Para Ana Rosa Tezza e sua magistral Trupe Ave Lola
1
Era uma expressão que (me) ficou girando à cabeça nas vezes em que me precipitava ao ensaio, a agonia das tarefas da escrita face a tela em branco; havia que começar, buscar uma ponta solta do cadarço, tomar pelas crinas a prosa poética a se debruçar sobre o trabalho da Companhia teatral Ave Lola; intrometer-me de golpe na tessitura viva e pensante que respira e se move em simbiose com a trupe, recolher dados informações o baralho de fotografias, vasculhar os arquivos as páginas o catálogo o repertório de peças, ver/ouvir a voz a narrativa o testemunho no exercício da memória que se vai tecendo – o tapete que voa pleno de gestos de escuta, a permanência que se insiste na ocupação dos espaços, a compressão o exercício o retomar milimétrico do ato a transposição sobre-humana dos corpos dos atuadores fusionados aos tempero primal da música -; era necessário temperar-me aos rumores das estórias contadas que vão registrando os acúmulos; era preciso dar a partida no esforço ensaístico e voltar até onde a carpintaria se mostrava pronta, a montagem cênica indo e voltando nas teias da lembrança; havia que desfiar o novelo a trama o emaranhado das cenas, o filão movediço dos gestos em partitura, os bonecos onipresentes, o entreato na procura insana de Aureliano em sua orfandade dentifrícia, o teatro de revistas de Priscila a um corpo sem órgãos, a costura da forma, sua visibilidade rendilhada de cores; havia que (me) descarrilar das séries em sequência nas que o espetáculo se me voltava, e tomar de uma rota-percurso o verbo, as frases à contrapelo, a lírica do poema em prosa, deixando-me ao saber/sabor do carteado impresso pela rítmica dos corpos dos atores em movimento, a presença orgânica das músicas como a um repertório de cortes e encadeamentos, cão vadio, cão vadio, cão vadio – o que significaria aquele nome, aquele distintivo às avessas?
Que estranho que coubesse àquela marca, o brasão infame do cão vadio estampado com letras em caixa alta numa fotografia na qual Cândida Erêndira se mostrava inteira e altiva, a máscara do rosto a pular para fora do quadro em fúria, festa e redenção. Erêndira chegada do deserto depois de tanto tráfico, depois de tanto expurgo, depois de tanta paga – a dívida eterna lhe subindo em trabalho, lhe custando em sobre-esforços, a avó desalmada lhe desfolhando a pele os pelos os dentros em convulsão; dívida retorcida em peso e cheiro desde as pontas dos dedos dos pés a farsa lhe entrando, as mãos aflitas dos hospedeiros lhe riscando fanfarras – um lastro de fome e sangue pelas pernas em carne viva, abortos rechaços o estilete no útero, e os homens do povoado lhe subindo às entranhas por vinte centavos. Erêndida não dorme, ela não morre tão pouco, Erêndida é vigília e vingança postergada, ela precisa de pórtico, ela derrapa pela vazante, ela precisa se plantar a uma peça, ela precisa de uma trupe que lhe abarque, ela precisa da tempestade reversa, um vento de calmaria para além da desgraça de há tanto, ela chega por trás da fumaça, ela traz a voz projetada dez metros a sua frente, ela entra como se tomasse de assalto as portas da cidade, mas qual? Qual e onde a cidade na que o teatro se atualiza, em farsa e comunhão?! Ave Lola nos acena princípios. Ave Lola reverte valências. Ana Rosa Tezza revira o baú de outras estórias, de outros contos, de outras palavras escrituras escritores e inventa, façamos silêncio em respeito e apreço, Ana Rosa Tezza está criando, esgarçando causos destinações… .
Todavia queda irresolvido o enigma a (me) precipitar os olhos, a suspeita, o fôlego, o fastio para com àquele nome sacado de onde (seria) o tal cão vadio – me perguntava o porquê daquelas palavras que pareciam pouco se encaixar com referências precisas, pontuais, enxutas. Mas eles brincam, avelolistas gracejam galhofam desconcertam eles tocam o fole do deboche desalmado, eles jogam o laço e recolhem a corda na que um (alguém) buscava a salva, a contrapartida ao desassossego.
“Que lugarzinho comum esse. Estou exausto. A eterna espera que não diz nada, que não nos leva a lugar nenhum. Por que a autora não nos dá de uma vez um destino? Um lugar para onde ir, uma missão, é tão simples. E se ela quer que tenhamos medos, paixões, se ela quer agarrar minimamente a atenção deles, que seja clara: onde estamos, para onde vamos e o que ganharemos com isso. Uma unidade de tempo que seja”
Ave Lola ousava um sobrevoo arrastando feridas, agruras, os cancros recolhidos ao percurso. Ana Rosa Tezza arremessava na mesa de trabalho a palavra-valise que concretava ensejos de gestos, pedaços de cena à sua carpintaria na qual um personagem brota em cores e sonoridades, os acordes musicais, o tom, a clausura do espaço, o corpo sob o limite do constrito, e a palavra, e a palavra, e só então a palavra que talvez recue, que talvez avance em descarte, cão vadio cão vadio cão vadio quando fora que lhe surgira este trinado? Mas até onde que isso, esta expressão algo prosaica – cão sem dono, sardento, manco de uma pata, pústula ao focinho gasto e rugoso, esfomeado talvez; cão que se espanta aos pontapés, ladrido que sequer convoca passantes incautos, um caminhante solitário fadado ao degredo; onde que isso esse cão vadio fincado à travessia, instado ao movediço da passagem que não conduz a algures? Para onde que ele, cão vadio, em seu tropeço de patas, em seu aleijão de imperícias e peripécias acumuladas de há tanto? Ana Rosa Tezza não diz de uma só vez. Ela silencia segreda como se entramasse a tela teia rede de pesca. Estamos aí ao brusco deste maralto.
Ana Rosa Tezza não entrega de bandeja o segredo da gira, o silêncio de dentro que apenas aos poucos reflui e se esparrama. São tantos os nomes que se encarnam à palavra. Seria a este norte polissêmico que se destinaria a caravana como num jogo de cartas em que as palavras nos fogem ao conforto da razão? Acrescente-se ainda que tudo se resolveria a um cabaré, os músicos sempre a postos, um cabaré – o que contribuiu para arrancar o chão movediço às especulações que (me) restavam. Como a um festim diabólico, o teatro desnudava de certezas o império de razão abstrata e abusiva. Ouve-se dizer que o teatro desce bacante as cordilheiras.
Necessário avisar aos navegantes que o ensaio singra por mares nunca dantes navegados, que o ensaio naufraga ao sabor das tormentas ao mar das Antilhas, testando a sorte às noites atlânticas insondáveis. Onde outros evocam Tchekhov como um lugar seguro para onde voltar, nos somamos ao coro que fisga pelo dorso a García Márquez, Gabo, Gabito, a velha casa da infância de Aracataca na que a avó não distinguia os fatos sacados à secura do dia ao inventário mágico que enredava a vida e a morte, a velha casa da infância como lugar seguro para onde sempre se retorna pois que é, a um só tempo, precipício e ancoradouro.
Por vezes, tantas vezes, o ensaio se ajeita a este recôndito, se recolhe na colcha de cuidados da sintaxe, se pergunta pela unidade de tempo; certas vezes, o ensaio ousa se juntar ao coro de Estevan e Joaquim na exigência de papéis mais claros, transparentes, translúcidos, o ensaio reclama à dramaturga pelo caderno de notas, a ordem do dia temperada em fotografia quente amarelada, uma planilha de ensaio (de escrita, de corpo, teatro palavra?) pregada a parede da casa, uma diretiva uma coordenada uma notação científica, e o ensaio eleva o tom da voz que titubeia, ele reclama por um fluxo de escoamento linear, ele se veste de antigo arcaico quatrocentão, noutras, ele se exige ares de escrutínio e se apega a interrogantes, e é quando as perguntas lhe surgem às cascatas. Qual teria sido a razão da escolha de um nome infame como este por Ana Rosa Tezza e sua trupe avelolista? Cão vadio, cão vadio, cão vadio. Por que nomear desta forma o mais recente espetáculo teatral da companhia paranaense?
Talvez fosse o caso buscar sob a manga do figurino a pista que falta.
2
Ingressando aos poucos nos materiais de divulgação que circulavam nas redes sociais, lembro ter lido algo que me intrigou: se trata da borda do mundo, lá onde os relógios giram seus ponteiros somente até a metade, e depois recuam. Entrando no espetáculo, tomando seu texto como objeto, nos fazendo um blocado de olhos e orelhas de espreita, eis que acessamos ao prólogo:
“Um lugar na borda do mundo, um lugar para onde alguns fogem, alguns se escondem, alguns são levados à força, alguns chegaram carregados pelo vento do deserto ou trazidos pelas tempestades. Diz-se que há quem nasceu no cão vadio, que há ainda quem está lá há tanto tempo que já não lembra mais por quê. O tempo no cão vadio anda em meia lua, os relógios de lá ainda são redondos, eles têm belos ponteiros forjados em ouro, mas em lugar dos ponteiros darem a volta completa e permitirem que o tempo ande para frente, eles só vão só até a metade e depois começam a retroceder. Andar para trás”
Então era isto, uma metáfora descarnada, um jorro alusivo, a alegoria que extrapola em imagens, uma carta pela metade, o naipe apagado, riscado rasurado até a borra – não se tratava de um animal errante, Cão vadio seria uma delimitação espacial, quiçá fosse um certo modo de estar no mundo, ou talvez fora um recorte aleatório no tempo, e por que não dizer, ao menos a mim; eis aí um primeiro engate às tratas da investigação – aos poucos, pé ante pé, a vontade de saber (volúpia e vertigem) se fazia agraciada, devagar, seguindo a picada com cuidado, como que a passos incertos e imprecisos, um degrau vencido ao exercício da compreensão daquela expressão em contrassenha; cão vadio, a borda do mundo, a extremidade periférica, tudo isto me soou como uma pista cartográfica: a borda, as laterais, a beira, a orla – mosaico composto de palavras para contar o encerro, ou o que parece flutuar em direção ao fim; espécie de platô para alinhavar o que se esgota desde ali, como por uma voragem onde a água se faz redemoinho, precipício, abismo, e se esvai exaurida na aridez do solo.
“Os andarilhos estão caminhando há muito tempo, mas apesar de todos os seus esforços não conseguem sair do mesmo trecho de terreno. Diante deles estendem dez jardas de estrada marrom escuro, lamacenta; atrás deles, outras tantas nas mesmas condições. Para além, de qualquer lado que se virem, levanta-se espessa muralha de branco nevoeiro. Caminharam muito e caminham ainda, mas o terreno não muda nunca; a muralha não se aproxima nunca, a terra continua a mesma. De quando em quando lhes ferem o olhar faíscas de alvas, irregulares malacachetas, ou afundam num buraco ou em algum sulco cavado pelos carros erradios…”
A borda do mundo o que será delineia? O que será precipita ao exílio, ao êxodo? De que matéria serão traçadas as linhas de extremidade lá onde – quem sabe -, o mundo acaba, se evola, se descostura. Será isto? – eu me perguntava. Qual seria a paleta de cores desta amurada, de que forma e molde se tangeria este desígnio – o caminho para onde conflui o que for pária, a rota de chegada na que pousam os saltimbancos, o teatro de marionetes montado às pressas em meio a fome e a sede dos contrabandistas; a borda do mundo não será composta de figurinos empastelados, em tom gris uniforme, metade destes vestindo a um Blacaman perverso e duro de coração, outra metade cobrindo inteiro o corpo pequeno e extenuado de Erêndira, quiçá em sépia como que a remontar ao que se esgota por involução, como que a sugerir o que se descarta por cansaço?!
Como será o crepúsculo no cão vadio quando a noite descia ao calabouço – o que será se desborda por ele, haverá um portal de ingresso, uma escada magirus que nos faculte contemplar o outro lado do pesadelo de Dulce, uma aduana empestada de policiamento de fronteira, com atiradores de elite ocupados com armas de precisão e de grosso calibre, uma lista de documentos a apresentar, a inexorável ausência e incompletude com seus ares de graça, um traje indicado nos protocolos de ingresso, uma banqueta de espera até que o fim acabe e nada e nada e nada a restar na cartola da sorte nas que mãos prestidigitadoras esboçam irredutível solidão?!
Perguntas sobre perguntas, perguntas que afirmam no vão de suas frases sem conclusivas; eu sentia que avançava no intento de compreender o nome, aquele nome. Eu me disponibilizava a ingressar na senha que me ia inventando. Quem será chega ou quem será parte da borda do mundo que é cão vadio – for o caso haver um trâmite por esta fímbria que sequer se sabe o estado de presença, as condições ao visto de permanência? Dulce chegará. Horácio também. Erêndira e Luz avançarão desde o deserto. Cão vadio como destinação. Cão vadio como refúgio, a oportunidade de recomeçar do zero. Cão vadio como parada obrigatória.
Será que faz frio por estas bandas, será que chove a cântaros, será a espessa neblina uma trava imposta a profundidade do olhar que divisa horizontes? Será que o vento da desgraça arrasta e conforma uma parede de areia pesando no relance de uma cegueira definitiva? Talvez eu tivesse escutado algo a falar do vento, talvez eu tivesse lido algo que me remetesse a um traçado comum, talvez o acorde de certas palavras me tivesse tocado regiões de confiança e reconhecimento. Mas será? Não me parecia confortável os pequenos sinais detectados. É que Ana Rosa Tezza e os seus avelolistas sacodem forte a esteira dos lugares comuns. Desde o nome do espetáculo, o deslocamento de sentido e significação nos dá os ares de sua graça. Necessário ingressar com cautela, evitar os arranjos fáceis e pré-fabricados tangidos sob encomenda. Trata-se de uma experiência pedagógica com e pelo teatro. Ave Lola planta seu dispositivo maiêutico – todavia tal parto não faz promessas a ausência de dor.
3
Aqui são palavras de Ana Rosa Tezza durante nossa entrevista:
“Essa ideia de você ser um povo de 2ª linha, de ser relegado, de ser a fazendona das grandes potências, da gente ser um povo que não tem direito a dar seus próprios passos e crescer do ponto de vista de nossa integridade enquanto sociedade, em uma perspectiva social, política, educacional, econômica. A gente discutiu muito sobre isto e a sensação que ficou é que a cada vez que estamos dando um passo para frente, para sair deste fosso – um país que tem dinheiro, potência, um país que tem tamanho, tem um povo criativo -, o que acontece é de você ser empurrado para esse lugar da margem por forças misteriosas. Eu demorei muito para ter dimensão do quão a gente é visto com olhares muito distintos do que a gente imagina. Quando você vai fora [para o exterior], se você é um tipo comum, um cidadão qualquer de qualquer parte do planeta, e se você não for preconceituoso, você irá achar que o mundo te olha com a mesma liberdade com que você o está observando, e de repente você se dá conta… a gente percebeu o quanto nos olham torto, o quanto nos olham enviesado para nós, latino-americanos, e nos pregam uma estampa de gente de 2ª linha, e como nós somos ingênuos, como a gente está imersa na nossa própria vida, e ela é tão completa em si mesma, que a gente muitas vezes demora para ter a noção do buraco que é ser latino-americano e o que isto significa quando você se coloca em relação ao povo do Norte, os Estados Unidos, a Europa. Porque a gente está sempre à beira de fazer o nosso relógio dar a volta completa, mas alguma coisa faz com que o relógio vá só até a metade. São metáforas do que eu sinto que de fato nos acontece, com a América Latina, parece que se a gente de fato sair deste lugar [em que estamos depositados] a gente vai desestruturar algo que é muito maior, e que precisa desse posicionamento, que precisa de pessoas como nós para que façam as coisas funcionarem para os outros. Pensar sobre isto é uma coisa que a gente tem que fazer, como artista, como brasileiro, como latino-americano” .
Ana Rosa Tezza e sua trupe Ave Lola tocam os dedos na ferida aberta – chaga que parece condenada a não estancar. Cão vadio é este pedaço de mundo, nuestra américa, nossa nação latino-americana submetida ao regular e contínuo saqueio de nossas riquezas fundamentais pela sanha coordenada por corporações monopólicas transnacionais, pela massa de capitais volatilizados, por seus agentes operando nos entramos das leis e do Estado assim como nas suas franjas de ‘ilegalismos’, nos mercados paralelos do crime, nos aparelhos de repressão e extorsão das ditas Forças de Segurança pública utilizadas como máquinas de produção de morte contra a população trabalhadora, nas ‘nossas’ Forças Armadas de ocupação espargidas ao longo de nosso território nos vigiando nos vasculhando nos submetendo a golpes e assaltos sob encomenda; nos aparatos de informação e propaganda a que insistimos em chamar de meios de comunicação, e tudo isto somado, na síntese da devastação promovida pelo imperialismo e seus gerentes locais, o de que se trata senão da perversa equação em que a rima malcasada nos submete a fórceps: por um lado, a isenção contratada que permite ingresso, extensão e permanência daqueles que nos devastam. E sob o pretexto do desenvolvimento integrado, o de que se trata é, de fato, a impossibilidade de nosso avanço mais além da subalternidade periférica regida por uma lógica desigual e combinada a acenar com este trava-línguas: o desenvolvimento dos países desenvolvidos é diretamente proporcional ao desenvolvimento do subdesenvolvimento de nossos países. Estratégia de submetimento de nossos povos à divisão internacional do trabalho, eis a fazendona de que fala Ana Rosa Tezza, o arrasto cotidiano das pragas daninhas que nos restaram em inventário, a precariedade como signo sintoma das políticas de terra arrasada a que estamos acometidos. Por outro lado, e de forma contínua, o lobby nas casas parlamentares fazendo passar as condições legais para que a superexploração das relações de trabalho se alastre e se aprofunde, e eis uma reforma aqui, outra ali; se necessário, sempre que necessário, com o uso de armamentos de guerra e de policiamento ostensivo para reprimir àqueles que se oponham em protesta; e eis que se vai sacando do cesto comum as batatas que nos serviam, e eis que se vai arrancando do solo as nossas sementes crioulas, e eis que nos vão entregando em ‘paga e contrapartida’ o pacote infame e vil do que nos oblitera, apequena e escraviza, pacote este pelo qual a vida se faz traficada na sua faceta a mais ordinária e hedionda.
Cão vadio está sob ocupação ainda que se faça refúgio tantas vezes. Cão vadio tremula entre golpes de Estado, sob governos títeres, sob democracias de meia pataca. Cão vadio resfolega exausto sob a tutela de espias, de serviços de inteligência hiper financiados por agências do terrorismo internacional de matriz norte-americana e sionista. Cão vadio é perpassada por estratégias geopolíticas antinacionais promovidas por um enxame de bases militares estadunidenses que avançam, e se pavoneiam, nos diversos quadrantes de sua área continental. Talvez por isto os que chegam, os que fazem estância, os que aqui nascem, os que insistem em permanecer, ou os que estão nos limites do êxodo e do exílio, todos estes, todos nós, experimentemos uma espécie de estado de exceção contínuo, um estado de guerra conflagrado em que todos, absolutamente todos, nos fazemos e nos percebemos envoltos. Por vezes, tantas vezes, é sob os altos fornos que tal experiência de opressão se revela. Noutras, ela se equilibra sub-reptícia ao supostamente plácido funcionar das autorreferidas instituições republicanas. Formas distintas de manipulação e falseamento. No cão vadio, vida e morte se equilibram e se (in)diferenciam em um estágio de nudez profunda. Nudez como ausência, nudez como estágio último de nadificação a que uma vida possa estar subsumida.
Espaço-tempo este constrito e sintetizado por Ana Rosa Tezza e sua trupe avelolista na noite fronteiriça, uma cena do espetáculo de Cão vadio, noite interminável e definitiva, noite de porcos que se arrastam atrás dos diamantes de Rimbaud, de chacais de todo tipo, de vermes fardados, de muros intercontinentais, de sistemas de alarme, noite de snipes e de temporada aberta de caça; noite de animais farejadores, de armas que matam e que não deixam morrer; noite em que não cabe o junto, a trama, o nó de marinheiro, o nós de mãe-e-filha; noite de Sofia em sua escolha de trânsito porque apenas uma poderá escapar, porque apenas uma poderá seguir em frente, e esta que segue até onde que isto, e esta que fica como será se equilibra; noite de cisão que escapole para baixo e fundo, para dentro, para o infinito de dentro; noite de fissura, de corte da palavra, de um pedaço de pedra no céu da boca, noite de suspensão silabada, noite dos fonemas oclusos; noite palestina de uma Gaza que é todo sempre, e que volta e que volta e que volta e nos atravessa na América Latina, no Crato, em Medellín, em Matanza, em Temuco, em Macondo, em Santo Antão, no Marajó, nas periferias de Lima onde o deserto não oferta água às gentes das favelas, noites em Villa 31 – a primeira vila miséria de Buenos Aires, noites de Ayacucho onde tudo gira desde o ventre o centro, noites de Erêndira que corre e gira e volta e desce extenuada, espécie de Sísifo, espécie de eterno retorno em meio a uma noite dividida entre um relógio com ponteiros que seguem até a metade e outro relógio com ponteiros exaustos e tímidos que travam a cada átimo de tempo.
Aqui são palavras da personagem cã diante da filha que atravessou a fronteira e que, de imediato, fora alvejada pelos projéteis de franco-matadores:
“Fomos separadas para sempre. O tempo não resolveu a dor. Toda noite de lua, eu corro até as grades por onde apenas eu não pude passar. Meu pranto insistente e longo virou uivo. Meu uivo cansado da dor transformou-me em cão. Um cão sem dono e invisível. E foi com a pouca importância de um cão que escorreguei silenciosa para o outro lado da fronteira. Quando abanei o rabo para Adele, seu espírito logo soube que o cão era eu. E então, nunca mais nós nos separamos”.
É da loucura o que Ave Lola neste instante evoca. A loucura a que estamos expostos em Cão vadio, a loucura sem regresso e que se inaugura em uma experiência traumática aterradora. Loucura a que esteve submetido àqueles que tiveram seus companheiros, familiares, entes queridos sequestrados e desaparecidos. Loucura que afrontou as mães da chacina da Candelária, as mães de Acari. Loucura da fome fazendo feridas e ulcerando os retirantes e desterrados de Argentina, Brasil, Colômbia, Mexico, Peru, entre outros e tantos sacados de suas regiões pelo avanço da mineração a céu aberto, do agronegócio com seus matões a promover ao atacado crônicas que mortes que se anunciam.
Mas voltemos a personagem Cã de Cão vadio, voltemos ao depoimento de Ana Rosa Tezza durante nossa entrevista. Ao perguntar a Ana Rosa como se lhe dava o trabalho de escrita dramatúrgica, ela conta:
“Tem coisas que eu construo a partir de coisas que enxergo na cena. Às vezes, eu vejo uma cena que tem uma situação muito bonita, forte, potente, como por exemplo, aquela cena na qual uma filha e uma mãe tem que se despedir na fronteira. E a fronteira é uma escada. Não tinha texto ali. E era para ser uma cena silenciosa mesmo. O desafio do Cão vadio era ter um nada de cenário, era ter um tapete e uma escada, esse era o desafio. A gente se colocou isto como limite no começo porque eu queria poder viajar com ele de um jeito mais leve. E aí eu fui desenvolvendo essa cena. Primeiro a gente começa com essa despretensão de que a escada é um lugar aonde a gente pode subir, descer, atravessar, e eis que a escada vai virando porta, vira tombadilho, ela vai ganhando essa dimensão que fica natural no corpo dos atores, até que ela vira um elemento que já é dominado por todo mundo, e aí a gente começa a criar situações, às vezes ela é montanha, às vezes ela é borda, às vezes é muro, às vezes é porta, aí a gente fez essa cena; daí que eu criei a cena da cã. Ela é a cachorra [que atravessa diversas cenas do espetáculo]. É essa dor que faz dela cachorra. Essa mulher que perdeu a filha na borda, que foi baleada, ela virou cão de tanta dor. Foi aí que eu tive esse insight. Eu tinha uma cena que eu amava e que daí ela me levou para esse lugar, e daí que eu escrevi o texto da cã contando que foi ali que ela virou cão, porque foi com a insignificância de um cão que ela conseguiu atravessar para o outro lado da fronteira e quando chega lá o espírito da filha Adele logo vai entender que a cã era a mãe dela, e desde então elas duas nunca mais se separaram. Ela enlouquece de verdade, é o realismo fantástico, a filha está acoplada nela. Porque simplesmente não lhe foi possível se manter humano depois de uma dor tão grande.
4
Cão vadio é também o território em que a precariedade se faz matéria prima da criação. Como a um malabar de pratos que dançam e se equilibram no que o caos é princípio de ordenação, trabalho e compromisso, este parto transverso está na base do espetáculo que Ave Lola nos apresenta. Vez ou outra, os personagens se interpelam sobre os direitos e modos aos que ingressam e ocupam o espaço/tempo que é Cão vadio. É nele, já vimos, que Erêndira se despede da avó após a travessia de provações ao deserto que margeava o seu povoado. Já não lhe cabem os corpos sob a forma de mais-valia imposta pela desalmada avó. Se fora o fogo o incêndio a origem da desgraça e da perdição, Erêndira reivindica o atropelo, o esfacelamento da casa erigida às custas de seu cansaço. Erêndira ousará outros modos de conduta, Ana Rosa Tezza lhe puxa, docemente, os fios do cabelo e lhe entrega outros arranjos coletivos, outra comunhão forjada junto aos novos companheiros.
Também Dulce, a escultora envelhecida, cansada de guerra, rodeada pelos fantasmas do calabouço, solicita passagem, ela quer se estabelecer na zona turbulenta de cão vadio. Mais além da tergiversa condição de uma terra acolhedora, cordial, pacífica e divertida, etiquetas frágeis para definir a condição ignota do lugar a que se chega, Dulce vislumbra e anuncia o amanhecer na curva de uma noite vertiginosa. Ela afirma ser melhor que todos fiquem no cão vadio onde o amor provará que a verdade e a felicidade serão possíveis e onde as raças condenadas a cem anos de solidão terão finalmente uma segunda chance, uma segunda oportunidade sobre a terra.
Mas será Luz, aquela que chegara com o filho no interior de uma mala e que lhe cantara a canção de despedida no momento em que ele se evolara, será Luz quem tomará a si o bastão do rechaço e as bandeiras do novo tempo; Luz parece abdicar de sua condição de indivíduo, de uma mulher entre outras mulheres, para encarnar em si todos os nomes da história, e elas são tantas, tantas as vozes os braços as mãos segurando ancinho a foice as pernas pisoteando profundo o solo rachado os pés no roçado na lavoura a boca escancarada que grita que pragueja que canta que entoa a marcha na denúncia da tirania e no anuncio da revolução que se avizinha.
Ela(s) diz(em) pela voz de Luz que as fronteiras criadas por vocês são completamente fictícias e ilusórias. Ela assume sua condição de legião bacante reivindicando as consignas e estandartes das bruxas que [eles, os inimigos de sempre] não conseguiram matar, Luz afirma:
“Nos expulsam de nossas terras, e sim, nós somos mais de quatrocentas e setenta e três mil mulheres todas juntas pela liberdade. Os senhores verão sangue. Temos o direito e o dever, sim, o direito e o dever de correr pelos campos, dever e direito aos rios, a educação, a tudo. (…) Abram a porta! Abram a porta! Por bem ou por mal vocês terão que abrir a porta…”.
E Luz, e ela como se fossem todas as mulheres da revolução, todas as mulheres desta guerra popular prolongada, ela começa a contar um, dois, três. Seu corpo com um bastão em seta no braço se transfigura. Seu corpo, seu rosto, seus pés de pluma, seu cabelo de fogo, seus olhos que saltam, ela corre em nossa direção, ela corre, ela vem em bando, ela desce a Cordilheira, ela destrava os ponteiros do relógio que encerram as horas…
* *
1 Cf. Texto de Elza Forte da Silva Carneiro: “A luz: o revelar da obra”. IN: TEZZA, A.R.G. Nuon – dramaturgia e memórias do processo de montagem. Curitiba: Ed.da autora, 2021 (p.53).
2 Durante uma Oficina de Interpretação oferecida na tarde do dia 28 de setembro, no Teatro Nelson Rodrigues, no Rio de Janeiro, Ana Rosa Tezza destilou com maestria e rigor os quefazeres cênicos em seu tomar o corpo do ator como matéria-prima do teatro. Ela afirma que há de haver, em cena, um corpo só, o corpo coletivo. Corpo que deve sempre buscar uma forma concreta de se colocar. Uma forma concreta de colocar o sentimento expresso nele – ele, o corpo, é o que recebe a imaginação, deixando translúcida a máscara do rosto. Todavia há de se trabalhar desde dentro para fora, há de começar de dentro e ir se enxameando, enxergando o que está em volta, rechaçar de toda maneira possível o que for abstrato e irreal, o que não se impõe aos modos da concretude dos gestos e ações. E para isto há de se abrir espaço dentro do corpo para a investigação – porque se trata da transposição do corpo a um corpo expressivo. E tal instante de transposição se faz com o corpo atrelado a algo que seja concreto de fato. Não importa o quê. Minhocas e lesmas no chão. Se trata de se buscar uma forma que amplie o desenho que a gente quer contar. E neste caso, tantas vezes é imprescindível a pausa, o silêncio entre os gestos, como um trampolim para a próxima ação. Ana Rosa Tezza sintetiza: Teatro como compressão da realidade – hora e meia para acontecer a epopeia, a compressão poética. Se tem de pegar o público por inércia.
3 A personagem Erêndira foi assumida e interpretada magistralmente pela atriz Helena Tezza no espetáculo Cão Vadio, escrito e dirigido por Ana Rosa Tezza, e encenado pela Trupe Ave Lola.
4 Na entrevista que fiz com Ana Rosa Tezza, no dia 28 de setembro/2024, lhe pergunto sobre Erêndira em Cão Vadio, eis seu depoimento: “A peça começa com ela indo embora da avó. Entrando no deserto. E saindo do conto. A Erêndira no Cão Vadio conta dois momentos. Ela conta como Gabriel García Márquez a inventou, mas isto é uma invenção minha. Aquele texto que ela diz ‘o dia vinha amanhecendo, morno e preguiçoso…’ – aquilo tudo eu imaginei como seria o dia que García Márquez escreveu Erêndira. E essa menina franzina que vem trazer o café para ele é quem inspira ele a falar de uma possível menina explorada que é a Joana. É uma invenção minha. Então ela conta como García Márquez a escreveu, que é o instante em que ela faz aquele texto de cabaré. E o outro momento é quando ela entra no Cão Vadio e ela diz ‘adeus, vovó, até nunca mais’. Mas esta carta não existe no conto, nem no Cem Anos de Solidão, mas ela diz ‘eu deveria ter queimado junto com aquela casa e todas nós estaríamos salvas’. Ela está contando – as fotografias, as coisas todas incendiaram e eu não, como eu queria ter queimado naquilo, mas eu não quero mais. Adeus, vovó, até nunca mais. Na próxima cena de Cão Vadio, ela aparece correndo e ela encontra aquele moço e ela pergunta ‘será que tem lugar para mim no Cão Vadio?’, e ele diz ‘no Cão Vadio tem lugar para todo mundo’” (grifo nosso).
5 Cf. Trecho da parte 5 do texto da peça Cão Vadio (inédito).
6 Vejamos este trecho de Ana Rosa Tezza descrevendo seu processo de criação dramatúrgica – no caso aqui, destaque-se, se tratava da montagem de Nuon, que estreou no dia 29 de março de 2016, na programação oficial do Festival Internacional de Teatro de Curitiba: “Na construção da dramaturgia da obra, muitas vezes, o texto é o propulsor para a criação de uma cena, mas acontece também de cenas potentes, carregadas de verdade e com personagens vivos, instigarem-me a escrever textos às pressas, após assistir a uma improvisação do elenco. Não temos medo de errar, descartar textos que não couberam na boca do personagem, abandonar cenas que não funcionaram, para priorizar aquilo que faz sentido para a obra teatral que estamos criando. Nesse fluxo contínuo entre a escrita, a busca formal do espetáculo e a criação das cenas, a obra vai nascendo de forma exigente, mas recebendo sempre o nosso amor pela carpintaria teatral”. IN: TEZZA, A.R.G. Op. cit., p.26.
7 Na entrevista com Ana Rosa Tezza, lhe pergunto o porquê do cabaré. Eis a sua resposta: “Eu queria ter a liberdade de botar a música cantada e eu não queria que fosse um musical. Eu precisava justificar, preciso de um porquê para tudo. Eu me perguntava: Qual é o lugar no teatro em que eu possa justificar uma não linearidade dentro de um espetáculo? Na minha cabeça, no teatro do absurdo que não é linear, mas é, não são quadros, mas eu queria que fosse uma coisa com quadros em que eu pudesse explorar uma coisa sem necessariamente abrir mão dos quadros. (…) Eu queria ter liberdade formal para escrever com tranquilidade as cenas sem precisar depois ter que ficar justificando, mas no final acabou que – eu sou tão compulsiva para organizar as coisas…”.
8 Alusão às falas do personagem Joaquim de Cão Vadio, que afirma que se for o caso de se encontrar perdido, sempre haverá de se voltar aos clássicos, sempre há de se entoar o nome de Tchekhov.
9 São palavras de García Márquez: “Todo dia da minha vida acordo com a impressão, falsa ou real, de que sonhei que estou nessa casa. Não que voltei a ela, mas sim que estou lá, sem idade e sem nenhum motivo especial, como se nunca tivesse saído dessa casa velha e enorme. (…) De dia, o mundo mágico da minha avó me era fascinante, eu vivia dentro dele, era o meu próprio mundo”. IN: MÁRQUEZ, G.G. Cheiro de goiaba – conversas com Plinio Apuleyo Mendoza. Rio de Janeiro: Record, 1982 (p.15).
10 Cf. Trecho que inicia o prólogo do texto dramatúrgico de Cão Vadio (inédito).
11 Gabriel García Márquez descreve assim a Macondo: “Macondo, mais do que um lugar no mundo, é um estado de ânimo. O difícil então não era passar do cenário de um povoado para o de uma cidade, mas sim passar de um para o outro sem que se notasse a mudança da saudade”. IN: MÁRQUEZ, G.G. Op. cit., p.96.
12 Cf. Trecho da parte 8 do texto do espetáculo Cão Vadio (inédito).
13 Blacaman e Erêndira são personagens de contos de Gabriel García Márquez, respectivamente nos contos: Blacaman, o bom vendedor de milagres e A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Os dois contos fazem parte do livro homônimo a este segundo conto.
14 Cf. Trecho da parte 17 do texto: “Não! O que querem de mim, eu já disse, tenho 20 anos, estudante, escultora. Não tem sentido! O que vocês querem? Não! Aqui não. Eu só estava participando da passeata! Eu esqueci meus documentos em casa. Que lugar é esse? O que fazem essas pessoas sentadas assistindo tudo? Parem, eu estou sangrando, parem! Eu estou esperando um filho!”.
15 Cf. Trecho da parte 5 do texto de Cão Vadio: “Um vento forte entra e faz com que tudo comece a voar. Entra o Aureliano lutando contra o vento que o arremessa de um lado a outro enquanto ele tenta alcançar uma mão que voa pelos ares”. Importante destacar que a presença dos elementos da natureza como personagens interferindo no andamento do enredo, elemento bastante marcante na obra literária de Gabriel García Márquez, se faz presente na dramaturgia e na encenação de Cão Vadio. Na entrevista com Ana Rosa Tezza, ela nos confirmou tal fato.
16 Cf. Texto de Eduardo Moreira, ator e fundador do Grupo Galpão, sobre o trabalho de construção teatral da Trupe Ave Lola. IN: TEZZA, A.R.G. Op. cit., p.14.
17 Cf. Entrevista de Ana Rosa Tezza por André Queiroz (grifo nosso).
18 Nos termos de James Petras: “Na América Latina, o Império estadunidense foi edificado mediante generais militares manipulados, autoritários unipartidários e instituições financeiras internacionais. Desde 1960, os interesses econômicos da América Latina passaram a ser subordinados aos dos Estados Unidos por meio de organizações internacionais como o FMI, o Banco Mundial e as corporações multinacionais com sede em Wall Street”. IN: PETRAS, J. The US empire and its Latin American territory. 2005. (p.5).
19 Cf. Trecho da parte 20 do texto dramatúrgico de Cão Vadio (inédito).
20 Entrevista com Ana Rosa Tezza por André Queiroz, 28 de setembro de 2024.
21 Cf. Texto O teatro é a casa da comunhão. IN: TEZZA, A.R.G. Op. cit., p.12.
22 Bertolt Brecht descreve o papel da música em suas obras teatrais: “Ela não deve servir de pano de fundo emocional. Antes, a música deve distanciar o público e enfatizar as contradições da sociedade”. IN: BRECHT, B. Escritos sobre Teatro (p.72).
23 Cf. Trecho da parte 20 do texto dramatúrgico de Cão Vadio (inédito).