A manobra militar daquelas noites de novembro de 1924 era arriscada: movimentar 300 homens pelos pampas de Guaçu-Boi, no interior do Alegrete, durante a madrugada sem chamar a atenção do contingente de tropas legalistas estacionado em um batalhão militar na proximidade.
O comandante da tropa, Honório Lemes, conseguiu conduzir os rebeldes – em sua maioria camponeses pobres e posseiros – por uma parte do terreno, até que um soldado do governo se apercebeu da movimentação. Em pouco tempo, o terreno silencioso se converteu em um campo de batalha.
As tropas do Exército foram mobilizadas contra os rebeldes e Honório Lemes, calculando a desvantagem de seu pelotão, ordenou uma retirada ordenada, sem virar as costas para os adversários nem dar-lhes descanso. Aplicou sua famosa lição: “bater em retirada e com pouca munição, mas lutando sempre”.
Resguardados do entreveiro, a tropa retornou à fronteira do Rio Grande do Sul, de onde tinham vindo, para reorganizar as forças.
Maragateria
A manobra foi uma das mais singelas proezas militares do general Honório Lemes, homem pobre de origem camponesa. O que ele aplicou ali foi o resultado de anos de aperfeiçoamento da arte militar desde que participou, ainda como jovem combatente, na Revolução Federalista de 1893.
Os civis sob o comando do general Honório Lemes, que também lutavam desde o final do século 19, eram os maragatos. “O nome vem da região de Maragateria, na Espanha, de onde grande parte dos primeiros familiares dos maragatos vieram. Os maragatos eram principalmente produtores de gado da região da Campanha, no Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai”, explica o professor Amílcar Guidolim, do Instituto Federal Farroupilha, campus Santo Ângelo, e autor do livro Militares e Maragatos em Armas: as revoltas tenentistas de 1924 e a formação da Coluna Prestes no Rio Grande do Sul. Era um grupo amplo, que reunia desde pessoas influentes e com grandes posses até pequenos produtores e camponeses.
Guidolim conta que os maragatos participaram de duas das três revoltas no Rio Grande do Sul desde a Revolução Farroupilha: a Revolução Federalista de 1893 a 1895 e a Guerra Civil de 1923. Na primeira guerra, os maragatos se opuseram ao presidente do Estado, o positivista Júlio de Castilhos, e foi potenciada pela disputa de vários grupos políticos na recém-fundada República. Na segunda guerra, quando Honório Lemes se destacou como líder militar, os maragatos se opuseram ao herdeiro de Castilhos, Antônio Augusto Borges de Medeiros, por razões mais profundas.
“Eles começaram a se opor contra o Borges de Medeiros, do Partido Republicano Rio-grandense, que tinha um projeto político e econômico que ia contra os interesses dos criadores de gado da região da Campanha (zona fronteiriça entre o Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina), além do que se encaminhava, após as eleições estaduais de 1922, para um 5e mandato na presidência do Estado do Rio Grande do Sul”, diz Guidolim.
A revolta marcava o desenvolvimento do processo que, mais tarde, marcaria a contenda entre latifundiários e grandes burgueses em torno dos rumos do País, mas que também mobilizou, no RS, sobretudo no campo dos maragatos, um grande contingente de massas populares insatisfeitas com a República comandada pelas oligarquias.
“Essa adesão foi muito maior nos maragatos do que nos ximangos. Eram massas que não necessariamente defendiam o mesmo que a cúpula maragata, mas que não concordavam com os rumos da República e com a grande centralização de Poder, e se uniram sob a bandeira dos maragatos”, diz Bruno. Além de Honório Lemes, os maragatos tiveram outros líderes populares, como Adão Latorre, ou Negro Adão, um hábil chefe militar.
O estopim do conflito ocorreu depois de acusações de que Borges de Medeiros havia fraudado as eleições, pois, de fato, os Republicanos controlavam o colégio eleitoral – de modo que o próprio Getúlio Vargas, na época ligado a essa agremiação, ajudou a montar a vitória de Borges. “Então, durante todo o ano de 1923, houve confrontos armados, com batalhas muito sangrentas, inclusive com a prática da degola”, contextualiza Guidolim, que aponta que a degola era muito usada em 1893, mas bastante questionada nos anos de 1920. A degola, ou “gravata vermelha” era uma prática de humilhação do oponente na guerra que consistia em um corte transversal de um ponto a outro da garganta.
Leão do Caverá
Apesar das relações com gente poderosa, os maragatos ainda eram um exército minoritário, e, por isso, aplicaram desde os anos de 1893 táticas de guerrilhas e a estratégia guerrilheira da guerra de movimentos – pela qual forças minoritárias, em vez de disputarem posições em uma guerra de trincheiras, realizam constantes manobras pelo terreno a fim de dividir e encurralar os inimigos.
“Há registros que apontam que eles aprenderam essas táticas com revolucionários no Uruguai, e alguns sugerem até mesmo que alguns dos usos foram extraídos dos indígenas charruas e minuanos”, conta o historiador e arqueólogo Bruno da Silva Gato, que ressalta que o vínculo com os indígenas ainda é parcialmente explorado, e precisa de mais comprovações.
O próprio Honório Lemes se tornou um mestre da guerra de movimentos, condensando seus ensinamentos militares em um pequeno manual chamado “Lei Militar”. “Esse foi talvez o primeiro manual de guerrilha brasileiro, e é impressionante como as lições de Honório Lemes se aproximam de várias táticas mais tarde desenvolvidas por revolucionários como o Mao Tsetung, sintetizadas na obra Sobre a Guerra Prolongada”, diz Bruno.
Na guerra civil de 1923, Honório Lemes foi protagonista da maior derrota governamental no conflito, ocorrida logo depois da derrota maragata na Batalha de Santa Maria Chico. O general Honório, perseguido pela Brigada Militar, driblou os militares e forçou as tropas inimigas a se separarem em três grupos. Usando a divisão a seu favor, emboscou um a um dos militares e aniquilou os brigadianos.
Depois desse conflito, Lemes avançou pelo interior do Rio Grande do Sul sabotando linhas férreas e adquirindo cavalos e armamento a partir das posses inimigas. É nessa marcha que ele chega à Serra do Caverá. “Lemes fica muito famoso nos anos de revolta por ter conduzido os ximangos para a Serra”, diz Bruno. “Ele se embrenhou naquele território e fez manobras espetaculares na região, fazendo com que os adversários ficassem completamente perdidos, ganhando a alcunha de Leão do Caverá”.
O leão e os comunistas
Lemes fica tão famoso como um líder popular e militar que ele é procurado por comunistas em meio às revoltas. “O primeiro registro disso está no livro de Ivo Caggiani chamado Honório Lemes, um herói popular, só que há um erro ali”, conta o historiador. Ele diz que percebeu o erro quando pesquisou por Jean Jaulés, o representante da IC que, segundo Caggiani, teria encontrado Lemes.
“Primeiro que não existe Jean Jaulés, e sim Jean Jaurés. Segundo, que ele não era da IC, e sim da Internacional Socialista revisionista. E terceiro, que ele morreu em 1914”, pontua Bruno. Por outro lado, as pesquisas do historiador mostram que, em 1920, a Internacional Comunista enviou para a América do Sul um quadro chamado Jules Humbert-Droz, e ele ficou responsável por coordenar a busca por líderes populares no subcontinente
“Parece então que houve uma confusão, mas que o encontro de fato ocorreu. E, ao que tudo indica, Lemes ficou muito admirado pelos ideais comunistas, mas acabou não aderindo por estar concentrado nos conflitos riograndenses”, conta Bruno.
A admiração foi mútua: de acordo com Caggiani, o emissário da IC comentou sobre Honório em uma palestra em Quaraí, onde teria dito que “o general Honório tem uma profunda ternura proletária”. Por outro lado, o poema do comunista gaúcho Lacy Osório, Mensageiro da Internacional Proletária, trata da admiração de Honório pelo enviado distante. “Voando da história/os palas respondem/ – Honório Lemes/rugiu armas velhas/ flutuou mensagens/ nas pontas de lança// nesses dias/ a imprensa/ sangue coagulado em letras./ O chasque/ a notícia/ o tiro/ a insurreição// Vaqueano defendia/ legendas fazendeiras// Não sentia a terra/ como fonte de sangue/ nas veias dos homens/ de sua origem/ Não sentia./ Não exigia.// Sociólogo vindo de Paris/ via Buenos Aires/ cruzou a fronteira Oeste/ e nos disse um dia:/ – a Internacional Proletária/ dos Thibault de Martin du Gard/ nos enviou de emissários/ para Honório// – Somos, general,/ a humanidade do trabalho./ Tecemos a história/ de moradia e roupa/ e flor de trigo que resulta em pão/ – Pela dignidade de sua origem/ gostaríamos/ viesse para nós/ a fim de fazermos/ da terra a mesa/ da santa ceia/ para todos os homens// – Moço – respondeu Honório/ Eu nunca ouvi coisas tão belas/ como agora. – Entenda/ sou origem pobre/ camponês de atraso/ faço a política que sei// Palas da história/ como reposteiros/ continuaram flutuando em 23.
Os maragatos e a Coluna
Mesmo com as grandes vitórias dos maragatos ao longo da guerra civil, a cúpula do grupo decide, em 1923, que era impossível derrotar Borges de Medeiros, e propõe um cessar-fogo com os adversários, naquilo que fica conhecido como o Pacto de Pedras Altas. “Acontece que, na mesma época, o Brasil estava passando por uma série de novos acontecimentos que remexeram o país”, conta Guidolim. “Em 1922, é fundado o Partido Comunista do Brasil – P.C.B., e logo depois tem os movimentos tenentistas”.
“Depois do primeiro levante do Movimento Tenentista, em 5 de julho de 1922, no Rio de Janeiro, muitos militares da baixa oficialidade são punidos por terem participado da revolta. Um deles, Luiz Carlos Prestes, que era capitão da Companhia de Deodoro, no Rio de Janeiro, é transferido, como punição por ter ligação com o movimento de 1922, para o interior do Rio Grande do Sul, primeiro para supervisionar obras de construção de quartéis na região noroeste do Estado, depois fixando-se em Santo Ângelo para atuar no 1° Batalhão Ferroviário”, continua ele.
Nas terras gaúchas, Prestes é procurado por lideranças tenentistas, como Juarez Távora, que tentavam levantar o movimento rebelde no Sul. Motivado, Prestes toma parte nas mobilizações.
O início é difícil, pelo envolvimento das massas nos conflitos regionais, mas o pacto de Pedras Altas abre uma oportunidade, e maragatos que queriam continuar a luta armada começam a conversar com os tenentistas revoltosos no Rio Grande do Sul.
Reunião no Uruguai
“Honório Lemes estava por dentro dessas articulações. Ele enviou um emissário para Foz do Iguaçu, no PR, para se encontrar com os rebeldes que estavam lá e com Juarez Távora”, conta Guidolim.
O próprio Lemes teria sediado uma reunião com líderes tenentistas na sua fazenda, chamada Catalã, no Uruguai. “Desde três dias, circulam, aqui, boatos, tendentes a fazer crer que o general Honorio Lemes e emissários do coronel João Francisco estão na estancia Catalan, na republica do Uruguay, distante oito léguas desta cidade, reunindo gente, comprando cavalhada e recebendo armamento, munições e metralhadoras com o intuito de invadir o Estado.”, diz um telegrama enviado pela Aliança Libertadora de Quaraí para o chefe de polícia do Rio Grande do Sul, publicado no dia 23 de outubro de 1924 no jornal Correio do Povo.
João Francisco era um general envolvido nas revoltas tenentistas de São Paulo e, depois, em Foz do Iguaçu. “Era uma figura muito importante do movimento tenentista”, classifica Guidolim. Ele também conta que, “em meio a essa mobilização, Juarez Távora começa a articular a adesão dos maragatos com a revolta tenentista, e é nesse cenário que ele tem um encontro decisivo com o deputado maragato João Batista Lusardo para firmar a aliança”, diz Guidolim.
O início da revolta
Fazia frio em Santo Ângelo, um município de 679 mil quilômetros (km) quadrados, naquela noite de 28 de outubro de 1924. Sentindo-se protegidos dentro dos quartéis, os militares legalistas do 1° Batalhão Ferroviário da cidade não esperavam que uma revolta estouraria dentro dos alojamentos. Mas foi justamente naquela madrugada que, com roupas simples e sem dormir pela tensão, militares progressistas da baixa oficialidade romperam o silêncio da noite em um explosivo levante.
A revolta tomou rapidamente a unidade. Na madrugada do dia seguinte, os rebeldes tomam o 2° Regimento de Cavalaria Independente de São Borja e o 5° Regimento de Cavalaria Independente de Uruguaiana. Os fuzis também cantaram no 2° Regimento de Artilharia a Cavalo, em Alegrete, e em uma unidade em Itaqui, mas os revoltosos acabaram superados pelos legalistas dessas instalações.
Fora dos quartéis, o general Honório Lemes se deslocou da região de Quaraí, na divisa do RS com o Uruguai, até Uruguaiana, onde se encontra com o tenentista Juárez Távora. Dali, eles tentam Alegrete, onde o líder tenentista João Alberto Lins de Barros havia fracassado em tomar o quartel do Regimento local.
É nessa região que, no início da manhã de 8 de novembro de 1924, um conflito explode entre as tropas legalistas e os rebeldes. Os militares governistas liderados por Flores da Cunha conseguem dispersar os rebeldes e Honório Lemes recua com as tropas para Quaraí. Na região, ele fortaleceu sua coluna com velhos companheiros de 1923 e travou outros combates, como a tomada do município de Rosário, onde confiscou a cavalhada do Exército na Coudelaria Nacional de Saicã e no Posto de Remonta de São Simão.
Adesão à guerra de movimentos
Paralelamente às movimentações de Honório, um enorme contingente de tropas civis e militares chegavam, sob o chamado de Prestes, a São Luiz Gonzaga, uma região segura para os rebeldes pela ausência de um ramal ferroviário – o que dificultava a chegada de tropas legalistas até os rebeldes. Até o dia 27 de dezembro de 1924, o contingente de revolucionários totalizaria algo entre 1 mil a 1,5 mil homens. Cerca de 30 mulheres, companheiras de civis ou militares do movimento ou simpatizantes da causa, também se juntaram ao movimento no Rio Grande do Sul; um número maior delas se uniriam em outras etapas da Coluna.
“Era um número grande, mas muito inferior às tropas de Borges de Medeiros, que reúnia 14 mil militares somente destinados para sufocar os rebeldes em São Luiz Gonzaga. Avaliando essa situação, Prestes decide não confrontar diretamente as tropas do governo e sim colocar em prática a guerra de movimetnos, visto que os rebeldes estavam em número inferior e mal armados e municiados”, diz Amilcar.
Para os maragatos, e especialmente para Honório Lemes, essa estratégia militar não era novidade. “Certamente, muito do que se fez na Coluna Prestes foi influenciado pelo que os maragatos faziam desde o século 19”, conta Amilcar. Um exemplo são os fogões – grupos de 10 a 15 combatentes que saíam em busca de gado para carnear. “Isso foi muito aplicado na Revolução Federalista de 1893 e na guerra civil de 1923, e acabou sendo aderida na Coluna Prestes”.
O herdeiro emboscado
A participação maragata na Coluna levou os tenentistas a importantes vitórias. No final de 1924, um destacamento de maragatos marchava pela cidade de Ijuí rumo à Santa Catarina quando avistaram um carro no qual uma notável figura, o intendente de Santa Maria e membro proeminente do Partido Republicano, Júlio Rafael de Aragão Bozano. Os rebeldes decidiram de imediato preparar uma armadilha.
Bozano, que liderou corpos provisórios – grupos de civis armados – contra os rebeldes, estava atravessando Ijuí para chegar a Lagoa da Conceição, mas no meio do caminho o carro é interceptado. O ximango não teve tempo para reagir à rajada de metralhadoras que partiu de longe, disparada pelo maragato Reinaldo Krueger, conforme consta em um inquérito policial examinado por Guidolim. Além de Bozano, outras três pessoas são atingidas.
“Foi um baque enorme, porque Bozano era um possível herdeiro para Borges de Medeiros e, dias antes da emboscada, o governador disse que a revolta estava prestes a ser sufocada”, conta o historiador.
Sem vida além do Rio Grande
Depois dessa emboscada, a Coluna Prestes continuou a marcha e, no dia 3 de janeiro, aniversário de Luiz Carlos Prestes, se confrontaram com tropas legalistas no município de Nova Ramada, no conflito mais violento até então: a Batalha da Ramada. “Tanto o efetivo revolucionário quanto o governista tiveram baixas importantes, mas a Coluna Prestes consegue romper o cerco e continuar a marcha até a divisa de Santa Catarina, para, finalmente, em abril de 1925, se encontrar com o efetivo paulista que estava cercado pelas tropas de Marechal Rondon em Foz do Iguaçu”, diz Guidolim.
A saída do Rio Grande do Sul é o fim da marcha para muitos dos maragatos. “Isso ocorreu porque a aliança, apesar de ter marcado muito ambos os grupos, era bem circunstancial: os maragatos queriam derrubar o governo gaúcho e os tenentistas tinham mais interesse em tirar Arthur Bernardes do poder”, conta Guidolim. Por isso, “quando eles chegam na fronteira, muitos maragatos decidem não seguir. Para eles, era como se não houvesse vida além do Rio Grande do Sul”.
História viva
Até hoje, a memória de Honório Lemes e da Invicta Coluna Prestes é motivo de orgulho para o povo brasileiro. “Lembro de um dia que estava em uma atividade de Educação Patrimonial no RS e perguntei aos operários se eles conheciam o Honório Lemes”, conta Bruno. “Na hora, um deles levantou para me corrigir: general Honório Lemes”, completa ele, rindo.
No ano passado, marco de 100 anos da Coluna Prestes, ativistas, jornalistas e professores se reuniram em um ato promovido pelo jornal A Nova Democracia em Foz do Iguaçu para comemorar o aniversário do feito militar.