Avá-Canoeiro: Guerreira sobrevivente fala sobre o massacre – Parte II

Avá-Canoeiro: Guerreira sobrevivente fala sobre o massacre – Parte II

Na primeira parte desta reportagem, a  líder Kamutaja Silva Ãwa, da tribo Avá-Canoeiro, localizada na região do Araguaia, faz um relato especial ao A Nova Democracia sobre um assunto que sua gente quase não comenta, devido ao trauma que causou: a violência criminosa do velho e apodrecido Estado brasileiro (Funai) ao forçar um contato com seu povo à base de tiros, foguetes e ameaças de morte.

Leia também: Avá-Canoeiro: Guerreira sobrevivente fala sobre o massacre – Parte I

O episódio foi escondido pelos militares durante muito tempo.

O grupo Avá-Canoeiro (que se autodenomina Ãwa) nunca tinha aceitado aproximação com a sociedade dos brancos e era tido como extremamente vulnerável. Mas nos anos 1970 o regime militar-fascista tinha pressa em “limpar” a área, para que ricos e poderosos aliados seus se instalassem na região (entre eles uma fazenda do Bradesco).

OS AVÁ-CANOEIRO

Instituto Socio Ambiental – ISA

Resumo/Adaptação de AND 

Segundo a literatura histórica, os antigos “Canoeiro” da bacia do Rio Tocantins, povo de língua tupi-guarani, preferiam a morte a se render ao inimigo e assim ficaram famosos como o povo que mais resistiu ao colonizador no Brasil Central, recusando-se terminantemente a estabelecer qualquer contato pacífico. Desde o início do século 19, após embates e fuga (perseguidores/colonizadores brancos), parte do grupo que vivia nas cabeceiras do Rio Tocantins se dirigiu à região do médio Rio Araguaia, onde passou a disputar o mesmo território com os Karajá e Javaé que habitavam a região há séculos. Com a separação dos Avá-Canoeiro há cerca de 170 anos, os dois grupos – do Rio Araguaia e do Rio Tocantins – passaram a ter uma história distinta, tendo em comum apenas a vivência do genocídio.

Notável resiliência

Um grupo de 10 sobreviventes foi capturado por uma violenta Frente de Atração da Fundação Nacional do Índio (Funai) no médio Araguaia em 1973 e 1974, enquanto 4 pessoas do Rio Tocantins, bastante fragilizadas, procuraram estabelecer o contato em 1983 com moradores regionais. Atualmente, o grupo do Tocantins vive em opressão sob um convênio indenizatório entre Funai e FURNAS, enquanto o grupo do Araguaia  vive disperso em aldeias Karajá e Javaé, embora esteja à frente de um notável processo de resiliência, afirmação étnica e retomada de parte do território tradicional. (OBS: Os Ãwa recusam-se a ser considerados “em extinção” ou “aculturados”).

Ágeis e silenciosos

Até a década de 1960, o grupo era conhecido como “Canoeiro” na literatura, em razão da grande habilidade na utilização de canoas nos primórdios do contato com os colonizadores. Segundo Couto de Magalhães, em 1863, quando era Presidente da Província de Goiás, os Canoeiro “têm esse nome, por se terem tornado célebres os seus ataques contra os navegantes do (Rio) Maranhão, a quem acometiam em levíssimas ubás e com agilidade tal, que chegavam sem ser pressentidos, retirando-se sem sofrer dano”.

Os Avá-Canoeiro autodenominam-se Ãwa, palavra que, “como em outras línguas tupi-guarani, significa gente, pessoa, ser humano, homem adulto” (Teófilo da Silva, 2005).

A língua persiste notavelmente

A língua avá-canoeiro pertence à família tupi-guarani, do grande tronco tupi. O estudioso Aryon Rodrigues concluiu que a língua dos Avá-Canoeiro estaria muito mais próxima de povos  setentrionais (ou “amazônicos”) como Tapirapé, Suruí, Guajajara e Tembé, em comparação aos Guarani do sul e sudeste.

Tutawa, pajé e líder histórico do grupo (OBS: avô da jovem Kamutaja) insistiu em manter viva a língua junto aos seus descendentes. (Assim) ela persiste notavelmente, apesar de um contexto social extremamente adverso, pois os Avá são um grupo minoritário que vive em uma posição de marginalização social nas aldeias Javaé e Karajá.

Localização

Os Avá-Canoeiro estavam morando nas matas de galeria das cabeceiras do Rio Tocantins, quando foram encontrados pelos primeiros colonizadores do Brasil Central na segunda metade do século 18. Em razão dos massacres violentos, os Avá-Canoeiro iniciaram um processo de mudança/saída das matas junto aos rios, onde andavam em canoas e estavam mais expostos aos colonizadores. Parte do grupo continuou vivendo na região do Rio Tocantins, (porém) refugiando-se em lugares inóspitos, onde teve a população reduzida drasticamente. Enquanto outra parte deslocou-se, ao que tudo indica em grupos separados, para a bacia do Rio Araguaia, principal afluente do Tocantins.

Os Avá-Canoeiro do médio Araguaia

Os primeiros registros da presença dos Ãwa em afluentes do Rio Araguaia, ao sul da Ilha do Bananal, são da década de 1830. Nos anos que se seguiram, (empurrados por perseguidores brancos) os registros dão conta de uma movimentação cada vez mais para o norte, com a chegada na Ilha do Bananal.O grupo passou a disputar o mesmo território de ocupação tradicional dos Karajá e Javaé, localizado dentro e fora da grande ilha. Na primeira metade do século 20, há quem lembre de centenas de “Cara Preta” morando em aldeias em locais recônditos do vale do Rio Javaés, que se tornou seu território principal de movimentação até o contato (violento/traumático) em 1973.

Maior área contínua de várzeas do mundo, o vale do Javaés, que forma a Ilha do Bananal e que ainda não havia sido alcançado pelas frentes de colonização até a década de 1930, passou a ser compartilhado pelos Avá-Canoeiro com o povo Javaé.

Os dois povos priorizavam ambientes e recursos naturais diferenciados em certa medida, o que permitiu a convivência histórica de ambos na região.

Numa gruta

O líder Tutawa lembrava que seu grupo de parentes morava em uma gruta ao norte da Ilha do Bananal, no Pará, durante a sua infância na década de 1930. (Em seguida começou uma sequência de fugas.)

Na época do contato, em 1973, o principal acampamento dos Avá se situava no inóspito Capão de Areia, área elevada e seca de refúgio de porcos selvagens na estação cheia, dentro da Mata Azul, localizada entre os rios Javaés e Formoso do Araguaia, fora da Ilha do Bananal.

Em 1976, o grupo foi transferido pela Funai para a aldeia Canoanã, dos Javaé, situada na Ilha do Bananal. Atualmente o grupo vive disperso em aldeias Javaé e Karajá.

Os Avá-Canoeiro do Araguaia têm como meta se reunir em uma futura aldeia na TI Taego Ãwa, na região da Mata Azul, no município de Formoso do Araguaia (TO). A terra tem cerca de 28 mil hectares, mas os Avá ainda não moram nela por estar ocupada por fazendas e um assentamento do Incra.

Nunca puderam subjugá-los

A resistência tenaz e inflexível dos Canoeiro tornou-se célebre, sendo recorrente na literatura histórica do século 19. Os historiadores resumem a questão dizendo que nunca se conseguiu realizar o contato pacífico com os Avá-Canoeiro, subjugá-los ou reduzi-los em aldeamentos, os quais lutaram para se manter autônomos até o contato forçado em 1973.

Cabeça Seca e Mariquinha

O projeto colonial e capitalista de ocupação do interior do país a partir da Marcha para o Oeste, iniciada nos anos 30, no governo Vargas, que culminou com a construção de Brasília nos anos 1950 pelo governo JK, inaugurando um novo fluxo migratório no Brasil Central, e teve continuidade com o projeto de ocupação da Amazônia nos governos militares, nas décadas de 1960 e 1970, foi o fator determinante que levou os Avá-Canoeiro à beira da extinção física.

Na região do Araguaia, a literatura e a memória regional atribuem a famosos caçadores de índios, como Martim Cabeça Seca e Vicente Mariquinha, entre outros, o assassinato de centenas de índios “Caras Pretas” e o massacre de aldeias inteiras nas décadas de 1940, 50 e 60.

Militares adotaram as transferências forçadas, mas as esconderam

Após o golpe de 1964, como mostrou o jornalista Rubens Valente em seu livro sobre a ditadura militar e os povos indígenas (2017), e o próprio Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014), os militares deram continuidade ao antigo plano de “ocupação” da Amazônia legal, criando a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e sua política de isenções fiscais para grandes projetos de colonização.

Um verdadeiro genocídio foi posto em marcha pelo Estado brasileiro e violências variadas foram cometidas e mantidas ocultas em documentos oficiais secretos nesse processo de conquista do território mediado por ações denominadas de “pacificação”, em que os povos indígenas eram percebidos e tratados como entraves ao progresso nacional.

Na época, a política indigenista patrocinava transferências e a sedentarização dos grupos em sua busca pela “integração” dos povos indígenas à nação. A Fazenda Canuanã, na margem direita do Araguaia, de onde foram transferidos os Avá-Canoeiro, e a Fazenda Suiá-Missú, de onde foram transferidos os Xavante de Marãiwatsédé, foram duas das grandes fazendas do médio Araguaia que se beneficiaram dos recursos da Sudam e da política de transferência forçada dos povos indígenas.

Xamanismo e cosmologia na salvação cultural dos Ãwa

O processo histórico de violência e fragmentação dos Avá-Canoeiro constituiu um grande obstáculo à pesquisa etnográfica e histórica do grupo, tanto em função da redução populacional quanto em função dos traumas.

Entre os Avá-Canoeiro do Araguaia, a perspectiva recente de regularização fundiária de uma terra própria permitiu o acesso de pesquisadores a informações importantes, principalmente quanto ao processo histórico do contato, não havendo até o momento estudos aprofundados sobre características da organização social ãwa.

Mesmo assim, foi possível constatar que certas características tradicionais e recorrentes de povos tupi estão presentes entre os Avá-Canoeiro, de modo que a resiliência pós-contato desse povo é algo que impressiona mais do que o processo de genocídio e perda da autonomia.

Os Avá-Canoeiro têm demonstrado ter mecanismos próprios, mesmo em uma situação-limite, para atuar sobre uma conjuntura desfavorável a partir de estruturas sociais e cosmológicas ancestrais e dinâmicas. Nessa perspectiva, torna-se obsoleta a descrição que pesquisadores fizeram do grupo do Araguaia, durante décadas, como “aculturado” ou “mestiço”.

Em seu livro clássico, onde faz uma revisão minuciosa da bibliografia sobre os povos de língua tupi-guarani, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (1986) concluiu que a resistência à mudança social imposta pela sociedade brasileira se deu principalmente pela “vida religiosa”, associada ao xamanismo e a um elaborado discurso mítico e cosmológico. Desse modo, a “organização social” é indissociável da cosmologia e da mitologia. Essas características persistem entre os Ãwa, que foram guiados pelo pajé Tutawa durante décadas antes e depois do contato.

 

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