Caldeirão de Santa Cruz do Deserto: os crimes que o velho Estado insiste em negar 

Caldeirão de Santa Cruz do Deserto: os crimes que o velho Estado insiste em negar 

Beato José Lourenço foi religioso e líder camponês no episódio conhecido como Caldeirão de Santa Cruz. Foto: Reprodução/Ilustração de Reginaldo Farias

O Caldeirão do Beato Zé Lourenço ou Caldeirão de Santa Cruz do Deserto é um dos acontecimentos históricos mais apagados e ignorados do nosso país, talvez porque não houve um Euclides da Cunha para registrar a resistência daquele povo e a história do Beato; ou talvez porque o regime fascista de Vargas foi extremamente eficiente em esconder as atrocidades que cometeu, a exemplo dos campos de concentração no Ceará já tratado em AND

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De uma forma ou de outra, é necessário estudar e denunciar o que aconteceu no Caldeirão. Vivemos em um país sentenciado mais de uma vez por crimes em cortes internacionais; um país que ignorou todas essas sentenças. É necessário compreender quais esses crimes, porque um dia o povo brasileiro há de cobrá-los, como cantou Geraldo Vandré em Aroeira. 

O BEATO E O ‘BOI SANTO’ 

O Beato José Lourenço, nascido em Pilões de Dentro, Paraíba, era um trabalhador da terra, um arrendatário. De origem camponesa, ele se tornou – como muitos de sua classe e da sua região – romeiro do Padre Cícero Romão Batista e migrou para o Crato onde se fixou no sítio Baixa Dantas, por volta de 1900 ou 1890 (1)

A primeira polêmica envolvendo Zé Lourenço ocorre antes do Caldeirão, ainda no sítio onde havia se fixado. O caso se deu quando o Padre Cícero lhe confiou um bonito garrote, mestiço de zebu (2) dado por Delmiro Gouveia, pois não tinha ainda capacidade de criá-lo na cidade. O boi foi nomeado Mansinho e era tratado com bastante carinho por todos os moradores de Baixa Dantas. Porém pessoas influentes passaram a denunciar que o boi havia se tornado motivo de culto, santidade entre os sertanejos: quando a denúncia chegou aos ouvidos de Floro Bartolomeu ele pegou o boi e esquartejou o animal em praça pública. 

À partir daí os relatos são diversos, uns dizem que de fato havia culto ao boi, que os sertanejos faziam remédios com os dejetos do boi e bebiam sua urina; outros dizem que não e que essa era uma inverdade. Fato é que, havendo ou não esse culto ao boi, a preocupação de Floro nunca foi essa. A verdade não interessava aos donos do poder queriam pôr fim ao Beato e ao “fanatismo” que fazia com que os sertanejos que outrora eram seus servos nas fazendas se rebelassem de alguma forma, se organizassem de alguma forma contra o seu domínio, em comunidades como o sítio Baixa Dantas 

Após a morte de Mansinho, José Lourenço foi preso e as versões novamente variam: uns dizem que durante sua prisão ele não comia nem bebia absolutamente nada, outros dizem que ele foi obrigado durante o cárcere a comer a carne do Boi ‘Santo’; o que se sabe com certeza é que o Beato ficou preso por 17 dias e isso só alimentou o gosto do povo por ele, já que ele não havia sido preso por ser devoto de nenhum “Boi Santo”, sendo este o pretexto, mas sim foi preso por reunir sertanejos em torno de algo que não a servidão. No 16º dia de prisão, ele foi solto por ordens do Padre Cícero, mas o episódio que de fato faria Lourenço entrar para a história aconteceu quando já não havia nem mais Floro, nem mais Padre Cícero. 

O CALDEIRÃO DE SANTA CRUZ NO DESERTO 

Em 1922 o coronel João de Brito, dono das terras onde o Beato e seus seguidores moravam, vendeu as terras e o novo proprietário mandou expulsá-los de lá, já em 1926 o Padre Cícero deu o seu sítio Caldeirão localizado na Serra do Araripe para que o Beato e seus seguidores pudessem morar, os que acompanhavam José Lourenço eram todos camponeses como ele um dia fora e em pouco tempo transformaram o Caldeirão em uma terra bastante produtiva. 

Em 1932 durante à seca que assolou o sertão do Ceará nenhuma pessoa no Caldeirão morreu de fome, os flagelados que escapavam ou por sorte não eram postos nos campos de concentração iam para o Caldeirão onde viam água da qual podiam beber e muita fartura da qual podiam se alimentar, obviamente aquilo não foi visto com bons olhos pelos latifundiários, o Caldeirão não pagava arrendo, lá não tinha foro, cambão, meação nem nenhum desses regimes feudais da terra, tudo ali era de todos, semelhante à uma comuna onde todos ajudavam na roça e acumulavam à comida em um armazém comum, e isso passou a dificultar para os grandes fazendeiros a mão de obra barata em seus latifúndios, para quem leu sobre Canudos esse cenário parece bem semelhante, como assinalou Rui Facó 

“Além disso, o pesadelo de Canudos persistia na mente das zelosas autoridades, mesmo depois de 1930, quando o latifúndio teve parcialmente cercado o seu poder político. Os latifundiários submetiam-se a uma aliança, desigual para eles, mas com a condição de que a burguesia os ajudasse na defesa de seus domínios” 

Havia um verdadeiro pavor que uma “Nova Canudos” aparecesse, então a ordem – principalmente após a morte do Padre Cícero em 1934, que defendia o Caldeirão de receber grandes ataques – era que fosse destruída como a primeira, outra vez: “Não deixar nem um pau”. Lembrando que com a perseguição ferrenha aos comunistas durante a ditadura Vargas o anticomunismo era a desculpa para quaisquer atrocidades, e foi com essa entre outras desculpas que o Caldeirão foi invadido. 

“O discurso dominante disseminado seja pela elite “sagrada”, igreja, ou pela elite “profana”, políticos e latifundiários, implantaram na sociedade o perigo do Caldeirão, habitado por pessoas inescrupulosas, aliadas do comunismo soviético, fanáticos nas suas expressões religiosas e desregramento sexual, vivendo o beato em concubinato com as moças do Caldeirão. Convencida do perigo, logo o Estado teria o apoio moral para acabar com a vida comunitária.” (3)

Disfarçando-se de negociante, o capitão José Bezerra foi ao Caldeirão fazer um reconhecimento da área e no mês de setembro de 1936 (4) foi desatada a primeira expedição para destruí-lo. Ao contrário de Canudos, de início, o povo ali não resistiu através da luta armada, mas negaram toda e qualquer passagem oferecida pelo governo para que voltassem às suas terras, quando o capitão do Exército e futuro prefeito de Fortaleza, Cordeiro Neto, disse para pegarem seus haveres e saírem dali; os “fanáticos”, seguidores do Beato, lhe responderam que não tinham ali haveres, tudo era de todos. 

A ordem foi dada, o fogo irrompeu e foram queimadas as casas, as plantações e o povo do Caldeirão foi colocado para fora de sua terra. Surgiram então duas tendências entre os que após o ataque não voltaram para suas casas: o Beato Severino Tavares queria resistir à mão armada, já o Beato José Lourenço queria apenas continuar ali na chamada Mata dos Cavalos (à época Baixa do Maracujá) onde se refugiaram e buscava evitar quaisquer confrontos com a polícia. O que aconteceu foi que a polícia logo desatou novos ataques contra os camponeses de Caldeirão, o Beato Severino Tavares e seus seguidores reagiram e, no dia 10 de maio de 1937, um contingente pequeno de alguns soldados sob o comando de José Bezerra foram emboscados e uma grande parte mortos – incluindo o próprio Bezerra, o qual os habitantes de Caldeirão passaram a odiar pelo seu papel de espião – a golpes de punhal, cacetes e materiais de trabalho dos camponeses. 

A retaliação veio com aviões e um contingente absurdo de soldados para uma massa de camponeses desarmados e com apenas a disposição para resistir. Foram assassinados cerca de 400 camponeses neste ataque covarde do Exército reacionário brasileiro contra os remanescentes do Caldeirão. Houve bombardeios aéreos e rajadas de metralhadoras. Logo após isso o Beato José Lourenço e algumas famílias fugiram para Pernambuco e o Beato Severino Tavares e os dispostos a resistir foram para a comunidade denominada Pau de Colher.

Em 1938 Pau de Colher é exterminada com outro ataque brutal do Exército. Dessa vez Severino e as centenas de famílias que lhe acompanhavam resistiram até o último homem de armas na mão; o número de mortos foi superior a 400. 

CONCLUSÃO 

O que aconteceu no Caldeirão e em Pau de Colher foi mais um crime brutal que o Estado Brasileiro cometeu contra camponeses. Esse histórico de massacres contra camponeses não parou em 1930 com o extermínio de Pau de Colher. 

O motivo que os camponeses do Caldeirão e Pau de Colher resistiram existem até hoje, e aos que acham loucura a luta do camponês, principalmente do camponês nortista e nordestino pela terra e contra o latifúndio, lembre-se do que disse Josué de Castro: “É que nenhum povo do mundo se mostra tão enraizado à terra, mais profundamente ligado à seu solo natal do que o povo do nordeste. Este desadorado amor à terra que sempre lhe fez sofrer faz com que o homem do nordeste a defenda sempre, até o extremo limite de suas forças”. (5) 


Notas:

1- Floro Bartolomeu diz em seu depoimento que o Beato apareceu por volta de 1900 no Juazeiro, mas outros relatos dizem que ele já estava lá desde 1890, como as coisas na vida do beato antes do Caldeirão e do Boi “Mansinho” não são tão claras, preferi registrar dessa forma.

2- Extraído do livro Juazeiro do Padre Cícero –Depoimento para a história de autoria de Floro Bartolomeu 

3- A Epopéia do Mansinho: o boi santo do Caldeirão (Crato-CE) – Autora: Antônia Lucivânia da Silva / Coautora: Marilyn Ferreira Machado. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/35/1400183093_ARQUIVO_ARTIGOAEPOPEIADEMANSINHO.pdf

4- Novamente as datas se confundem pois alguns pesquisadores como Rui Facó afirmam que a expedição ocorreu em 9 de novembro, já outros pesquisadores afirmam que se deu no dia 10 de setembro, e outros ainda dizem que ocorreu no dia 11 de setembro. 

5- Sete Palmos de Terra e um Caixão – Josué de Castro

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