Um projeto de Emenda Constitucional/PEC e um projeto de Lei/PL em São Paulo instituindo cobranças de mensalidade em universidades públicas, em 2019 e neste ano, respectivamente, sugeririam uma investida de setores que apoiam e defendem essa medida até recorrente na última década no Brasil?
A PEC 206 de 2019 apresentada na Câmara dos Deputados e que teve proponente General Peternelli e como relator Kim Kataguiri, ambos da União Brasil de São Paulo, representou uma nova ofensiva da ortodoxia liberal típica do século XIX e um tanto quanto caduca hoje em muitos países imperialistas, que defende que o Estado não deva ser responsável pela cobertura das necessidades da população, e sim o mercado., com exceção da educação básica. Defende que as universidades públicas devem cobrar mensalidades com isenção para estudantes sem condições financeiras para tal.
A PEC afirma que: “o valor máximo das mensalidades poderia ser a média dos valores cobrados pelas universidades particulares da região e o valor mínimo seria 50% dessa média.
Fica claro, portanto, que o objetivo não é combater a desigualdade social cobrando de quem pode pagar pois as famílias pagam impostos que cobrem, hoje, o financiamento da educação superior no país e a carga tributária é elevada, principalmente para as faixas de renda de até 20 salários-mínimos. Além disso, pesquisa da Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), de 2018, aponta que a maior parte dos estudantes do ensino superior federal é de baixa renda. Na ocasião, 70,2% dos estudantes apresentavam renda per capita mensal familiar de até um salário-mínimo e meio.
Um dos objetivos é garantir o máximo do dinheiro público para os juros da dívida pública e os setores que recebem fartos subsídios do Estado em face da crise crônica e sem saída o capitalismo burocrático. Pois alguém teria dúvida que a cobrança não aportaria recursos adicionais e sim viria substituir o orçamento público no custeio das universidades? Todas as iniciativas anteriores que alocar novos impostos para políticas públicas como a finada CPMF dos anos 2000, o imposto do cheque, não aumentaram o orçamento da saúde nesse caso pois o governo reduziu, proporcionalmente, o gasto através dos impostos correntes.
O outro motivo foi apontado por reitores de universidades públicas: “A mensalidade não seria suficiente para garantir e manter o modelo de universidade que defendemos, com carreira dos servidores em dedicação exclusiva e laboratórios de pesquisa em pleno funcionamento” haja visto que iria cobrar menos do que as universidades privadas. É de fato acabar com a pesquisa feita nas universidades públicas, principal forma que o país pode desenvolver ciência e tecnologia de forma a possuir certa soberania nacional, haja visto, por exemplo, a produção de vacinas contra a COVID que é desenvolvida em laboratórios nas universidades. Mas, para uma semicolonia como o imperialismo exige e nossas classes dominantes alegremente acatam, é preciso ter ciência e tecnologia própria?
A PEC foi retirada de pauta, porém os setores interessados em que vá adiante estão presentes e podem retomar a iniciativa.
Em agosto de 2023 Lucas Bove do PL de São Paulo apresenta PL na Assembleia Legislativa deste estado com teor similar destinado às universidades públicas paulistas e com mensalidades proporcionais à renda. A iniciativa é muito mais política como uma nova investida contra a gratuidade do que terá efeitos práticos, se não for modificada a Constituição que, em seu artigo 206 diz:
“… gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”.
O objetivo de acabar com a universidade pública ficou mais claro no estado do Rio de Janeiro onde esses setores bolso-liberais do Partido Liberal propuseram, através do PL 673/2021, a extinção da UERJ.
Porque tais propostas são recorrentes e os setores que as apoiam não vão recuar? Desde os anos 80, no contexto da ofensiva do imperialismo para tentar debelar sua profunda crise estrutural, o Banco Mundial, como seu braço no financiamento de projetos de infra-estrutura e, posteriormente também políticas nas semicolonias, vem impulsionando uma série de reformas para reduzir o gasto público e desenvolver mercados onde antes estes eram diminutos e a educação superior e saúde foram um dos setores prioritários. O argumento da injustiça social está aí elaborado, mas na verdade não é o alvo. A transformação da universidade pública em organizações voltadas à captação de recursos no mercado, via cobrança e parcerias com empresas para pesquisa e prestação de serviço é o fim último. Tal projeto está em completa contradição com interesses populares, democráticos e nacionais de expandir e facilitar o acesso à educação superior e formar centros de produção de ciência dos monopólios.
Na contramão do que recomendam para as semicolonias, muitos países imperialistas como a Alemanha implantaram educação pública gratuita e em outros como os Estados Unidos, há fortes movimentos sociais em prol da gratuidade.
É importante que os movimentos populares em prol da educação universitária pública como direito e como caminho que permita a constituição de uma ciência e tecnologia nacional a serviço do povo não subestimem o poder de fogo dos setores que defendem a privatização das universidades que tem a universidade pública para o mercado como um caminho. O fato dos setores governistas de hoje se contraporem a esses projetos de lei não significa que se possa confiar que, ao cabo, não se rendam às chantagens do imperialismo e as benesses distribuídas pelos projetos do Banco Mundial. As experiências recentes de privatização de hospitais universitários federais via EBSERH mostram até onde vai a coerência desses setores.