‘As mudanças na metodologia do IMA são perversas’: Entrevista com Dr. Paulo Horta sobre a poluição das praias catarinenses

AND entrevistou professor Dr. Paulo Horta sobre situação de poluição por contaminação das praias de Santa Catarina. Foto: Reprodução/NDmais

‘As mudanças na metodologia do IMA são perversas’: Entrevista com Dr. Paulo Horta sobre a poluição das praias catarinenses

Em Santa Catarina a temporada de verão 2022/2023 começou com uma crise ambiental e de saúde pública devido a fragilidade do sistema de esgoto. O excesso de chuvas colocou o saneamento básico de Florianópolis e outras cidades no limite, tendo como resultado a contaminação de muitas praias classificadas como impróprias para banho de mar. O Instituto do Meio Ambiente (IMA) do estado está a frente das análises e os relatórios de balneabilidade foram atualizados durante as semanas de dezembro e janeiro.

Muitas praias do norte da ilha de Florianópolis, um dos principais destinos turísticos no veraneio, foram afetadas pelas chuvas. Ainda em janeiro, havia algumas praias que continuavam impróprias para banho de mar e isso ocasionou um surto de diarreia na capital catarinense, por contaminação através de um rio que desemboca na praia de Canasvieiras. O litoral catarinense, muito popular entre os turistas, sofreu com essa repercussão das praias poluídas e as intoxicações de banhistas.

Além da crise sanitária na perspectiva da saúde pública, há o impacto ambiental causado por esses fatores. A contaminação da água afeta diretamente os ecossistemas e perturba o equilíbrio do meio ambiente. O setor do turismo sofreu baixas com a divulgação dos relatórios de balneabilidade, visto que o litoral catarinense não parecia mais um destino tão viável. Devido a esse impacto na área e com receio de maiores perdas de público e lucro, os empresários ligados ao setor turístico de Balneário Camboriú pressionaram as autoridades para mudarem os parâmetros de análise da balneabilidade de Santa Catarina, demanda que foi atendida pelo governador de SC Jorginho Mello (PL). A fim de não afetar o turismo, as autoridades e o empresariado consideraram mais vantajoso alterar a metodologia da balneabilidade do que melhorar o sistema de saneamento básico do estado para que atenda o povo.

Para entender melhor essas questões que envolvem a balneabilidade e a saúde pública catarinense/de Florianópolis de uma perspectiva mais técnica, conversamos com o professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e PhD em Ciências Biológicas e Ecologia Marinha Paulo Horta para esclarecer sobre o assunto.

Comitê de Apoio – Florianópolis (SC): — No balanço divulgado em 7 de janeiro deste ano pelo Instituto do Meio Ambiente (IMA), mais da metade dos pontos em Santa Catarina estavam impróprios para banho. Só em Florianópolis, 50 eram considerados impróprios contra 37 aptos para banho. Quais fatores recentes contribuíram para desencadear essa situação?

Prof. Dr. Paulo Horta: — O cenário de carência de balneabilidade em SC é resultado da combinação dos seguintes fatores: primeiro, é fundamental destacarmos uma carência histórica de saneamento básico, tanto nas cidades costeiras, quanto no interior, este elemento da infraestrutura urbana, especialmente, foi deixada pra depois, não foi dada prioridade ao saneamento básico. Neste caso, a consequência é que a contaminação crônica de diferentes ambientes vai minando a saúde de ecossistemas, como manguezais, marismas [pradarias de gramas na região litorânea], e claro, vai minando a saúde de tudo aquilo que está dentro e debaixo da água: organismos filtradores, organismos que produzem substâncias químicas que de alguma forma complementavam as condições necessárias para manter as nossas praias, do ponto de vista sanitário, mais seguras. Então, essas condições locais, de carências locais, de fragilidades locais, combinadas as mudanças climáticas, especialmente a estas ondas de calor e eventos extremos de maior pluviosidade [mais chuvas e chuvas mais concentradas], eventos extremos mais frequentes e intensos, esses três elementos fundamentais que acabam produzindo as condições para que organismos patogênicos, inclusive aqueles que são indicadores da balneabilidade, chegassem em maior concentração e permanecessem viáveis por mais tempo em nossas praias. Devemos olhar para o cenário como ele é, ele é complexo. E ele é resultado dessa combinação, de problemas locais com as mudanças climáticas.

Comitê de Apoio – Florianópolis (SC): — Em 2021, um relatório publicado pelo Instituto Trata Brasil demonstrou que apenas 25,3% dos catarinenses possuem acesso a tratamento de esgoto. De que forma o governo do estado e das demais prefeituras de Santa Catarina lidaram com isso nos últimos anos e como se relacionou ao atual situação?

Prof. Dr. Paulo Horta: — Infelizmente, o cenário que hoje ficou explícito, como eu disse inicialmente, ele é resultado de uma omissão que é histórica. Historicamente, apesar dos nossos direitos, ou do dever do Estado de proporcionar o saneamento básico universal, ele não aconteceu. O saneamento básico foi considerado uma commoditie, e como commoditie, as empresas envolvidas, ou as instituições envolvidas no processo de saneamento, continuaram transferindo lucros e recursos para acionistas, para o sistema rentista, independente das carências ou das necessidades de investimento na universalização e na otimização da nossa infraestrutura relacionada ao saneamento. Portanto, o sistema de saneamento tem que crescer na medida em que crescer [crescer, melhorar e se aperfeiçoar] na medida que cresce a população, tem que crescer na medida em que a capacidade suporte dos ecossistemas que recebem os efluentes tratados vai reduzindo. E nós observamos que os investimentos alocados para o saneamento básico no estado inteiro e todas as prefeituras de forma, infelizmente, generalizável, não foram suficientes para enfrentar esses dois elementos, ou seja, o crescimento populacional, especialmente na região costeira, por conta de imigração, inclusive que veio de outros estados, não só do interior de SC, e claro, por conta do fim da capacidade suporte dos ecossistemas: dos rios, dos lagos, das praias, dos estuários, que recebem esses efluentes. Então, nós precisamos de uma vez por todas, agilizar a universalização do saneamento básico, incorporando nesse movimento, nesse grande movimento em SC e no Brasil, atenção para a necessidade de tratamento de efluentes ser pleno. Que nós possamos entender o esgoto, doméstico principalmente, como fonte de recursos, como uma fonte de resíduos que precisam ser resgatados e que podem ser reutilizados. Essa nova visão pode transformar de forma definitiva o saneamento básico num grande e poderoso motor de desenvolvimento, porque é um grande investimento em saúde pública, em educação, em diferentes aspectos que estão infiltrados na nossa economia.

Comitê de Apoio – Florianópolis (SC): — No dia 24 de janeiro, foi confirmado pelo governador Jorginho Mello (PL) a mudança da metodologia de coleta de água para análise da balneabilidade das praias, visando maior flexibilidade. Segundo o governador, a mudança foi realizada para não prejudicar as cidades que dependem economicamente do turismo. Quais os impactos que esta mudança pode acarretar a saúde pública e na balneabilidade das praias de Santa Catarina?

Prof. Dr. Paulo Horta: As mudanças na metodologia do IMA são perversas e não necessariamente vão proporcionar o resultado que o governador espera. São perversas porque tiram o foco de algo que é essencial: coloca a culpa da análise de algo que é reflexo da falta de investimento do estado que ele governa. Então, no lugar de assumir as deficiências de saneamento básico e dialogar com a comunidade, com toda a sociedade, a necessidade de um investimento estruturado em educação, em tudo aquilo que envolve saneamento, pois saneamento é muito mais do que tubo de esgoto, estação de tratamento. O saneamento precisa ser compreendido como a palavra mesmo representa, algo muito maior no sentido de sanear, de cuidar, de tratar. Então, o sistema de saneamento, de cuidado, de zelo, para aquilo que é resultado do metabolismo de uma cidade, de um estado, de uma sociedade, isso tudo precisa ser compreendido como algo estruturador desta cidade, desse estado, dessa sociedade. Então, se essa sociedade não tem dimensão dos problemas e das soluções relacionadas aos produtos de seu metabolismo, ela não vai ser uma sociedade crítica, ela não vai ser uma sociedade que de fato possa alimentar aquilo que está na nossa Constituição, que é a base para uma democracia participativa, ela não vai participar do processo. Então é importante que a sociedade tenha noção do que é o saneamento urbano, de sua importância de maneira clara, que a sociedade participe da determinação das prioridades de como devemos ou podemos fazer este processo de saneamento. De fato, a medida do governador atual é essencialmente equivocada porque tira o foco do problema como se o problema não existisse. O problema existe, é gigante e tem consequências ambientais, humanas, sociais e econômicas. E você ignorar estes problemas não fazem com que os problemas deixem de existir. Agora, é importante destacarmos que o fato de você aumentar a frequência de análises não necessariamente vai melhorar a qualidade da água. Você vai aumentar o número de análises e segundo a legislação vai deixar os resultados, os índices, mais dinâmicos. E esse dinamismo, de alguma forma, pode proporcionar águas próprias hoje, por exemplo, uma quarta-feira. Mas por acaso vai que amanhã tem uma chuvarada, o sistema de saneamento não suporta essa chuvarada, e claro, a sua insuficiência ou sua vulnerabilidade fica expressa com carreamento de grande quantidade de efluentes para o litoral e com isso temos na semana que vem prais impróprias. O banhista vai estar aqui, o turista vai estar aqui, já vão ter pago tudo o que pagaram e isso, a médio e longo prazo, vai minar a confiança para você ter uma atividade econômica robusta. Então isso, principalmente a médio prazo, também não é uma solução ao problema econômico relacionado às carências de balneabilidade. A gente deve destacar o seguinte: que a eventual maquiagem do resultado por conta dessa diminuição de frequência aumenta a vulnerabilidade. Isso é muito sério porque a gente tá falando de algo que é saúde pública. Nós sabemos, por exemplo, que se o rio do Braz romper, imediatamente, apesar de a placa estar própria para o banho, uma grande concentração de organismos potencialmente patogênicos estarão sendo carreados para a região costeira. E isso vai expor toda aquela sociedade, todos aqueles banhistas a estes organismos patogênicos. Deus o livre guarde, tem ali uma criança, tem ali um idoso, do ponto de vista imunológico ou do ponto de vista fisiológico, mais vulnerável, este ser humano, esse cidadão, ele pode ser levado a óbito, por um ato administrativo de muita irresponsabilidade. Vou reforçar: de extraordinária irresponsabilidade. Porque nós não temos mais o direito de tapar o sol com a peneira. Se a gente está tentando fazer isso, é um equívoco. Esse negacionismo nos leva cada vez mais para a beira do abismo. Ficou muito claro durante a pandemia. E toda vez que tem uma catástrofe fica evidente que o negacionismo só nos expõe, nos coloca em situação vulnerável diante de ameaças gigantescas, diante de fenômenos que são de fato, do ponto de vista da vida, ameaçadores. Então, é muito importante que a gente reveja todo esse cenário. Nós produzimos uma nota técnica entende enquanto coletivo [Ecoando Sustentabilidade] que utilizar a balneabilidade como um momento pedagógico para falarmos sobre saneamento básico, falarmos sobre saúde coletiva, falarmos sobre o destino do investimento de recursos públicos é uma grande oportunidade. Então, nós estamos propondo nesta nota técnica publicada recentemente segregação dos indicadores de balneabilidade, assim como está na legislação brasileira, assim como está lá na CONAMA 274, mostrando com quatro bandeirinhas diferentes, quando a água tá excelente, quando a água tá boa, quando a água tá satisfatória, e quando a água tá imprópria para o banho. Porque daí este caminho da água piorando, da água melhorando, da presença de organismos potencialmente patogênicos, mesmo que em concentrações muito pequenas, isso nos inspira a olhar para o problema, isso nos leva a olhar para o problema, e é olhando para o problema que a gente vai poder encontrar coletivamente soluções do ponto de vista político que venha valorizar ou priorizar as soluções do ponto de vista técnico.

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