Para Gaspar Paz e aos imprescindíveis atuadores
da Companhia Ensaio Aberto.
“Como poderá alguém dizer a verdade sobre o fascismo
ao qual é contrário, sem querer falar do capitalismo que o produz?
Que aspecto prático poderá ter esta ‘verdade’?”
Bertolt Brecht
1
Bertolt Brecht nos convoca às despregas, nos lança um punhado de areia na cava dos olhos para evitar que a vista se acomode aos fatos – ao seu encadeamento corriqueiro que ilusiona; a sua repetição em moto-contínuo que o habilita e legitima; ao assentamento acrítico de suas contradições e arbítrios à semântica jurídica que o conforma e regulamenta. É que, inúmeras vezes, os fatos nos chegam travestidos em hábitos comezinhos, rasteiros, discretos e pudicos, ou envoltos em manto diáfano, translúcidos e transparentes, supostamente desvelados e inteiriços, portando consigo o salvo conduto de sua fatualidade inquestionada. Como se estivessem a atender ao regramento da natureza, ou aos antiquíssimos cálculos dos costumes de entre os homens; seja sob o regime da temperança e da conformação ótima dos acordos, seja pela condição neutral e técnica dos contratos que, suposto, avalizariam, de forma equânime, o interesse de todos, e isto sob justa medida, a fim de garantir a estabilidade da ordenação social. Toda e quaisquer. Mas quem deposita um tostão furado de crença a isto – a esta neutralidade do contrato social e das cismas do Estado que o alinhava desde a sua burocracia institucionalizada e classista?! Tantos, a multidão que se plasma por interesses vários, não poucos, e Brecht nos incita a rejeitar tais postulados, tal dogmatismo, e a recolocar os fatos na trama material e concreta da história, sob o regime complexo e contraditório das forças dispostas à luta de classes.
Bertolt Brecht nos grita às cavidades dos sentidos a urgência do rechaço, dos destemperos da desconfiança, do recuo crítico, da gravidade insurgente do distanciamento, da assunção devotada às lentes metodológicas da dialética. É que no que costuma nos ser apresentado como natural e objetivo, sob forma fragmentada ou dispersa, se disfarça e escamoteia o tanto que há de arbítrio e opressão; signos inequívocos da dominação de classe. Brecht nos interpela a escrutinar o tanto de abuso e expropriação se equilibra ao monocórdio da regra e das leis, aos corrimãos e labirintos da burocracia e das instituições do Estado burguês, e a revelar, de forma corajosa e insistente, a verdade que auxilie a desopilar o torpor dos sentidos, e que, como instrumento de corte, sirva de aporte à emancipação da classe trabalhadora.
2
Estamos a uma peça de Brecht – A exceção e a regra, escrita entre os anos de 1929/30. Não trataremos de contá-la de cabo a rabo. Pelo contrário, de brusco, apresentamos a antessala de seu desfecho, o comerciante acabou de assassinar ao seu carregador (cule) em meio à travessia do deserto de Jahi. Sob os fantasmas da desconfiança, o comerciante não titubeou em disparar uma rajada de balas contra o corpo do homem que trabalha. Pareceu a ele que o carregador portava consigo uma pedra às mãos, e que iria golpeá-lo para saquear tudo o que lhe pertencia, de direito e de fato. De forma preventiva, sacou da arma e encerrou o caso. Um, dois, três tiros. Brecht não deixa claro a quantidade de disparos, mas ao fôlego do comerciante, tomado em fúria e susto, o melhor a fazer seria a saraivada, o balaço, a repetição, até que o corpo do Cule se mostrasse inerte, em definitivo, e ele o fez, ele o faria, e uma outra vez ainda. Não há tempo-espaço a remorsos, remordimentos, feridas ulceradas na consciência moral do comerciante. Ele é tão somente a síntese de um projeto de dominação, ele é a expressão nua e crua de uma opressão corriqueira que se atualiza a toda hora e em tantos quadrantes. Ele são muitos, inúmeros, se multiplicam aos borbotões, eles atendem pelo nome infausto de legião. Mas, a um só tempo, síntese que é, ele se faz preciso, pontual, econômico, certeiro e pragmático. Afinal, nos seus termos, ele dirá: Como não dormi no ponto, levei vantagem. Como não desanimei, vim mais ligeiro. Para trás ficam os fracos, o forte chega primeiro. (…) Quem morre é o homem doente. O homem forte vai na frente.
Agora, a jornada terá que ser desfeita, e todo o capital empregado por Karl Langmann, o comerciante, está irremediavelmente comprometido. Ele, um homem rico, de lastro e sobrenome, com propriedades e perspectivas; estudado nos bancos da academia e com íntimas relações nos altos escalões da sociedade – magistrados, financistas, banqueiros, agentes comerciais, generais da guarda e das fronteiras, homens dos parlamentos e ministérios; ele, este homem distinto, que mapeava os acordos às instituições parceiras, aos contatos no estrangeiro; ele, o agenciador de mancheia, com mapa-múndi às córneas e em alto relevo; ele com tanto investimento e afinco em jogo – força nas pernas e no tronco, disposto ao arrendamento de postos desérticos e aportes de capitais uteis e voláteis. Ele que, por seu olhar prospectivo, divisava os longes de que a condição amesquinhada do Cule jamais seria capaz de alcançar. Ele que sabia separar o joio do trigo – e que não se furtava de, em separando a praga da plantação, nomear àqueles que deveriam ser constantemente observados, os perigosos, os purulentos, os que cedo ou tarde, mas inevitavelmente, serão os que um dia irão constar à condição de abatidos, os cálculos mórbidos no saldo da seção de segurança pública; os que são mortos nas mortes sob encomenda, as mortes severinas, as mortes amarildas, as mortes à beira da estrada, as mortes às vielas do periferia, as mortes da cova rala e da metade da vela nas extremidades do corpo dilacerado; estes que em nada tendo de seu, nada é que teriam a perder no caldo entornado das horas; estes que em nada tendo a perder, apenas poderiam vir a ganhar – na roleta russa das transações, pouco, sempre pouco, é claro, mas nada que isto lhes salva ou faz render tributo, pelo contrário, estes os que deveriam estar sob a mira permanente dos parlatórios da imprensa e das academias de polícia; estes os que seriam capazes de quaisquer atos, de quaisquer atendados, estes os ‘joãos ninguéns’, os ‘juan perez’ que foram acostumados ao cálculo aziago das horas magras e que estando condenados a nada serem senão os atores assujeitados de um ganha-pouco, no varejo e na xepa, seriam e sempre hão de ser os mais perigosos – Karl Langmann bem o sabe, e ele não irá perder a chance de se revelar quando da hora do lobo; ele estará com a arma e a alma engatilhada, ele terá cinco, seis balas no coldre e na vontade, ele não tardará nem um minuto, um dois três, Brecht não conta quantos tiros foram, mas Brecht descreve um corpo no chão (ou dois ou três – como na fotografia mais acima), mas e agora? Agora, o comerciante terá que voltar.
Ele que prefigurava o desenvolvimento de toda a região com a construção das ferrovias a varar aquelas zonas sem gentes; ele que vislumbrava as fábricas soltando pelas ventas as fumaças do progresso – Karl Langmann teria que recuar, que voltar a estaca zero. Logo ele que havia se adiantado aos outros comerciantes; logo ele que havia imposto aos seus comandados o repertório variegado de humilhações e suplícios – a arma nas costas à altura do pescoço para fazer parar o medo dos que tem medo; logo ele que, às custas da superexploração da força de trabalho do carregador, havia conseguido se adiantar em vinte quatro horas com relação aos seus oponentes… É que ele queria chegar à frente das outras caravanas, queria ter acesso aos poços de petróleo cuja concessão de exploração seria entregue ao primeiro dos investidores que se apresentassem. Ele que tivera a coragem de dispensar o guia, contratado, sindicalizado, por receio de que ele pusesse minhocas na cabeça vazia do carregador. Ele que tivera a altivez de abandonar o guia em meio ao deserto porque sabia com os seus botões de que os dois, guia e cule, teriam razões de sobra para atentar contra ele, Karl Langmann; e que de hora a outra, eles teriam as suas razões acumuladas, um tonel de motivos ferventes, eles teriam um saco de penúrias para sacudirem e se rebelarem, para se insurgirem, e romper com os grilhões de sua condição escrava, com a ordem do dia dos trabalhos odiosos, as feridas e cascas na cabeça e no lombo; eles poderiam toma-lo de assalto à calada da noite e deixa-lo entregue a sua própria sorte. E o comerciante se orquestrou aos modos de uma ação preventiva. Abandonou o guia como quem espanta com um pedaço de pano um punhado de moscas varejeiras, o dispensou sem aviso prévio, sem garantias de qualquer monta, e ponto.
E eis que Karl Langmann, homem forte, divisor de água, timoneiro (mas não guia), afrontou as obviedades de uma condição imprópria e decidiu seguir adiante, dispensando o guia, tosquiando o carregador, fazendo com que os dias se esticassem ao seu plano de voo e de metas a cumprir, eles seguiram. Voraz este Langmann; servil o cule adestrado. Juntos eles seguiram – inda que não de todo junto, porque o cule sabia o que ele descrevia sob a forma de canção:
Cá está o rio. Atravessá-lo a nado é perigoso.
Na beira de estrada estão dois homens.
Um faz a travessia a nado, o outro hesita.
Será corajoso um deles? Será covarde o outro?
Na outra margem do rio, um tem um negócio a fazer.
Do perigo sai um respirando aliviado na margem alcançada.
Vai pisar no que é seu. Vai ter comida fresca.
Já o outro sai do perigo a arquejar para o nada.
Esperam por ele, o debilitado, perigos novos.
Serão ambos valentes? Serão ambos prudentes?
Ah, do rio que os dois venceram juntos
Não saem dois vencedores.
Nós e: eu e você
Não tivemos a vitória
Mas a mim você venceu.
Era do inóspito da travessia o de que se tratava – ser capaz de superar os caminhos tortuosos tomados pela aridez do solo, pelos bandos de assaltantes que pilhavam as caravanas, pela ausência de postos de paragens e repouso, pela força da correnteza e profundidade das águas do Rio Mir quando das enchentes, pelos fantasmas que gritam palavras de agonia e que não deixam que o sono dos justos faça morada na cabeça do investidor.
Era do inóspito da travessia o de que se tratava – ser capaz de superar as agressões de todas as horas, os xingamentos e provações da boca maldizente do comerciante, e sua ira furibunda sempre que o cule titubeasse – se de medo, se de incerteza, se de cansaço, se de braço quebrado segurado em tipoia, se do pavor do afogamento no rio caudaloso e profundo. E seria sempre a tenda que se arma para evitar os animais selvagens, e seria sempre a coberta rota como espantalho das pneumonias que a friagem traz consigo à algibeira. E seria sempre da sorte dos dados lançados, se eles se fazem capazes da repetição dos números em sorteio, seria da aposta, da ousadia da aposta, dos riscos do perder e do ganhar, não seria da inércia o padrão dos ajustes, seria do lance, a voz que se sobreleva quando do inóspito do tráfego, a travessia…
Todavia seria o tiro, o balaço, a interrupção da comunidade imaginária entre Karl Langmann e o carregador o que, de fato, se faria, o que se fez, a interrupção abrupta, embora anunciada, a justa a um duelo desigual. Na mão do comerciante, a arma de fogo. No corpo do cule, o rastilho de pólvora, as perfurações.
Agora será o tribunal o que restará ao homem que chegaria em primeiro, o empreendedor contumaz e seu chicote de estalar a preguiça no corpo dos que trabalham. Falaremos do tribunal. Entretanto, comecemos por outro ajuntamento de consciências judicantes, um outro tribunal da razão ordeira a repor as coisas dispersas ao seu lugar de vigência habitual. Tribunal distinto e semelhante nas suas funções e fazimentos. Sobretudo no que tange a este emaranhado dialético entre a exceção e a regra.
Nos cabe o anúncio: Brecht virá ao Brasil.
3
Estamos dentro de um livro – e no livro, dentro da 46ª. Reunião mensal da Congregação, órgão supremo do Instituto de Química, da Universidade de São Paulo. Bernardo Kucinski nos fornece detalhes sobre o recém-inaugurado Instituto àquela data, 23 de outubro de 1975. São palavras de Kucinski:
Em torno da mesa de mogno, longa, pesada, de bordas entalhadas, como deve ser a mobília de uma universidade, sentam-se oito ilustres professores do Instituto de Química, chefes de departamento, cientistas de renome, entre eles Ivo Jordan, especialista na separação isotópica do urânio; Newton Bernardes, conhecido na física dos materiais e Metry Bacila, pioneiro da Biologia Marinha. O Instituto de Química notabilizou-se pelo rigor científico, influência dos alemães Heinrich Hauptmann e Heinrich Rheinboldt, fundadores da Química no Brasil, para onde vieram fugindo do nazismo. No momento desta reunião, o Instituto tem apenas cinco anos de existência. Giuseppe Cilento, que coordenou sua criação juntando departamentos e pesquisadores dispersos em diferentes unidades da Universidade de São Paulo, também está na reunião. Construído com dinheiro da Fundação Ford, o imponente Conjunto das Químicas, como é mais conhecido, ocupa toda a colina leste do campus.
Talvez pudéssemos afirmar que tal reunião em praticamente nada se distinguiria de tantas outras que ocupam o calendário acadêmico das universidades brasileiras – as de ontem, àquela época, e as de agora, no que beira e acena ao porvir. Na condução dela, algum professor a ocupar o cargo de Diretor do Instituto – cargo que pressupõe um sem-número de tarefas desde as mais corriqueiras e protocolares, àquelas que demandam uma sagacidade típica de fina flor estratégica. Como quando se trata de costurar parcerias para investimentos de infraestrutura imprescindíveis ao ótimo funcionamento da instituição e do perfeito desenrolar das atividades científicas desenvolvidas pelos profissionais nela alocados – respeitando e referendando, claro está, a tripla hélice do Ensino, Pesquisa e Extensão. Outros tantos colegas professores, chefes de departamentos diversos, coordenadores dos cursos que compõem um Instituto costumam estar presentes e somar ao quórum de tais atividades. Imprescindível não esquecermos dos funcionários, em geral um único, encarregado, entre outras funções, de alinhavar sob o formalismo das atas, tudo o que fora tratado ao longo da reunião, desde a seção dos informes, os pontos de pauta, as deliberações quando de matéria disposta ao escrutínio do fórum, a síntese dos debates e discussões – procurando, sempre, o equilíbrio entre a mera transcrição das falas e o aprumado fidedigno das ideias postas em jogo por cada um dos participantes. A tais instâncias, é comum também, que se tenha a presença de algum membro da comunidade discente. No quando da reunião referida por Kucinski, foi listada tal presença e participação. Bernardo Kucinski conta que na ordem do dia daquela reunião constava o processo 174899/74 – no qual a reitoria solicitava a rescisão do contrato de uma professora ‘por abandono de função’, conforme o inciso IV do artigo 254 do Regimento.
Sugerimos um pequenino salto – sabe-se lá se para além da zona turva na que os limites entre a escritura ficcional e a de não-ficção se bifurcam, se tangenciam, ou se no quando de seu ‘borramento’ em uma espécie de arquivística documental a servir de dispositivo desde o qual o homem que escreve, ventríloquo não autorizado dos ensejos de Bertolt Brecht, exercita a sua tarefa de enunciação e distanciamento, elementos incontornáveis a coragem da verdade que visa elucidar o arbítrio acoitado nos ditames regulamentares da ordenação jurídica. Toda e qualquer.
Agora, estamos dentro do processo iniciado em 11 de junho de 1974 por um ofício assinado por Ernesto Giesbrecht, então Diretor do Instituto de Química, da Universidade de São Paulo, e encaminhado ao Reitor Dr. Orlando Marques de Paiva.
Eis os termos deste ofício:
São Paulo, 11 de junho de 1974
Magnífico Reitor:
Dirijo-me a Vossa Magnificência com a finalidade de solicitar pronunciamento da digna Consultoria Jurídica a respeito de procedimento a ser adotado por este Instituto em relação à Professora Doutora ANA ROSA KUCINSKI, contratada em RDIDP, com salários fixados na referência “MS-3”, e que desde o dia 22/4/74, conforme constou do boletim de frequência, não comparece a este Instituto, sem que se registre anteriormente qualquer anotação de caráter disciplinar em seus assentamentos.
Tratando-se de docente, o que, a nosso ver empresta ao caso um caráter delicado, e de situação ainda não enfrentada por este Instituto, gostaríamos de contar com o assessoramento da Consultoria Jurídica a fim de evitar vícios no procedimento a ser adotado.
Apresentando a Vossa Magnificência os mais altos protestos de consideração, subescrevo-me,
Atenciosamente,
Ernesto Giesbrecht
Diretor
PS: Consta que a tal ofício se deu entrada na Reitoria no dia 12/06/1974.
Somos tomados de assalto pela tarefa didática exigida quando da encenação brechteana – afinal é imprescindível o esclarecimento das partes à compreensão do todo. Mister nos colocarmos a este lugar e modo, eivado de um filete de ironia, na obrigação de elencar algumas hipóteses plausíveis advindas de situações como a referida. E hei-nos a esta missão no que parágrafo seguinte:
Na certa que haveria de se pontuar a situação na que estariam os estudantes privados da carga horária efetivamente cumprida, seja no que tange à apresentação de conteúdos imprescindíveis a sua formação, seja no que diz respeito às atividades complementares de fixação dos mesmos conteúdos tais como trabalhos extracurriculares e exames de avaliação de aprendizagem – funções estas prescritas na regulamentação contratual do profissional docente. Claro está que a irregularidade atestada no exercício profissional não poderia se estender por tempo indefinido acarretando, sem sombra de dúvida, perda inestimável a comunidade discente. Talvez fosse ainda caso de tomar a si a letra fria cega e justíssima da legislação trabalhista no que esta versa sobre a qualificação de abandono de emprego uma vez a ausência injustificada do funcionário na forma sequenciada de 30 dias úteis. Mister ainda a referência ao desconforto que tal situação poderia vir a gerar no quadro de docentes do departamento em que estaria alocada a faltosa professora. É que, por vezes, nos intentos de minimizar as perdas acima dispostas, os colegas poderiam vir a ser escalonados em condição de suplência temporária – o que, certamente, acabaria por gerar uma sobrecarga de trabalho desnecessária se a docente não estivesse incorrendo em falha grave e, inédita até então a estas plagas. Outro mais, importante mencionar que a situação irregular apresentada configura estado de vacância no que sequer se poderia pleitear a conformação de um novo concurso público para a ocupação da vaga de professor – o que, pela temporalidade própria às tramitações necessárias para tal, exigiria algo em torno de seis meses. Isto posto, sigamos alguns dos andaimes preliminares até que se esteja suficientemente referenciado os elementos necessários ao acórdão final. E então, eis que.
No dia 20 de junho de 1974, segundo o parecer n. 132/74, a Divisão Técnica de Pessoal atestará a veracidade dos fatos, dos dados contratuais e a legitimidade do pleito processual encaminhando o processo a Assessoria Jurídica da Universidade. A esta instância, em seguimento à consagrada tradição de minuciosa consulta à literatura específica que se debruça sobre se tal infração se configuraria como falta disciplinar ou como crime, ou se o conceito de abandono estaria subordinado à probabilidade de dano ou prejuízo conforme as posições contrárias e/ou complementares dos juristas Nelson Hungria e Magalhães Noronha; assim como à jurisprudência na que se fundamenta esta doutrina, tal como se mostra referida na Revista dos Tribunais, volume tal, volume tal e volume tal, assim como na Revista de Direito Administrativo volume y e volume x, sem todavia deixar de mencionar que a segunda das teses dispostas pelos magistrados é defendida pelo Venerando acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo e pelo Consultor Geral da República, Dr. Romeo de Almeida Ramos; se conclui:
Opera-se o abandono de funções, na esfera administrativa, pela verificação, em processo administrativo, da vigência do prazo de mais de 30 dias, ao passo que, nos termos do art. 323, do Código Penal, o crime de abandono de função pública é de natureza dolosa; só se caracteriza ou integra com a existência do dolo, ou seja, a vontade deliberada do servidor de abandonar o cargo fora dos casos permitidos em lei.
Propomos, pois, que o caso seja submetido à alta apreciação da Douta Congregação do Instituto de Física, para manifestar-se sobre a aplicação da pena de dispensa (art. 254, inciso IV, do Regimento Geral) e informar se as faltas dadas pelo docente acarretaram, ou não, prejuízo para o Instituto.
É nosso parecer, s.m.j..
São Paulo, 15 junho 1974
VERCINGETORIX DE CASTRO GARMS
Assistente Jurídico
E isto seguirá…
4
Bertolt Brecht, debruçado sobre suas primeiras peças, lhes dispara petardos críticos como se buscasse enxergar nelas as suas falhanças, suas incompletudes, seus equívocos, os avanços de que fora capaz na direção de acertos futuros. Exercício fundamental de autocrítica aos modos da pesquisa dialética que ele impunha a sua função de homem de teatro e militante político revolucionário. Sobre o texto de Na Selva das cidades, Brecht destaca algo que, em particular, parece servir a estes intentos de flagrá-los em terras brasileiras.
São palavras de Brecht: Preciso acrescentar que naquela época [1921-23] eu tinha uma concepção histórica singular, que consistia em uma história da humanidade em processos de massa com significados definidos, históricos; uma história cujas maneiras de apresentação eram sempre diferentes e novas, as quais poderiam ser notadas em vários lugares da terra. Na minha peça deveria ser notada a pura satisfação pela luta. Durante o esboço eu já notei que era singularmente difícil causar e manter viva uma luta que tivesse um significado, isto é, segundo as minhas concepções daquela época, uma luta que provasse alguma coisa. Ela tornou-se cada vez mais uma peça sobre a dificuldade de realizar uma luta desta espécie. (…) Nebulosamente chega-se a compreender que o prazer pela luta na fase superior do capitalismo torna-se uma deformação selvagem do prazer de uma luta competitiva.
Tomamos de empréstimo a Brecht o diagnóstico final atribuído à fase superior do capitalismo, sua faceta monopolista, a voracidade de saqueio mundializada, a dinâmica imperialista da opressão sem limites imposta pelas grandes corporações e seus tentáculos diversos na maquinaria de opressão estatal – da que o aparato jurídico-penal é um dos seus braços modulantes. Sua faceta ordenada como simulacro na que engolfa tudo o que se lhe contrapõe. Tribunal de exceção em que a regra barganha acordos de coxia. Tribunal preventivo ‘contra insurgente’ a se hipertrofiar pelo ecúmeno desde as bordas. Afinal, ao calor da hora que esquenta, se trata de avançar em direção às periferias cerzindo-as ao sabor dos ritmos e dividendos exigidos pela voracidade acionista-empresarial; está-se aos modos da rapinagem e há de se conter os inevitáveis tensionamentos sociais que pulularão aos arrabaldes do Sistema-mundo.
Brecht nos descreve a hora dos chacais, à selva das cidades, a deformação selvagem do prazer, e há de se utilizar tudo o que se dispuser, sem qualquer prurido ou compostura. E eis o que o arsenal de instrumentos, a caixa de ferramentas, se destampa: coopta-se lideranças e sindicatos com bolsas de estudo e ativos de toda ordem. Investe-se no turbilhonar de campanhas midiáticas numa espécie de bomba publicitária voraz e ininterrupta. Custeia-se profissionais da política parlamentária para o arremedo de legislações funcionais a tais interesses; dissemina-se sob o formato de Fundações e Organizações Não Governamentais a usina de conceitos, epistemologias e efemérides, numa ação massiva e tentacular, capilarizada; investe-se nas corporações militares e policiais e palacianas, seja sob a forma dos acordos de renovação de arsenais, seja nos pacotes curriculares despejados nas academias de formação. Afinal se trata de conter, perseguir, aterrorizar qualquer aquele que se coloque em contra, na evitação de que se multipliquem, e que se organizem em mobilizações; trata-se de evitar que guias e cules tramem motins ao oficialato, que atentem contra o perfeito funcionamento do estado de coisas, e se necessário for, usa-se do expediente de ferro e fogo das legislações de exceção; aciona-se, se preciso, infames tribunais nos que o arbítrio seja moeda corrente em fluxo contínuo. Em qualquer que seja a instância. Sob qualquer que seja o pretexto. O enredo é por conta da hora, seus tracejados atendem a gravidade do que está em jogo. Do que se tem a ganhar. Não importando os tantos que terão que perder.
São palavras de Bertolt Brecht: Olhem: é um voo de abutres! Aonde vão? Do deserto, onde não há nada mais, fogem para comer nos tribunais. Os assassinos lá estão. Os perseguidores em segurança lá estão. E os que roubam vão lá esconder seus roubos, enrolados num papel onde há uma lei lavrada.
Voltemos então para dentro do tribunal armado à defesa dos interesses de Karl Langmann; o especulador quer seguir seu curso em busca do direito de exploração monopólica de poços petrolíferos na peça A Exceção e a regra.
Adiantamos apenas que o comerciante achou por bem escamotear a gravidade de suas ações, diminuir-lhes a força, utilizar de eufemismos, evitar fornecer pistas que se constituíssem em provas anexas ao auto do processo e atuassem em contra aos seus interesses; Karl Langmann silenciou o relato da superexploração imposta ao carregador. Afinal o que ele ganharia com isto? Afinal o que poderia vir à tona se ele mencionasse diante de todos do júri que – face ao pavor do cule às margens do rio caudaloso e profundo, ele, Karl Langmann, sacara da arma e lhe pusera à cabeça, que ele incitara a que o cule, que não sabia nadar, se jogasse na correnteza com o peso de suas encomendas às costas. Imaginemos que sequer que o cule se negara a este ofício. É que o cule sabia ser sua a função de transporte, fora contratado para tal. Ele, o cule, sabia que as agruras da travessia constam, subliminares, sob as letras do contrato. Ele, o cule, não dissera que não atravessaria o rio de sua tormenta; apenas solicitara a Langmann os cuidados da temperança: aguardar que o nível das águas baixasse, que a correnteza aprumasse a sua agitação. Mas não, nada. Não há, nunca houve tempo a perder, e fora a arma apontada na cabeça, e fora o solado das botas a empurrar o cule para dentro do rio. Para quê Langmann reportaria este fato aos ouvintes? Por que ele contaria que ameaçara o cule quando ele não se lhe fez ótimo guia – quando sequer que o contrato versava sobre tal atributo? Para que ele contaria aos do júri que ele sonegara o gole de água ao cule quando do deserto e da sede? Para que ele diria a todos que, quando dos golpes e das surras que ele não poupava ao cule, sequer que ele, Karl Langmann, evitara que a tira de couro do chicote espocasse no braço quebrado do cule? Nos cálculos do comerciante, haveria de se evitar palavras e confissões que pudessem abalar a sensibilidade e humores dos homens que julgam. Mas qual? O que vemos é o juiz contar aos seus ouvidos das artimanhas quando a um tribunal. Será não percebe Langmann as regras dispostas ao tabuleiro? Será que o comerciante não desconfia de que tecido é costurada a toga do magistrado? Todavia, o que lhe diz o prezado representante da lei?
Juiz – Ouça: o senhor não deve fazer-se de mais inocente do que é. Assim não vai arranjar nada, homem. Se tratava o seu cule com luvas de pelica, como explicar o ódio que ele tinha do senhor? É somente tornando esse ódio justificável, que o senhor poderá justificar também que agiu em legítima defesa. Pense bem!.
A pista está dada. É mister saber ler às entrelinhas. É imprescindível saber se antecipar, em artimanhas e firulas, à cegueira neutral do veredicto. É inadiável se colocar à dianteira, meio corpo, um passo a frente, os pés sobre a linha se partida e encetar o movimento; ajuntar o corpo inteiro ao sabor do gesto, disponibilizar-se sutil; orelhas em pé, a coluna ereta, o passo capoeira, o grito de ‘lá vai, lá vou’, Karl Langmann carrega consigo o mérito da escuta – ele sabe escutar, ele tem os carretéis da audição limpos o bastante, ele tem os atravessadores da ordem unidos a sua causa, ele saberá o ‘como’ do fazer, ele sabe, ele perscruta, ele tem que chegar na frente de todos. E será de quem chegar primeiro, as benesses do contrato. Karl Langmann sairá na frente. O petróleo – nosso – acabará por ser dele.
5
Comunicado de esclarecimento.
A professora Ana Rosa Kucinski é um destes rostos. Mais precisamente, é o segundo da primeira fileira. Era militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). A última vez que fora vista com vida estava com seu companheiro Wilson Silva, nas proximidades da Praça da República, em São Paulo, no dia 22 de abril de 1974. O fato era público e notório, apesar da censura imposta pelas forças repressivas da ditadura militar e de seus capachos vende-pátrias. Tal fato está em conformidade ao que atesta o comunicado publicado em jornais de circulação nacional àquela época.
Mas voltemos ao Processo N. 17.499/74, inaugurado nos corredores do Instituto de Química, e que versa sobre o abandono de função na esfera administrativa por um período superior a 30 dias seguidos. O processo está tramitando aos corredores da burocracia institucional. A cada seção, novos referendos, devotados estes à expertise dos especialistas nas áreas de consulta, e avança-se uma quadra no funesto jogo de amarelinhas, e avança-se um peão ao xadrez das instâncias protocolares. Talvez que na direção da ignomínia, quem o poderia negar? Entretanto, está-se a operar aos liames do instituído – o que, supõe, é o que se costuma dizer, o direito ao contraditório e ao esgotamento de todas os recursos de defesa, assim como o de acesso a todas as peças dispostas nos autos processuais. Claro está que, de algum modo, a tramitação se dá à revelia do ‘interessado’; é que Ana Rosa Kucinski não esteve podendo comparecer nos ‘quandos’ de sua convocação. Não há registro de que, sequer em uma destas ocasiões, tenha dado às caras, tenha se prestado ao gesto de acorde do comparecimento. Seria este seu ‘não comparecimento’ uma peça em contra a lhe ser imputada, algo a assomar à falta já grave configurada pelo seu descumprimento contratual? Será que a literatura jurídica lhe aferirá a pecha de crime, ou a de falta disciplinar, ou a de dolo uma vez constatado o prejuízo ao erário público – tal como pudemos acessar no que o Assistente Jurídico que atendia pelo exótico nome de Vercingetorix de Castro Garms, no dia 15 de junho de 1974, se referia às minúcias técnicas dispostas ao debate hermenêutico traçado pelos juristas Nelson Hungria e Magalhães Noronha, autoridades referenciadas para a legitimação de seu parecer.
Sigamos um pouco mais esta tramitação processual.
Estávamos ao despacho da Assessoria Jurídica. Era o dia 15 do mês de junho daquele ano de 1974. Seis dias depois, em despacho com timbre da Reitoria, Fausto Haroldo Ribeito, coordenador, acrescentou a título de Infomação o seguinte:
(…) o Regimento Geral prevê em seu art. 253, parágrafo 4º, situações em que caberá a aplicação da pena de demissão aos integrantes do corpo docente da USP, cabendo ser indagado sobre as implicações de tais normas – que defluem da regra geral inserida no arfti. 116 do Estatuto da USP – relativamente àquelas do SEU, as quais, ‘naquilo que couber’, aplicam-se aos docentes contratados (como a interessada no presente processo) sob aquele regime. É oportuno lembrar que o Estatuto, pelo parágrafo único do mesmo art. 116, previu expressamente que o ‘corpo administrativo’ ficaria sujeito ao regime disciplinar estabelecido no Estatuto dos Funcionários Públicos e no Estatuto dos Servidores da Universidade (v. também art. 255 do Regimento Geral), confirmando a norma do ‘caput’ referente a disposições específicas de natureza disciplinar para o corpo docente…
E noves fora zero, o processo segue a sua tramitação cifrada e hermeticamente referenciada. Ao dia 23 de outubro de 1974, o Magnífico Reitor Orlando Marques de Paiva emitirá o seguinte despacho:
Senhor Diretor
Em atenção ao seu ofício n.763/74, solicitando escolha de um bacharel em Direito para integrar a Comissão designada a fim de realizar sindicância e processo administrativo em relação à docente Dra. Ana Rosa Kucinski, tenho o prazer de indicar-lhe o nome do Dr. Cássio Raposo do Amaral.
Aproveito a oportunidade para renovar-lhe protestos da mais alta estima e distinta consideração.
E seguirá avante, na engorda de documentações e despachos o processo administrativo. Já estamos no ano de 1975, mais especificamente, no dia 10 de janeiro. Está-se ao relatório encaminhado ao Senhor Presidente da Comissão Processante pelo Secretário José Vito Netto, que atende como Secretário desta mesma Comissão. Neste relatório, ele descreve a sua execução de missão a que fora incumbido. Segue nas suas palavras:
(…) Estive hoje, pelas 9:00 horas, no prédio da Av. Rio Branco, nº 1661, aptº 125, para entregar a citação.
Como não havia ninguém no apartamento, procurei informar-me junto ao ocupante do apartamento nº 126, vizinho, e então soube que a referida senhora deixou o apartamento há cerca de 5 anos (…). Então, dirigi-me à Rua Viveiros de Castro, nº 352, antigo, Jardim São Paulo, onde vim a saber que aí residem o pai e a madrasta da senhora Ana Rosa Kucinski, sendo, então, informado pela madrasta que seu marido, senhor Mejer Icchok Kucinski, progenitor da senhora Ana Rosa Kucinski, no momento em seu escritório, à Av. Cantareira, nº 281, Tucuruvi, poderia prestar informações a respeito.
Então, dirigi-me a esse local e fui atendido pelo senhor Mejer Icchok Kucinski, o qual se declarou pai da Doutora Ana Rosa Kucinski, informando-me que ela se encontra desaparecida desde abril de 1974, em local incerto e não sabido.
Outrossim, informou-me o progenitor da Doutora Ana Rosa Kucinski, que ela desapareceu na companhia de seu marido, cujo nome não me forneceu, levando o veículo de sua propriedade, e até hoje não deu nenhuma notícia do seu paradeiro. Adiantou-me ainda o referido senhor que já tomou providências junto as autoridades policiais e até mesmo junto a Presidência da República, mas até o momento, nenhuma informação lhe foi prestada sobre o paradeiro de sua filha.
Diante disso entreguei a citação ao senhor Mejer Icchok Kucinski depois de ler os seus termos para que ele ficasse bem esclarecido, tendo ele lançado o correspondente recibo na cópia a carbono.
Respeitosamente,
São Paulo, 10 de janeiro de 1975.
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Estivéssemos a uma peça teatral de Bertolt Brecht, talvez que fosse a hora na que se britaria a quarta parede, na que se faria espatifar quem sabe a empatia mergulhada do público para com os efeitos hipnóticos da dramaturgia encenada. Talvez que fosse a hora de lançar uma chispa, uma centelha, uma fagulha ao torpor da plateia embevecida pela retórica e desempenho ótimos dos atores ao palco. Talvez, fosse o caso nos remetermos ao cineasta Ingmar Bergman, era, seria a hora em que se traria às mãos os instrumentos de corte e perfuração, ou a caixa de ferramentas do mestre de obras, o martelo de cabeça alargada e rija no pendor de penetrar, incisivo, um par de pregos na passividade das gentes.
É certo que o encarregado cumpria a função a que lhe coube. Ele, o estafeta das horas aziagas (quem o saberia dizer se ele assim estava à incumbência, mas o que importa isto?), teria de fazer jus ao seu papel, à missão que lhe fora confiada. Ele teria que atravessar as ruas da cidade de São Paulo, teria que atentar aos endereços, a plaqueta estampada na amurada deles (não havia os aplicativos facilitadores àquela época, importante lembrar…), anunciar-se à portaria, tomar do elevador, apertar os botões que acenam em direção aos pisos correspondentes, dobrar a esquerda ou a direita dos corredores, acercar-se das portas, dispor o indicador ao botão das campainhas, e esperar. Se fosse o caso um abrir de portas, dar o seu ‘bom dia’ protocolar, e ensejar o de que se tratava. Ele o fizera. Talvez alguém parta em sua defesa, fazendo lembrar que o estafeta fora capaz de um gesto de improviso, afinal acessara à vizinhança, tão logo se certificara da ausência do destinatário do comunicado que ele portara consigo. De fato, o estafeta superou-se a esta hora. Fora capaz de uma gira, em rodopio, e acertara algo que não lhe estava previamente recomendado às partituras de seus gestos.
Certo que o encarregado tomara conduções para deslocar-se de bairro a outro. Ele estivera empenhado em cumprir a contento com as tarefas prescritas ao seu contrato de trabalho e àquela ordem do dia – diferentemente daquela destinatária que sequer se prestara à justificação de suas faltas que, de há muito, ultrapassavam os 30 dias corridos tal como estão regulamentados pelo Estatuto do Servidor Público e pelo Estatuto interno do regimento universitário; talvez que, por estas e outras, o encarregado não tenha contra si um pululante processo na que um estafeta bem intencionado busca cumprir de forma precisa e pontual o que lhe fosse demandado.
Ainda que tenhamos estes pontos em vista, seria interessante interpelar ao leitor sobre o que você pensaria deste estafeta que, ao ser comunicado do desaparecimento da professora Ana Rosa Kucinski pelo senhor Mejer Icchok Kucinski, seu progenitor, que inclusive lhe confidenciara das diversas medidas tomadas até então, tais como as que lhe fizera recorrer às instâncias policiais e, até mesmo, a Presidência da República, e tudo o mais que talvez o estafeta não tenha se recordado no ato de dispor em seu relatório de serviço as execuções do dia; tudo somado e ainda assim, o referido entregador de encomendas fez chegar às mãos do pai de Ana Rosa Kucinski a comunicação do processo que era movido contra ela pelas razões do abandono de trabalho.
O que pensa você, leitor, de um ato como este?
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Ainda ao processo, mas já aos saltos, adiantamos que no dia 13 de janeiro de 1975, Bernardo Kucinski passará a constar no processo na condição de Procurador de Ana Rosa Kucinski. Ao dia 14, será aditado ao processo as páginas do Jornal O Estado de São Paulo relativo à edição do domingo anterior (12 de janeiro), no que se comunica o desaparecimento de Ana Rosa Kucinski. Se consultado no link disposto em nota a este ensaio, se poderá notar que as páginas de número 36 a 45, todas estão relacionadas a este fato e confirmações de amplo cunho público, do desparecimento forçado da professora. Todavia, nas páginas 46, 47 e 48 do referido processo, constará a publicação em Diário Oficial, ao dia 21 de janeiro de 1975 da seguinte notificação voltada a ninguém menos do que Ana Rosa Kucinski. Eis o que versa a nota publicada:
Instituto de Química
Citação
O Presidente da Comissão Processante designada pelo Diretor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, no uso de suas atribuições legais, faz saber à Professora Ana Rosa Kucinski, contratada em RDIDP, com sede de exercício na repartição, Brasileira, filha de Majer Icchok Kucinski e Ester Kucinski, natural de São Paulo, Carteira de Identidade n R.G. 2.528.562, Título de Eleitor n. 209.644, residente à Av. Rio Branco, n. 1661, apto. 125 ou à Rua Viveiros de Castro, n. 352, nesta Capital, atualmente em lugar incerto e não sabido, segundo certidão no Processo que foi instaurado processo administrativo disciplinar, por abandono de função, para os efeitos previstos no artigo 180, Inciso II, e seu parágrafo único do Estatuto dos Servidores da Universidade de São Paulo, ou seja, imposição de pena de dispensa por abandono de função, em decorrência do seu não comparecimento ao serviço por mais de trinta dias consecutivos, a partir de 22 de abril de 1974.
Fica assim, a referida professora citada e, ao mesmo tempo, ciente de que foi designado o dia 10 de fevereiro próximo futuro às 9:00 horas, para o seu comparecimento perante a Comissão Processante na Consultoria Jurídica da Reitoria da Universidade de São Paulo, Bloco L, 5º. Andar, Sala 506, na Cidade Universitária “Armando de Salles Oliveira”, sob pena de revelia, a fim de prestar declarações sobre o fato que lhe é atribuído e apresentar a defesa que lhe tiver pessoalmente ou por intermédio de advogado constituído.
O presente edital será publicado no Diário Oficial três vezes e afixado no lugar de costume para ciência da servidora e demais interessados.
São Paulo, 16 de janeiro de 1975.
Tais recortes, anexos ao processo, serão encaminhados, para ciência, aos senhores Mejer Icchor Kucinski e Bernardo Kucinski. Não temos notícias se o estafeta encarregado era o mesmo de ainda há pouco. O que pouco importa, sabemos. O que estará sempre em questão é se a missão fora conduzida a contento.
Importante destacar o documento de conteúdo bastante elucidativo e esclarecedor que será acrescido ao processo, formulado e assinado pelo advogado constituído para a representação dos interesses da imputada, Dr. Aldo Lins e Silva. Neste consta, sob a forma de um histórico do caso, as condições na que se encontrara a ré, assim como a descrição dos passos tomados pela sua família, e mais especificamente pelo pai Mejor Icchok, descrito como jornalista e escritor em língua iddishe, com mais de 70 anos de idade àquela feita.
Aldo Lins e Silva conta que Mejor, ciente das atividades políticas de sua filha – atividades estas consideradas ‘de natureza subversivas por algumas pessoas’, acionou as autoridades competentes, requisitando Habeas Corpus junto ao STM, e seguindo um longo périplo desde a Seção Americana do Congresso Mundial Judaico, passando pela Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, pela Embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Das informações solicitadas por intermédio das referidas representações, se obtiveram as seguintes informações:
Que Ana Rosa Kucinski está viva mas ainda encarcerada no Brasil numa prisão que não nos foi dado saber, que atualmente ela não está sendo torturada ou submetida a outras brutalidades físicas, mas que por outro lado não há nenhum sinal de que ela seja libertada em breve.
Logo a seguir, Aldo Lins e Silva acrescentará que a Seção Britânica da ‘Anistia Internacional’, órgão consultivo da ONU informou em 16 de novembro de 1975:
Que acabava de receber uma nota de nosso escritório central com a informação de que o casal Silva não está preso, como se acreditava, no Asilo de Juquerí, mas sim no Departamento de Operações Integradas, e que o caso é mais urgente do que havia sido suposto inicialmente. Acrescentava a informação: Tudo o que se pode fazer por enquanto é tentar obter confirmação do paradeiro do casal (temos endereços de diversas autoridades brasileiras às quais escreveremos) e tentar exercer discreta pressão sobre as autoridades de São Paulo, tanto civis como militares….
No que segue o documento de Aldo Lins e Silva é mencionada a intervenção do Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, o pleno conhecimento do caso por parte do General Golbery do Couto e Silva, Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República. Assoma-se à descrição do referido périplo, os antecedentes profissionais de Ana Rosa Kucinski, sua assiduidade, suas pesquisas no campo da física-química, de seu entusiasmo científico. Sugere-se ainda um corpo de nomes a serem convocados na condição de testemunhas. Tal documento é assinado em 24 de janeiro de 1975.
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E o Juiz de Brecht proferirá a sentença. O guia que fora testemunho do infortúnio daquela viagem adverte: Feche os olhos bem depressa, tapem os ouvidos, no regime que criaram humanidade é exceção. Ele sabe, todos sabemos, o que conta, de fato, não são os feitos que mal versarem a regra e o erário. Seja este público ou privado – o que, nos tempos e termos do capitalismo monopolista, pouco ou nada se distanciam ou se distinguem. O que conta é a regra, eis o imperativo categórico. Sobretudo se soubermos ler às filigranas. É que a regra costuma ser gestada aos baixios, na zona turbulenta e intestina, dos interesses de classe, onde se diz que conspiram um Concílio de Bispos e certa penca de homens togados. E eis que da regra formulada, se configura a tradição a cátedra os escaninhos quattrocentões, seus vícios, artifícios, artimanhas, segredos sussurrados às coxias, o toma-lá-dá-cá das feiras de alta monta.
Necessário dizer, ainda, que o cule, o carregador será responsabilizado por ter sido vítima de assassinato? Afinal, de gente como esta o que se pode esperar, não é mesmo? Na certa que seus gestos, todo e qualquer, haveria de ser temerário aos olhos de um Karl Langmann.
No caso de Ana Rosa Kucinski, tantas seriam as voltas e meses ao labirinto embolorado do processo administrativo. A este seriam ainda arrolados depoimentos de representantes de inúmeras instituições, assim como de organismos de defesa dos direitos humanos de proveniências distintas e em idiomas diversos. O que tornou necessário que também se fizessem arrolados ao mencionado calhamaço judiciário-administrativo, os documentos de comprovação da competência de tradutores juramentados em inglês e iddishe, assim como de tradutores públicos e intérpretes comerciais, sem, é claro, deixar aqui de mencionar, o objeto de seu ofício, qual seja, os textos relativos às estas trocas de comunicações versados ao nosso idioma, o português.
Até que aos dezesseis dias de junho de 1975:
Na sala da Consultoria Jurídica da Reitoria, Edifício da Reitoria, 5º andar, sala 506, às 9:00 horas, reuniu-se a Comissão Processante constituída no processo marginado, presente os seus membros, para dar prosseguimento aos trabalhos, com a apreciação e discussão das provas recolhidas, em face do ilícito administrativo-disciplinar atribuído à indiciada, bem como da defesa escrita apresentada pelo advogado dela encarregado. Abertos os trabalhos, o Presidente disse dos motivos da reunião e passou a examinar as provas, juntamente com os demais membros da Comissão Processante, chegando, afinal, à conclusão de que, efetivamente, a indiciada incorreu na falta disciplinar que lhe foi atribuída, estando, assim, sujeita à respectiva penalidade, ou seja, dispensa, por abandono do cargo, com a rescisão do contrato a partir da data em que se iniciou a sua ausência ao serviço. (…).
O ato final se deu no quando da já mencionada 46ª sessão da Congregação do Instituto de Química da Universidade de São Paulo. Era o dia 23 de outubro de 1975. Estavam presentes na reunião, ocorrida na sala de reuniões do pavimento superior do bloco três do Instituto de Química, os seguintes professores doutores: Otto Richard Gottlieb, Yukino Miyata, Luiz Roberto de Moraes Pitombo, José Manuel Riveiros Nigra, José Ferreira Fernandes, Ivo Jordan, Blanka Wladislaw, Metry Bacila, Francisco Jerônymo Salles Lara, Newton Bernardes, Giuseppe Cilento, Gilberto Rubens Biancalana, Lyrio Sartório e, presidindo a sessão o professor doutor Ernesto Giesbrecht, além do representante do corpo discente, Roberto Nascimento.
Depois do protocolar esclarecimento da plenária pelo Dr. Giesbrecht, passou-se à votação secreta do relatório acima citado que foi aprovado diante do resultado apurado: 13 votos favoráveis e 2 votos em branco.
9
Qual seria a palavra definitiva a encerrar tal sessão? Qual a palavra que, uma vez dita, esgotasse com ela, sob a forma e a força da síntese, os diversos sentidos da revolta, da vergonha e da indignação?
Por vezes, o silêncio traz consigo os rumores e espectros desta palavra que (nos) falta.