lutam pelo pleno reconhecimento de seu direito de existência”.
Continua ele: “É comum lermos nos livros de história sobre uma aliança estratégica formada entre parte dos Tupiniquim e os colonos portugueses no projeto de conquista do território que hoje constitui o estado de São Paulo. Não longe daqui, o Monumento às Bandeiras simboliza (ou pretende simbolizar) essa união de diferentes identidades num projeto de ‘desbravamento’ do país”.
TENTANDO APAGAR
“O que os livros de história não narram – prossegue Visconti – e os blocos de granito não representam, são as formas como a violência colonial tem concatenado ao longo do tempo elementos retóricos e dispositivos institucionais para recalcar as marcas indígenas naquilo que hoje se reconhece como uma cultura paulista. Há toda uma estrutura, (desde) monumentos públicos (até) boa parte das aulas escolares e relatos populares, que retrata nossa identidade apagando essa memória.”
O curador segue dizendo: “Mas sempre há também forças trabalhando em direção contrária. Combinando precisão histórica, investigação arqueológica e reelaboração da memória, as pesquisas recentes de Sallum e Noelli têm contribuído para suplantar ao menos um dos muitos hiatos criados pelo racismo contra os indígenas”.
Prossegue ele: “Essas pesquisas mostram como a chamada Cerâmica Paulista, feita desde o século 16 até hoje, resulta da criação original de mulheres Tupiniquim que se valeram de um processo de intercâmbio de técnicas, repertórios e modelos com os colonizadores portugueses, como tática para a preservação de sua identidade”.
TERRA TOMADA, NÃO CEDIDA
E finaliza Visconti: “Ainda que à primeira vista os exemplares dessa cerâmica sejam distintos da produção tupiniquim pré-colonial, o olhar aproximado e comparativo de Sallum e Noelli revela a presença das Tupiniquim na seleção de matérias-primas, na composição da pasta cerâmica, na técnica do acordelado para levantar a parede das vasilhas, na temporalidade do processo construtivo e nos modos de tratar a superfície”.
“Apresentar na 34ª Bienal alguns exemplares da Cerâmica Paulista feitos em momentos diferentes (do passado) é uma forma de materializar o reconhecimento da ancestralidade dessa terra que nunca foi cedida. É também uma maneira de sublinhar a importância do trabalho sobre a memória como uma forma de confrontar as afirmações vagas que convêm a quem deseja seguir sem freio com os processos de espoliação, destruição e exploração”.
DE MIL ALDEIAS
A seguir apresentamos um breve panorama dos participantes indígenas contemporâneos na Bienal, elaborado pela jornalista Adriana Ferreira Silva, redatora-chefe da revista Marie Claire.
Uýra
“A artista e bióloga Emerson Pontes está por trás de Uýra, entidade que representa uma árvore, ‘que anda para buscar provar que a encantaria ainda está viva e o sagrado não é lenda’. Nascida no Pará, Emerson vive em Manaus, onde atua como arteeducadora e integra as Themônias, grupo de montação que mescla a cultura de aparelhagens e do tecnobrega com os figurinos do Festival de Parintins. Na Bienal, ela apresenta as séries de fotografias ‘Elementar’ e ‘Mil Quase Mortos’, numa montagem inspirada nos movimentos do corpo de uma cobra, e ‘Malhadeira’, instalação inédita que sobrepõe a um desenho de malhas de ruas e avenidas fios com sementes de seringas/seringueiras.”
(Obs. :Emerson é de origem indígena, talvez munduruku, mas não sabe de qual povo descende, pois houve violento desligamento de suas origens e raízes, “como muitos outros membros de populações originárias do continente americano”, afirma.)
Jaider Esbell
“Artista e escritor de origem macuxi (Roraima, RR) ele mescla escrita, pintura, desenho, instalação e performance, inspirado por mitos indígenas e questões socioambientais. Ativista, o roraimense é uma das vozes mais importantes e definidoras da consagrada expressão Arte Indígena Contemporânea, que Jaider considera uma estratégia política para ocupar espaços. ‘É uma forma de trazer além do corriqueiro, do que está ligado diretamente à luta dos povos indígenas que é a violência, o sofrimento, a morte… É um campo para ressaltar nossas melhores tecnologias, conhecimentos e magias, que não são socializados porque o conflito está sempre em primeiro lugar’, diz ele, que apresenta na Bienal pinturas que evocam o kanaimé, entidade que usa a magia para provocar a morte.”
(Obs.: Jaider faleceu em 2 de novembro, de causa não-divulgada, em sua residência paulistana, enquanto escrevíamos esta reportagem.)
Daiara Tukano
“Artista, professora e ativista dos direitos indígenas, Daiara Tukano integra o clã Uremiri Hãusiro Parameri do povo Yepá Mahsã, mais conhecido como Tukano, da região amazônica do Alto Rio Negro (AM/Colômbia/Venezuela). Entre as características de sua obra, está o resgate de rituais da medicina nativa da ayahuasca, por meio de imagens que evocam aspectos fantásticos da existência que usualmente não se revelam ao olhar. Na série de quatro pinturas suspensas ‘Festa no Céu’, que Daiara exibe na Bienal, ela recria os pássaros sagrados gavião-real, urubu-rei, garça-real e arara-vermelha, os miriã porã mahsã que, para os Tukano, realizam uma cerimônia para segurar o céu e impedir que o Sol queime a terra fértil.”
Sueli Maxakali
“Fotógrafa, educadora e produtora audiovisual, Sueli Maxakali é também uma importante liderança do povo maxakali, originário da região onde hoje estão os estados de MG, BA e ES. Na instalação que ela apresenta na exposição, Sueli retoma uma tradição central da cultura de sua etnia, que são os cantos coletivos, entoados durante rituais de cura e de transformação, em que as pessoas cantam, dançam e comem. Batizada de ‘Kumxop Koxuk Yõg’ (Os Espíritos das Minhas Filhas), a obra coletiva foi realizada por mulheres e crianças da comunidade de Sueli e reúne objetos, máscaras e vestidos que remetem ao universo mítico das Yãmyhex, como são chamadas as mulheres-espírito.”
Gustavo Caboco
“O artista curitibano de ascendência Wapichana (RR) costuma utilizar redes e raízes em desenhos, bordados, animações e textos, como os que compõem o livro ‘Baaraz Kawau’ (O Campo após o Fogo), que Gustavo criou logo depois do incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 2018, mesclando a tragédia com histórias de seu tio-avô, Casimiro Cadete, que foi uma liderança wapichana. Para a Bienal, ele apresenta ‘Kanau’Kyba’, desenvolvida com sua mãe, Lucilene Wapichana, e seus primos Roseane Cadete, Wanderson Wapichana e Emanuel Wapichana, uma instalação formada por registros de performances, fotografias, vídeos, desenhos, pinturas, animações e objetos que relembram os deslocamentos de seu povo passando por diferentes paisagens.”
Abel Rodriguez
“Nascido na Amazônia colombiana, o artista Nonuya – comunidade que ocupava territórios na Colômbia e no Peru – foi treinado desde criança para ser um ‘nomeador de plantas’, ou seja, ter conhecimento das espécies botânicas de sua região e dominar seu uso para diversos fins, inclusive rituais. O resultado dessa sabedoria é uma obra em que o pintor radicado em Bogotá cria com detalhes e precisão exemplares de árvores, plantas e também de animais, que retratam a riqueza da floresta e estão sendo mostrados nessa Bienal.”
Jaune Quick-to-See Smith
“A norte-americana nascida na Missão Indígena de St. Ignatius, em Montana, iniciou-se como artista na adolescência, nos anos 1950, quando deixou a reserva e passou a frequentar a escola. Desde então, ela questiona os padrões eurocêntricos e formalistas do circuito da arte, atuando para o reconhecimento da arte indígena americana também como curadora, educadora e articuladora cultural. Em suas pinturas, Jaune traz essa crítica para criações que flertam com a pop art em imagens que ela diz serem ‘impregnadas do humor indígena’ – quando desenha objetos e mapas de ponta-cabeça –, e que denunciam a violência contra seu povo e a natureza.”
Pia Arke
“Filha de pai dinamarquês e mãe groenlandesa, Pia Arke (1958-2007) passou a infância na Groenlândia envolvida pela cultura inuíte, dos esquimós. Em sua obra, além de instalações reunindo lembranças familiares e objetos tradicionais, Pia combinou sua própria imagem, em fotografias em grande formato feitas com dupla exposição, com sua herança miscigenada e referências históricas e geopolíticas para abordar as relações coloniais e de poder entre a Dinamarca e a Groenlândia. Na Bienal, estarão em exibição o vídeo ‘Arktisk Hysteri’ (Histeria Ártica), em referência a uma doença mental de que as mulheres inuítes supostamente sofriam, e a instalação ‘Jord til Scoresbysund’ (Solo para Scoresbysund), formada por 151 filtros de café.”
Sebastián Calfuqueo
“De ascendência mapuche, povo originário da região onde hoje está o Chile, Sebastián Calfuqueo utiliza a performance para denunciar o preconceito e a perseguição contra indígenas e também para questionar as narrativas heteronormativas, já que se identifica como uma pessoa não binária. Uma de suas obras,’ You Will Never Be a Weye’ (Você nunca será um Weye), é uma videoperformance que recupera Machi Weye, figura do século XVII representada como ‘uma pessoa que transita entre o feminino e o masculino e que também pode ter práticas ligadas à homossexualidade’, explica Sebastián. ‘Fala-se muito desse personagem como alguém que tem um poder espiritual muito grande e que é respeitado pelas comunidades mapuche’, afirma o artista, que encarna essa e outras figuras, colocando-se como um corpo político.”
Mãos de Daiara Tukano. Foto: Amazônia Real