Cerâmica: 500 anos após, segue viva a marca do povo tupiniquim

Cerâmica: 500 anos após, segue viva a marca do povo tupiniquim

Um estudo arqueológico recém concluído mostrou que as índias tupiniquins, autoras tradicionais dos utensílios domésticos da tribo, se apropriaram da cerâmica comum dos invasores portugueses nos anos 1500, transformando-a em obra “sua”, a qual é reproduzida até o presente em áreas do sudeste-sul do Brasil, notadamente nos estados de S.Paulo e Paraná por trabalhadoras não-indígenas. A arqueóloga Marianne Sallum (USP) e o historiador/arqueólogo Francisco Noelli (doutorando na Universidade de Lisboa) publicaram há poucos dias, neste janeiro de 2020, o resultado de sua pesquisa na revista Internacional Journal of Historical Archaeology, sob o título Uma arqueologia do colonialismo e da persistência das práticas das mulheres ceramistas no Brasil: da Tupiniquim para a Paulista.

“(Ao indianizarem o objeto estrangeiro) as mulheres tupiniquim transformaram o ‘outro português’ e sua tecnologia em uma das materialidades coloniais – a cerâmica paulista (referente ao litoral sul de SP e à região nordeste do PR; ver Mapa). Tal fato não significou perda cultural, mas sim persistência de práticas por cinco séculos” – afirmam os dois estudiosos.

Para realizarem sua pesquisa e comporem uma base inicial de dados, Marianne Sallum e Noelli analisaram 3 mil fragmentos e vasilhas semi-inteiras do sítio arqueológico Ruínas do Abarebebê (município de Peruíbe/SP), pertencentes ao acervo do Museu Histórico e Arqueológico daquela cidade e do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (na capital); visitaram 37 museus (em SP, PR, RJ e MS) e analisaram 241 vasilhas (187 tupiniquim e 54 “cerâmica popular de S.Paulo”). Entre as peças estudadas estavam panelas, jarros, potes, pratos e caçarolas.
Os dois estudiosos também iniciaram trabalho etnográfico ouvindo ceramistas em diversas cidades do sudeste-sul, em busca de dados tecnológicos e memórias; realizaram leituras de fontes escritas publicadas e inéditas, quase todas sobre S. Paulo (anos 1500 a 1700); começaram um banco de dados sobre a linguagem da cerâmica e dos seus usos, com registros de SP, PR e Portugal.
Conforme os dois autores, “a cerâmica paulista começou a ser produzida no contexto do colonialismo na Capitania de São Vicente, no século XVI. Os portugueses se estabeleceram ali graças à aliança política com uma parte da população tupiniquim, potencializando interesses estratégicos de ambos.”

PROTAGONISMO INDÍGENA

Explicam os autores que “nosso artigo reflete sobre a persistência, iniciada com a apropriação e transformação da cerâmica portuguesa no século XVI e a sua itinerância até hoje. Muitos trabalhos contemporâneos têm buscado não apenas reconstruir uma história colonial centrada em registros de declínio demográfico, vitimização e perda cultural das populações ameríndias, mas também na sua condição de protagonistas dinâmicas em luta constante por autonomia, o que marcou processos históricos de longo prazo até o presente. Tal mudança de perspectiva tem demandado revisões descolonizadoras da história, mais éticas e menos eurocêntricas.”

Segundo eles, é preciso compreender como as pessoas agiram no processo de contato da sociedade nativa brasílica com os europeus, “não apenas como coprodução relacional da ordem colonial, mas também percebendo o papel das trocas e das alianças entre europeus e indígenas. Entendemos a apropriação tupiniquim como ‘manifestações legítimas de modos específicos de se produzir e utilizar substâncias, matérias-primas e objetos segundo lógicas de classificação e transformação específicas’. Tratamos também da transformação da cerâmica comum portuguesa na cerâmica paulista e da sua reprodução por quase 500 anos, (buscando) uma compreensão descolonizada da aliança indígena e europeia no litoral sul de São Paulo (e nordeste do PR), cujas práticas demonstraram autonomia e a agência (participação) tupiniquim.”

Uma observação muito interessante dos autores foi sobre a inversão de classe social na convivência dos portugueses com os indígenas de S.Paulo, a partir dos anos 1500, com a perda de privilégios dos lusitanos mais ricos e a valorização dos que mais trabalhavam (os mais pobres).”Os portugueses (recém-chegados) formavam um grupo heterogêneo, divididos pela desigualdade social (na Europa) e apenas parte deles integrou-se ao sistema tupiniquim (…) e formou famílias conforme a organização social dos seus aliados indígenas, abrindo mão das suas regras europeias de divisão social e do arranjo familiar monogâmico nos primeiros dois séculos.(…) A desigualdade entre os portugueses não fazia sentido entre os Tupiniquim, sociedade na qual a pessoa valia pela contínua afirmação dos seus conhecimentos, méritos e feitos pessoais. É provável que a maioria (dos lusitanos)saiu da desigualdade encontrando espaço de convivência social, econômica e política que as normas do Reino não lhes proporcionavam. Ao mesmo tempo, protegida entre os indígenas, essa maioria isolou nos dois primeiros séculos a minoria (mais rica)composta por nobres, burocratas e clérigos .”

Conforme Sallum e Noelli, “a prática cerâmica colonial tupiniquim persistiu até o presente como um habitus.” Contudo – observam eles – ainda é difícil rastrear nos escritos antigos, dos anos 1700 em diante, a presença/identidade tupiniquim, “apesar de indícios da sua permanência no sudeste de S. Paulo.” Dizem ambos que isso veio de dificuldades geradas pela burocracia luso-brasileira, especialmente do século 18, que foi regida por uma lei da Era Pombalina (primeiro-ministro Marquês de Pombal,1750-1777), “que diluiu a diversidade das identidades indígenas e fez surgir o ‘índio genérico’ como estratégia da Coroa (Portuguesa) para ‘misturar a população colonial’ (para fazer sumir o desagradável elemento indígena), uma política vigente até o século XX.”

De acordo com os dois pesquisadores, as leis de Pombal provocaram uma espécie de apagamento gradativo das heranças culturais das tribos, além do aumento de preconceitos de classe e de raça. Apesar disso, observam Sallum e Noelli, em meados dos anos 1800 a Língua Geral Paulista ainda era falada em alguns lugares, incluindo a área de Iguape. (OBS: A Língua Geral Paulista foi um idioma misto/crioulo, derivado do tupi-guarani; formado na época bandeirante, anos 1600, foi utilizado em vários pontos do Brasil; hoje está extinto).

BRANCAS HERDEIRAS DE ÍNDIAS

“Entre os Tupiniquim, a produção cerâmica era domínio das mulheres. Em Portugal, a cerâmica é domínio dos homens. E na cerâmica paulista, a produção foi historicamente dominada pelas mulheres e apenas recentemente alguns homens passaram a produzir vasilhas”, informam os autores.

O fato de mulheres não-indígenas (“brancas”) assumirem, no correr dos séculos, a feitura da cerâmica paulista “tupiniquim” não é visto, por Sallum e Noelli, como algo negativo. “Não consideramos que a persistência da prática cerâmica sem (a presença física de) pessoas identificadas como tupiniquim seja um paradoxo ou uma impossibilidade”, afirmam. “Mas (significa) sim o legado de conhecimentos transmitidos entre as gerações nas comunidades de práticas.”

Sallum e Noelli dão uma grande importância ao aspecto da continuidade do fazer ceramista, pois este ocorreu dentro de uma situação cada vez mais desfavorável para os povos nativos. “Diante do impacto do colonialismo, as práticas indígenas demonstram, muitas vezes, processos de continuidade insuspeitáveis e persistências. Compreendê-los permite desestabilizar as narrativas oficiais sobre o colonialismo (…)”.

Dizem que a o assunto exige um olhar descolonizador: “(Essa mudança de visão) demanda a descolonização das abordagens arqueológicas, antropológicas e históricas, inspirada pela reflexão e a ação crítica de indígenas e não indígenas dedicados ao engajamento social e à valoração das comunidades locais na construção do conhecimento.”

Em 2004 foi fundada a Associação de Artesanato e Produtos Caseiros de Iguape/SP, onde é famosa a “panela preta do Jairê” ou “louça preta”. Esta cerâmica confeccionada no bairro do Jairê recebe, após a queima, um tingimento com chá de jacatirão, que a deixa com um apreciado tom escuro e também a impermeabiliza.

Por outro lado, a técnica de montagem da peça dispensa o uso do torno, preferindo-se a prática recebida em herança das índias: o rolete ou cordel. Trata-se de fazer um empilhamento de rolinhos de barro, camada por camada. A mestra mais conhecida de Iguape é Ana Pereira, ou Dona Sinhana do Jairê.

Ceramista Ana Pereira de Jairê (Iguape, SP). Foto de Plácido de Campos Júnior, 1974. Acervo Museu da Imagem e do Som de São Paulo.

Em 2013 foi fundado outro grupo importante em S.Paulo: o Polo Cerâmico do Alto Vale do Ribeira. Mais de 60 artesãos dos municípios de Itaoca, Barra do Chapéu e Apiaí se uniram para formar o Polo.

“A cerâmica tradicional da região do Alto Vale do Ribeira é considerada uma das mais importantes manifestações da cultura popular no Brasil”, diz o grupo em sua página na internet. “Durante séculos, a região permaneceu isolada e à margem do desenvolvimento do resto do estado, preservando suas técnicas ancestrais de artesanato. Produzida com os conhecimentos herdados dos índios guaranis (e tupis), antigos habitantes da região, ainda utilizam a técnica de rolinhos para ‘tecer’ com argila peças utilitárias de formatos únicos.”

 E prossegue: “Hoje, os artesãos se organizam em grupos de produção e fazem desta arte uma importante fonte de renda para suas famílias. Novos fornos, mais eficientes e ecológicos foram erguidos (…) Novos equipamentos como marombas eliminam o trabalho braçal do preparo da argila, que é extraída com responsabilidade, garantindo baixo impacto ambiental e segurança. Com estas mudanças, novas gerações de ceramistas estão surgindo, incluindo homens que agora participam de todas as etapas de produção.”

 No Paraná, a cerâmica é forte na região litorânea e é uma das chamadas “artes caiçaras”. A mestra do barro era dona Senhorinha Romão da Costa. Ela vivia na Ilha de Medeiros, na baia das Laranjeiras, município de Guaraqueçaba. Nasceu em 1920 e nunca saiu da terra natal. A artesã era  considerada uma “chefe”, em função da grande quantidade de louça produzida e da tradição de quatro gerações no fabrico. Ela   fazia  peças utilitárias, usando técnicas aprendidas com a avó, que informava ter sido uma índia tupi-guarani. Dona Senhorinha ensinava também que o fazer cerâmico era sempre condicionado às fases da lua, que têm influência sobre a argila, algo reconhecido pela grande maioria dos ceramistas populares.

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