“Fazer sacrifícios pela pátria, dar o melhor de si pelo bem-estar do povo. Desenvolveremos nossa infraestrutura nos setores de saúde, educação e estradas. Desenvolveremos nossa indústria, transformaremos o que queremos e consumiremos o que transformamos”. Foi assim que o capitão e chefe de Estado de Burkina Faso, Ibrahim Traoré, proclamou no dia 1° de abril a “Revolução Popular Progressista (RPP)” no país, assumindo que seu processo ocorre “à imagem da Revolução Democrática e Popular de 1983 proclamada pelo capitão Thomas Isidore Noel Sankara”, segundo a Agência de Informações de Burkina.
Demarcando com a demagogia das falsas democracias das potências e superpotências imperialistas, Traoré foi claro em dizer que: “Não estamos em uma democracia. Estamos em uma Revolução Popular Progressista. É impossível nomear um único país que tenha se desenvolvido em democracia. A democracia é apenas o resultado final.”.
O líder burkinabe também ressaltou o caráter anti-imperialista da Revolução e destacou a importância de resistir pela luta armada massificada às provocações e agressões dos imperialistas e seus agentes locais. “Estamos esperando firmemente por eles, seus mercenários e suas ações. Seremos implacáveis e sem escrúpulos com aqueles que pensam que podem impedir o desenvolvimento do nosso país!”. E convocou: “Às massas, apelo para que estejam vigilantes porque hoje, mais do que nunca, os apátridas, os inimigos da Nação, estão muito ativos. Do lado da lagoa, eles estão juntos há vários dias. O objetivo deles é fazer com que Burkina Faso reviva os trágicos acontecimentos de 1987, esquecendo que os tempos mudaram.”
O anúncio, pouco divulgado em monopólios de imprensa pró-imperialistas do mundo, chocou os salões palacianos das potências e superpotências imperialistas. Foi a primeira vez que o capitão classificou o seu governo e o processo pelo qual o país do Norte da África passa desde 2022, quando Traoré assumiu a direção de Burkina Faso, mediante um movimento armado que depôs o oficial do Exército Paul-Henri Sandaogo Damiba, empossado presidente em 24 de janeiro do mesmo ano depois de um golpe de Estado.
Antes do pronunciamento revolucionário, o capitão de 37 anos (34 à época) já havia chamado atenção com os primeiros discursos depois da tomada do poder. Com duras críticas ao imperialismo, Traoré passou a defender a soberania nacional do país e convocou outros líderes africanos a expulsarem as tropas de potências estrangeiras de seu território. Além disso, as medidas práticas do jovem líder africano causaram profundo desgosto ao imperialismo, principalmente norte-americano e francês.
Fim da ocupação estrangeira e recuperação do território
Uma das primeiras medidas de Traoré foi dar fim à ocupação francesa de Burkina Faso, instaladas no país para facilitar o saqueio direto das riquezas naturais burkinabes sob o falso pretexto de combater grupos jihadistas. A verdade é que esses grupos se proliferaram por conta da própria atuação dos franceses que, junto da Organização do Tratado do Atlântico do Norte, retalhou a Líbia com uma invasão iniciada em 2011 favorecendo grupos que desde o fim da guerra da Argélia (1991-2002) atuavam pelo Mali, Níger e sul da Líbia.
Esses grupos eram, por exemplo, a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQIM), fundada em 2007, e o Grupo de Apoio ao Islã e Muçulmanos (JNIM), criado em 2017 por Iyad ag Ghali, um líder do povo tuaregue – um dos povos indomáveis do Norte da África que, por conta do processo de formação nacional interrompido pelo imperialismo, nunca se autoproclamaram ou foram incorporados a outras Nações e, recentemente, foram arrastados pelos grupos muçulmanos.
Quando a França foi expulsa do Burkina Faso pelo capitão Traoré, defensores do imperialismo levantaram em cólera para dizer que o episódio permitiria que os jihadistas atacassem livremente o povo burkinabe. O que ocorreu foi bem diferente: Ibrahim Traoré investiu no setor de Defesa, armou as massas por meio das milícias Voluntários de Defesa da Pátria (VDPs) – que, em áreas rurais, foi organizada junto a líderes tribais com certa independência – e conseguiu restabelecer o controle de 69% do território, segundo dados do Ministério da Defesa de 2023. Em 2022, o Estado burkinabe só controlava 40% do território. Isso foi conquistado pelo recrutamento em massa do povo: em um dos primeiros chamados para o recrutamento de 50 mil combatentes à VDPs, em 2022, 90 mil pessoas se aplicaram.
Fortalecimento da indústria nacional
Na medida em que ia recuperando território, Traoré impulsionou a economia por meio do fortalecimento da indústria nacional e de organizações de pequenos e médios proprietários. Ele criou, em 2022, a Agência para a Promoção do Empreendorismo Comunitário (Apec) e inseriu a organização em projetos centrais do país: uma fábrica de processamento de tomate inaugurada em 2024 – empreendimento inédito no país – tinha 20% de participação estatal e 80% de capital de participação popular, organizados pela Apec. A Apec tem um claro recorte de classe e é sustentada principalmente na pequena e média burguesia nacional.
Outras duas fábricas inauguradas por Traoré foram os complexos têxteis IRO-TEXBURKINA, situado em Sourgou, no departamento da província de Boulkiemdé, e o TEXFORCES-BF, em Bobo-Dioulasso. A última tem como objetivo o processamento de algodão produzido em Burkina Faso para a produção de uniformes militares para as Forças Armadas do país. Traoré leva bastante a sério a questão da indústria têxtil e mesmo do artesanato – setor que é o terceiro componente do PIB do país, só perdendo para o ouro e a agricultura. No âmbito da produção manual, Traoré está abrindo oficinas para as mulheres produzirem os famosos faso dan fani, um belo pano estampado que só é produzido no Burkina Faso, com algodão nacional.
Além disso, Traoré inaugurou em agosto de 2024 o primeiro Parque Industrial Farmacêutico focado na produção de medicamentos genéricos como paracetamol de 500 mg, floroglucinol, um antiespasmódico e um “kit de sais de reidratação oral e zinco para o tratamento”, segundo o gerente geral, Armel coéfé. “Nossa capacidade de produção, atualmente, atende à necessidade local e resolve o problema de ruptura drástica”, acrescentou, destacando que a lista de moléculas a serem produzidas aumentará, principalmente “com a produção de medicamentos para o manejo da malária”, acrescentou ele.
Mecanização e apoio à produção camponesa
No campo, o governo quis melhorar a segurança alimentar do país por meio da soberania e mecanização, objetivos condensados na chamada “Ofensiva Agropecuária e Pesqueira”, um plano do Ministério da Agricultura, Recursos Animais e Pesca, chefiado pelo major Ismaël Sombié. A ofensiva promete criar 100 mil empregos para as massas deslocadas e jovens desempregados entre 2023 e 2025, com um orçamento dividido entre 54% oriundos da iniciativa privada e 46% do Estado.
Para aumentar a produtividade e melhorar as condições de vida das massas camponesas, Traoré distribuiu mais de 400 tratores aos camponeses, distribuiu sementes e vendeu fertilizantes de maneira subsidiada e criou 7.460 postos de saúde primária nas regiões mais remotas – algo que replica o modelo de Sankara. O resultado foi um aumento de 50% na segurança alimentar do país.
Essa frente é apoiada pela Aliança dos Estados do Sahel (AES), uma iniciativa fundada por Traoré e pelos presidentes do Mali e do Níger. Para Hamidou Sawadogo, professor de economia monetária e financeira na Universidade Joseph Kl-Zerbo, consultado pelo AfricaNews, “este modelo é baseado na alavancagem de recursos internos. Ele permitiu que o chefe de estado e seu governo priorizassem a agricultura.” Em 2024, seis milhões de toneladas de cereais foram colhidas no Burkina Faso.
Mineração nacional, mecanizada e por pequenos
“Não entendo por que, quando sabemos como minerar ouro, deixamos multinacionais minerarem. É nesse sentido que eu disse que há licenças que estamos em processo de retirada. E vamos fazer isso nós mesmos”, disse Ibrahim Traoré em um programa da rádio pública RTB no dia 9 de outubro de 2024, anunciando mais uma nova lei de mineração, parte do processo de nacionalização do setor do país.
Depois do anúncio, alguns imperialistas se levantaram em cólera contra as “revogações arbitrárias” de licenças pelo governo Traoré, mas revogação não foi imediata: Traoré esperou as licenças de empresas como a australiana Sarama Resources acabarem para, no processo de renovação, impôr os novos termos do acordo. As operações da Sarama Resources, que explorava o ouro de Burkina Faso desde 2011, foram encerradas neste processo.
O plano do governo burkinabe para a mineração envolveu várias leis. Uma delas, assinada em 18 de julho de 2024 e acessada na íntegra por AND, buscou fortalecer o setor nacional da “prospecção, investigação, desenvolvimento, exploração, reabilitação e encerramento de minas e pedreiras”, “transporte de matérias provenientes de minas e pedreiras” e a “transformação, valorização e comercialização dos produtos do setor mineiro”.
Dentre os termos da lei aprovada, firmou-se que “as empresas minerais e suas terceirizadas ou co-contratantes estabelecidos em território nacional darão preferência às empresas nacionais em qualquer contrato de prestação de serviços ou de fornecimento de bens em condições equivalentes em termos de preço, qualidade e prazos”, e que “as empresas mineiras que operam em França recorrem a companhias de seguros nacionais para cobrir os riscos associados às suas atividades, em conformidade com a regulamentação em vigor”.
A lei também estabeleceu que as empresas devem estabelecer um plano de capacitação “que promova a transferência de tecnologia e competências para pessoas singulares e coletivas nacionais”, e que “as empresas mineiras e os seus subcontratantes contribuem para os programas nacionais de investigação e desenvolvimento”.
Em outra lei, o governo também taxou as operações de mineração: o ouro passaria a contar com uma taxa de imposto efetiva de 40% a 50% quando o preço do minério estiver alto. O imposto de renda corporativo para empresas de mineração foi fixado em 27,5%, e os impostos sobre dividendos, juros e pagamentos de serviços estrangeiros variavam entre 12,5% e 15%. Além disso, todos os minerais passaram a contar com royalties: o ouro passou a ser taxado em 5% a 7% e o zinco em 5%. Todas as taxas são pagas ao governo central, que aloca 20% delas para comunidades locais por meio do Fundo de Mineração para o Desenvolvimento Local (FMDL).
O governo nacional-democrático também impulsionou a mineração por pequenos e médios proprietários e o refino nacional de ouro. Em 18 de março de 2024, o ministro de Energia, Minas e Pedreiras, Yacoube Zabré Gouba, inaugurou a primeira Refinaria Nacional de Ouro, localizado em Méguet, onde passaram a trabalhar 2 mil mineiros artesanais. A instalação é equipada com um triturador, um moedor, um concentrador e uma mesa vibratória para separar o ouro dos resíduos, e a ideia do governo é abrir mais nove centros iguais.
O impulsionamento aos pequenos e médios proprietários permitiu que a Apec lançasse a primeira fábrica de ouro semi-mecanizada no país, localizada na vila de Bielmera, comuna de Midebdo, na província de Noumbiel. A fábrica lançou a sua primeira pedra em julho de 2024, conforme noticiado no portal oficial da organização.
“A operação de mineração de ouro semimecanizada de Bielméra, da qual estamos lançando a pedra fundamental da construção hoje, está localizada em uma área de 100 hectares”, conta o diretor-geral da Apec, Karim Traoré. “Ela terá uma vida útil mínima de cinco (05) anos com uma taxa média de retorno de 40% ao ano. No final dos primeiros quatro (04) anos de operação, espera-se que aproximadamente 320 kg de ouro saiam da planta. Este projeto também criará, em seu primeiro ano, 150 empregos diretos e 300 empregos indiretos. Este ambicioso projeto é inteiramente confiado a empresas burquinenses, tanto para obras de construção, equipamentos, quanto para monitoramento e controle.”
Relações perigosas
Apesar das conquistas do governo nacional-democrático de Ibrahim Traoré, seu regime cultiva relações perigosas e tem limitações, tanto com potências e superpotências imperialistas estrangeiras quanto com grandes burgueses locais.
No campo externo, Traoré tem ampliado as relações com o imperialismo russo e o social-imperialismo chinês, principalmente com o primeiro. As relações não são um problema por si só, mas seu conteúdo podem esconder algo problemático: vários rumores apontam, por exemplo, que tropas do grupo paramilitar ligado ao Estado russo, Wagner, opera em Burkina Faso. As tropas do grupo – cuja falange africana é hoje chamada Africa Corps e é ligada diretamente ao Estado russo – já atuaram de forma confirmada em outros países do Sahel parceiros de Faso, como o Mali, e em outros países como a República Centro-Africana – o país chega a ter uma estátua de dois líderes do grupo, o morto Yevgeny Prigozhin e Dmitri Utkin, na cidade de Bangui.
Contudo, é díficil dizer se o Wagner, hoje chamado Africom, de fato opera em Burkina Faso ou se os rumores se tratam de boatos criados pelo imperialismo norte-americano. O governo burkinabe sempre negou essas ligações e jornalistas informados, como o nigeriano Seidik Abba, autor do livro Mali-Sahel, notre Afghanistan à nous, afirmam que o governo de Burkina Faso está cauteloso com qualquer intervenção estrangeira. O ministro de Relações Exteriores do Níger, país aliado de Burkina Faso e também alvo dos boatos sobre a presença do Grupo Wagner, também afirmou que “a informação que temos não nos permite dizer que o Wagner ainda esteja em Burkina Faso”.
Para além da presença militar, Burkina Faso estabeleceu relações econômicas com a Rússia e o país tem ampla presença das empresas da superpotência atômica. A empresa de mineração Norgold ganhou uma licença do governo de Traoré para minerar uma área na região centro-norte do país por quatro anos. Antes disso, a Norgold já operava três minas no país. Além da russa Norgold, Burkina Faso ainda tem a presença de empresas de mineração britânicas e canadenses.
Alguns dos campos dessas empresas foram comprados por grandes burgueses burkinabes. A britânica Endeavor Mining vendeu duas de suas minas de ouro para a empresa Lilium Mining, do grande burguês estadunidense-burkinabe Simon Tiemtoré. A Lilium Mining é subsidiária da Lilium Capital, sediada em Nova Iorque.
Início promissor e particular
As limitações e os perigos do regime de burkinabe não apontam necessariamente para o fim do governo nacional-democrático do país pela subjugação ao imperialismo russo ou ao social-imperialismo chinês. Os rumos exatos de Burkina Faso são difíceis de calcular porque se trata de uma experiência extraordinariamente particular, sintomática de tempos históricos de grandes transformações pelo mundo. Até aqui, as ações e pronunciamentos de Traoré não apontam para a capitulação. Pelo contrário, a declaração da Revolução Progressista Popular pode ser o indício de um processo de radicalização das importantes medidas tomadas até aqui.