Finalmente começam a se tornar públicos os dados obtidos no Censo de 2022. Isto se dá depois de uma longa espera, doze anos, dois a mais que o tempo previsto por conta de uma série de fatores de diversas naturezas: subfinanciamento da autarquia responsável – o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) –, a pandemia e sua malfadada condução por conta do governo federal, para ficar em dois mais expressivos. Em que pese os limites orçamentários e ideológicos, o Censo oferece ao leitor a mais completa base de dados pública sobre a população brasileira. Certamente, as big techs possuem também bases de dados consideráveis, mas esses são seus bens mais valiosos, protegido a sete chaves. O Censo, portanto, deve servir de embasamento para qualquer teorização científica sobre as dinâmicas populacionais no Brasil.
Direto aos primeiros dados revelados pelo IBGE, um dos que mais chamam a atenção é a população brasileira bastante abaixo da projeção esperada. Contrariando expectativas que haveria entre 210 a 215 milhões em 2022, o Censo reportou uma população de apenas 203 milhões de brasileiros confirmando que na última década tivemos a menor taxa de crescimento populacional dos últimos 150 anos, ou seja, desde quando são realizados Censos (o primeiro ocorreu no Segundo Reinado em 1872). Entre as possíveis causas desse crescimento reduzido estão, de forma pontual: a pandemia de Covid-19 que vitimou no mínimo 600 mil brasileiros – possivelmente o número foi maior, devido a conhecida subnotificação dos casos –, a profunda crise econômica e política que o Brasil atravessa desde o início década de 2010 – que desestimulou a constituição de famílias neste período –, e também o avanço de forma sistêmica no processo de transição demográfica que nosso país atravessou a partir da década de 1950.
Sobre este último processo, de maior profundidade histórica, e variadas causas, ele tem como resultado a redução das taxas de natalidade (nascimento a cada 1.000 habitantes por determinado tempo, geralmente um ano), fecundidade (filhos por mulher ao longo da vida reprodutiva) e também as de mortalidade (mortes a cada 1000 habitantes por determinado tempo, geralmente um ano).
A princípio, enquanto em alguns países europeus a transição demográfica é evidente desde o século XIX, no Brasil essa passa a ocorrer a partir da década de 1930 quando a urbanização e o início da generalização dos serviços médicos fazem reduzir as taxas de mortalidade enquanto as taxas de natalidade permanecem por certo tempo elevadas (é padrão das sociedades rurais uma taxa de natalidade mais elevada que as urbanas, e mesmo hoje o campo brasileiro tem as taxas de natalidade/fecundidade maiores que nas grandes cidades) levando a um grande crescimento vegetativo – isto resulta, portanto, no crescimento populacional real, ignorando o saldo migratório.
Em um momento posterior como necessidade do sistema econômico capitalista, se deu a inserção da mulher nos postos de trabalho – ou seja, a participação da mulher na produção, na luta de classes e na experimentação científica –, e isto resultou no adiamento do casamento em função da busca da estabilidade profissional e elevou sua própria consciência enquanto a métodos contraceptivos. Por consequência, as taxas de natalidade/fecundidade tenderam à uma redução.
Outro fator da urbanização que favorece a redução das famílias é a dependência do mercado para obtenção de bens de primeira necessidade que antes eram suprimidos pela economia doméstica de subsistência (hortas, pomares, pequenas granjas, etc.). No Brasil isso passa a ser notado entre as décadas de 1940 e 1950 quando a fecundidade de mais de seis filhos por mulher cai paulatinamente até chegar aos atuais 1,62 filho por mulher – taxa insuficiente para reposição populacional em longo prazo sem o acréscimo de imigrantes: a taxa ideal seria de 2,1. Mas essa tendência não é apenas nacional, mas global. Afora a velha Europa, a crise demográfica é uma realidade no Leste Asiático, Europa Oriental, Ásia Central, Oceania e partes da América (desde o Canadá, até países dominados como Cuba e Brasil).
Ao contrário do predicado por Malthus e seus seguidores alarmistas, o crescimento populacional não tende ao infinito. Na verdade, sob a égide do capitalismo, tende mesmo ao declínio. Ainda que seja verdade o crescimento exponencial da população apontado por Malthus, ele não incluiu em suas variáveis a historicidade do comportamento reprodutivo humano. Nos animais, de forma mais simples, a reprodução é condicionada por estímulos químicos (de cios ou temporadas de reprodução) que favorecem o impulso sexual em certos períodos (geralmente prevendo boas estações para a criação dos filhotes) e a quantidade de recursos disponíveis no ambiente que ditará a sorte da ninhada, este último particularmente será determinante para conceber as taxas de natalidades e os platôs [1] de população possíveis naquele espaço.
Para o homem, navegante do reino da necessidade ao reino da liberdade, através da luta pelo domínio da natureza, esses fatores (o químico e a disponibilidade de recursos) se tornam desimportantes frente a variáveis de aspecto social. O modo de produção capitalista propiciou a maior abundância material vista até então, o que, a princípio, elevou bastante as taxas de crescimento populacional (não necessariamente com o crescimento da taxa de natalidade/fecundidade, mas com a redução da mortalidade em geral e infantil). Contudo, hoje, o mesmo sistema, mantendo a abundância material, tem derrubado as taxas de crescimento populacional em todo globo, principalmente nos seus centros como nos espaços subalternos de acentuadas relações capitalistas (como o caso do Brasil), devido às relações de produção que privam as grandes massas trabalhadoras do acesso pleno aos meios de reprodução de sua vida material.
Por exemplo, as sucessivas reformas trabalhistas também colaboraram por rebaixar a fecundidade nacional: a perda de garantias do empregado, a redução das carreiras públicas e agora o fenômeno da pejotização [2] e uberização retiram da família a estabilidade necessária para o planejamento de uma gravidez.
Antes restrito apenas a Europa, a crise demográfica é uma realidade no Leste Asiático e cada vez mais também nos países da América Latina. Só que, enquanto as economias dos países imperialistas desfrutam do luxo de vampirizar a população economicamente ativa do Terceiro Mundo por meio da imigração para retardar seus efeitos da previdência e na indústria, para o Brasil submetido ao imperialismo essa não é uma alternativa viável. Isto se relaciona a um outro resultado do Censo 2022: a diminuição dos moradores do domicílio para 2,79, ou seja, em outras palavras, a redução da própria família.
Fazendo uma analogia à antiga geografia helênica, que classificava os espaços como ecúmenos (terras habitáveis) e anecúmenos (terras inabitáveis, desertos e regiões polares), pode-se dizer que o capitalismo operou transformações de ordem social nos espaços antes promissores à reprodução humana que criaram amplos anecúmenos – espaços estéreis – que dependem de influxos periódicos de migrantes para sustentar suas atividades. Hoje, nos grandes centros do sistema capitalista, Europa Ocidental e América Anglossaxônica, o crescimento vegetativo insatisfatório obriga essas economias a vampirizarem a população economicamente ativa da África, Ásia, América Latina e Europa Oriental para sustentar sua indústria e previdência social. Os recentes episódios na França são, em grande parte, obra dos “filhos do deserto, onde a terra esposa a luz” trazidos em naus errantes pelo Mediterrâneo.
Diante de tal situação é impossível não fazer analogias ao antigo sistema escravocrata, seja em Atenas e Roma, como na América Colonial, onde a manutenção da economia dependia da importação de escravos noutros espaços, visto que seu crescimento populacional era insatisfatório e faltavam-lhe trabalhadores. No Brasil, contudo, em processo de desindustrialização e desemprego estrutural, e em países que sofrem as consequências diretas da cruel dominação imperialista (nas chamadas “crises humanitárias”), como Venezuela, Síria e África Subsaariana, a ideia da superação dos efeitos da crise demográfica pela importação de mão de obra estrangeira parece muito distante, mesmo porque parte da nossa mão de obra (inclusive a especializada) já busca melhores condições na Europa e América. Provável que no nosso caminho seja, caso nenhum fato disruptivo ocorra, como os dos países da Europa Oriental que alcançaram um platô na década de 1980 e depois a população passou a cair.
Ainda que existam experiências, em especial nos países nórdicos, de políticas natalistas que reverteram a crise demográfica através do aumento da natalidade, no Brasil nada do tipo se vê no parlamento reacionário. Alguns dos políticos reacionários parecem mesmo ignorar os dados, espalhando mitos neomalthusianianos e racistas (como aquele que aponta o trabalhador brasileiro se reproduz de forma irresponsável como coelhos) e também impulsionam o reacionarismo mais abjeto da cruzada antiaborto, que aponta como vilão e demoníaco até mesmo os métodos anticoncepcionais. Estes desprezíveis ignoram que nossas taxas de fertilidade são de 1,7 filho por mulher – menores mesmo que a de países de alto padrão de vida se comparado ao nosso como Holanda, Islândia, Israel e EUA – e permanecem em silêncio contra a maior pressão contraceptiva – e, porque não dizer, abortiva? – exercida sobre as mulheres que sacrificam sua fertilidade em nome do Capital. Na verdade, os verdadeiros “inimigos da família brasileira” são: as reformas trabalhistas, previdenciárias, o desmonte do serviço público, as “novas” relações de trabalho informal – tão “novas” quanto o tronco e o chicote – e em suma: a velha economia semicolonial do Brasil que tão bem combina com a contemporânea ressaca do capitalismo. Estes são os verdadeiros “destruidores da família”, atuando mesmo como os maiores apologistas da contracepção e do aborto, mesmo na ilegalidade.
Cada vez mais a decisão de se constituir família é adiada ou mesmo definitivamente afastada como um sonho impossível, pueril por nossos jovens. A reprodução – que é natural para os animais e uma benção para os antigos – hoje é uma maldição se olhada apenas pelo fator financeiro. Enquanto isso, os chamados conservadores, tão preocupados com a contracepção entre jovens e do aborto realizado por mulheres que desejam interromper sua gravidez indesejada, ignoram que um mar de mulheres desejosas da maternidade é obrigado a sacrificar sua fertilidade e sonhos em nome, não de Moloch [3] ou qualquer demônio ancestral ávido pelo sangue inocente de bebês, mas do Capital.
Notas:
1- Em epidemiologia, platô é o momento em que se atinge uma determinada estabilidade.
2- Generalização do uso de relações de trabalho baseado na contratação de pessoa jurídica e não de pessoa física, o que dá ao empregador menos despesas com direitos trabalhistas.
3- Nome de um deus pagão citado em Levíticos, na Bíblia, cujo culto incluía o sacrifício de crianças, que eram queimadas.