Como comecei a pintar o campo

Li Fenglan pinta seu mural, “Alegre Colheita de Algodão”. Fonte: China Reconstructs.

Como comecei a pintar o campo

Este pequeno artigo da “pintora camponesa” Li Fenglan, publicado originalmente na revista China Reconstructs (A China se Reconstrói) em 1974, captura com singeleza a imensa complexidade do funcionamento das Comunas Populares durante o período socialista da China. 

Temos aqui um retrato vívido da Revolução Chinesa e de seu povo, do estabelecimento do socialismo no campo, do funcionamento das brigadas nas Comunas Populares, da participação das massas na Grande Revolução Cultural Proletária (GRCP); e, mediante estes grandes eventos, das contradições no seio do povo, do prosseguimento da luta de classes no socialismo, da mudança do status social da mulher e, sobretudo, do papel da arte, como reflexo e parte ativa na construção de uma nova sociedade.

O texto inicia afirmando tratar-se a sua autora de uma “camponesa comum”. Li Fenglan, de fato, foi apenas uma entre as dezenas de camponeses de Huhsien que se assumiram pintores, produzindo mais de 40.000 obras em 15 anos; o que resultou na histórica exibição de 179 obras em Pequim, depois em Paris, então circulando pelo mundo. O condado de Huhsien serviu de exemplo a ser generalizado no campo, durante a GRCP, pelo desenvolvimento em alto nível dos chamados “pintores camponeses”: auxiliados por artistas profissionais, os membros da comuna puderam desenvolver suas faculdades mediante e para a construção das Comunas Populares. Huhsien se tornou um grande orgulho para a China Popular, que tomou esse desenvolvimento como prova do infinito potencial das massas, que agora não eram mais constrangidas por velhas relações de produção e amarras ideológicas.

Pois, de fato, o que era um membro da Comuna? Um operário, camponês e soldado, mas também, como averiguamos no artigo de Li Fenglan, um artista, administrador, professor, organizador político das massas… Sem assumir exclusivamente nenhuma dessas funções. O sistema de Comunas Populares e a sua democracia radical é, até hoje, o ponto mais alto da luta pelo comunismo, o mais próximo que a humanidade chegou daquilo que definiram Marx e Engels em A Ideologia Alemã:

“Com efeito, desde o momento em que o trabalho começa a ser repartido, cada indivíduo tem uma esfera de atividade exclusiva que lhe é imposta e da qual não pode sair; é caçador, pescador, pastor ou crítico e não pode deixar de sê-lo se não quiser perder os seus meios de subsistência. Na sociedade comunista, porém, onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade exclusiva, é a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, tudo isto a meu bel prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico”.

Artistas camponeses pintam junto a seus companheiros. Fonte: China Reconstructs.

Justamente por ser a antípoda da mutilação das faculdades humanas que é própria da sociedade de classes, foram as Comunas Populares o principal alvo da restauração capitalista iniciada na China em 1976. Com efeito, os vários grupos de pintores camponeses, em Huhsien e alhures, foram remodelados pela nova classe capitalista, visando a fabricação de arte “folclórica” e estereotipada para distribuição no mercado privado e internacional.

Como comecei a pintar o campo (1974) – Li Fenglan

Sou uma camponesa comum.

Em 1958, comecei a pintar em meu tempo livre. Desde então, já finalizei 300 obras. A pouco tempo atrás, três delas, “A capina da primavera”, “Nossa fábrica de fertilizantes inicia produção” e “Semeando na chuva”; foram apresentadas em Pequim, na Exibição de Pinturas dos Camponeses do Condado de Huhsien, Província de Shensi. Isso me encorajou profundamente.

Antes da libertação, ninguém nem sonharia que uma camponesa como eu poderia trabalhar com arte. Quando eu era pequena, amava desenhar e recortar figuras. Em minha aldeia natal, tínhamos o costume de decorar as janelas com figuras de papel [1] todo Ano Novo. Cada vez que chegava a época do festival de Ano Novo, minha mãe fazia “flores de janela” e, sentada a seu lado, eu aprendia a recortá-las. Algumas vezes eu fazia tudo sozinha – desenhava, recortava e colava nas janelas. Os vizinhos diziam que eu tinha uma mente rápida e mãos espertas.

Mas naquela época, não tive oportunidade de ir à escola. Nossa família era muito pobre. Eu tinha muitos irmãos e irmãs menores. Desde bem pequena, eu já tinha muitas tarefas domésticas. Durante o dia, saía para coletar lenha. Nas tardes, tinha de ajudar minha mãe fiando a linha no tear.

Em 1949, quando veio a libertação, eu já tinha 15 anos. Mas ainda não conseguia ler nem escrever um único caractere. Logo, a aldeia organizou um curso de alfabetização a curto prazo. Foi minha primeira oportunidade de estudar e eu aprendi a ler e escrever.

Em 1958, no início do Grande Salto Adiante na agricultura, nosso condado de Huhsien começou a construção de um reservatório. Para animar a vida cultural e estimular o entusiasmo, o Comitê Partidário do condado estabeleceu um curso de arte amadora nos ambientes de trabalho. Onde os membros da comuna trabalhavam, eles também pintavam.

Quando ouvi que cada comuna tinha sido convocada a nomear um ou dois membros para o curso, imediatamente me inscrevi e o comitê partidário de minha comuna logo aprovou. Foi nessa aula que estudei pela primeira vez as Intervenções do Presidente Mao nos Colóquios de Ienan sobre Literatura e Arte e compreendi porque nós deveríamos pintar para os operários, camponeses e soldados. Durante a construção atarefada do reservatório eu pintei, com a ajuda de artistas profissionais, um pôster chamado “Os heróis encarceram o dragão”, demonstrando o espírito heroico dos membros da comuna, que lutavam para conquistar a natureza. Este foi meu primeiro passo no campo da arte.

Não foi fácil, para uma mulher trabalhadora como eu, me envolver com a criação artística. Eu trabalhava no campo na maior parte do ano e tinha demandas familiares em casa. Eu só conseguia pintar no curto tempo livre que tinha para descanso. Além disso, algumas pessoas conservadoras viam com desconfiança uma mulher da aldeia pintando e faziam comentários frios e sarcásticos. Mas eu pensava nos ensinamentos do Presidente Mao: “Se o socialismo não ocupar a frente rural, o capitalismo certamente irá”. E eu também me lembrava de como, após a libertação, a luta de classes na área da cultura, no campo, continuava intensa. Entre os vários meios que a classe latifundiária deposta ainda usava para corromper o povo, estavam as velhas pinturas, cheias de superstições feudais. Nós tínhamos que lutar contra isso. Era nossa responsabilidade, como camponeses pobres e médios, assumir a área da cultura no campo, e assim nunca permitir que as classes reacionárias nos ordenassem novamente. Eu jurei para mim mesma, “Com o suporte e a orientação do Presidente Mao, nós pintaremos. Nós nunca recuaremos!”. Nesse espírito, já persisto pintando por 16 anos, à despeito de todas as dificuldades.

Li Fenglan pintando junto a suas companheiras camponesas. Fonte: Hsinhua News Agency.

Devido à pouca educação que tive, nunca pude receber qualquer treinamento básico sobre pintura. Às vezes, por mais que me esforçasse, ainda não conseguia pintar o que eu queria. Uma vez, pintei um membro da milícia popular treinando. Quando os jovens a viram, disseram que as figuras eram baixinhas e espremidas como a “cunhada roliça” do antigo conto folclórico. Eu decidi, então, fazer um esforço especial para apreender o básico da pintura, e aprendi a esboçar. Geralmente, tentava me lembrar de cenas da vida, que depois desenhava em casa. Ou, então, levava um caderno de esboços para a roça ou para as reuniões e rabiscava durante as horas livres. Às vezes, enquanto acendia a lenha da fogueira ou cozinhava uma refeição, subitamente pensava em uma cena boa e fazia de pronto um esboço. Com o passar do tempo, as pessoas que acompanhavam meu trabalho começaram a elogiar meu progresso, dizendo, “Agora parece real”. De pouco a pouco, produzi uma boa quantia de figuras de papel, murais, pôsteres, histórias ilustradas e placas de vidro para lanterna [2].

Com o início da Grande Revolução Cultural Proletária, me lancei na luta implacável, usando meu pincel como uma arma. Em murais e placas de lanterna, repudiei, de forma iracunda, a linha revisionista e contrarrevolucionária de Liu Shaoqi. Quando a luta se agudizou, um antigo latifundiário que tinha sido derrubado e alguns outros ovos podres em nossa aldeia começaram a criar problemas secretamente, provocando desavenças entre os membros da comuna, nos colocando uns contra os outros para minar nossa unidade. Eu decidi expor os inimigos de classe através de minhas pinturas. Fiz uma série de pinturas sobre “histórias de família”, mostrando como os camponeses pobres e médios tinham sido explorados e oprimidos por essa mesma escória antes da libertação. Essa série foi exibida em nossa aldeia. Todas as cenas foram como balas, atingindo os inimigos de classe, que começaram a arrefecer. Alguns jovens, que não conseguiram ver com clareza o caráter dos inimigos antes, acordaram após olhar as pinturas. Percebendo o quanto que isso tinha murchado nossos inimigos, muitos camponeses pobres e médios disseram alegremente: “É isso aí, é assim que se lida com eles!”.

Desde a Revolução Cultural, há um espírito renovado em nossa aldeia. O povo às vezes me pede para fazer pinturas sobre novos temas, como Tieh-mei de “A lanterna vermelha”, Yang Tzu-jung de “Tomando a Montanha Tigre estrategicamente” e outros heróis e heroínas das óperas modelo revolucionárias de Pequim [3]. Eu dei aulas de arte amadora na escola primária da aldeia e ajudei a pintar cartazes nos muros de nossas ruas. Me esforcei cada vez mais para mostrar o que representa o novo no nosso campo socialista.

No outono de 1971, tivemos uma colheita de algodão muito boa em nossa comuna de Kuangming. Os botões de algodão floraram como pétalas prateadas. Durante a temporada de colheita, nós mulheres trabalhamos da alvorada ao entardecer. Colhemos algodão nos campos e conduzimos vagões ou puxamos carroças pelas estradas, para entregar e vender algodão para o estado. Por todos os cantos, ouvia-se o som de nossa gargalhada, de nossas canções. Profundamente comovida com esta cena, desejei muito pintá-la. Pulando o jantar e o descanso, numa noite logo após o trabalho, comecei a pintar a “Alegre Colheita de Algodão”. Mas não saiu tão bem da primeira vez – foi só uma figura simples de mulheres colhendo o algodão. Quando outros membros da comuna viram essa primeira versão, disseram: “Fenglan, os botões de algodão parecem bem reais, as mulheres vestem roupas novas, mas onde está o nosso espírito revolucionário?”

Depois de coletar as opiniões de todos, fiz um segundo esboço. Nele, haviam campos de algodão ainda não colhido como plano de fundo, com algumas mulheres colhendo e somente uma linha finalizada. No plano da frente, haviam sete mulheres, cada uma levando um carrinho de mão cheio de algodão recém-colhido. Elas corriam, como se competindo, com um jovem rapaz que dirigia um vagão cheio de algodão. Mesmo que essa versão ainda possuísse limites, todos disseram que estava muito melhor que a anterior. Então, entendi o que tinha errado na primeira tentativa: foi principalmente o fato de que eu não mostrei o ímpeto revolucionário dos membros da comuna na construção do socialismo.

Li Fenglan recebendo opiniões de seus companheiros da Comuna. Fonte: China Reconstructs

Nossa parte da província de Shensi, a área de Kuanchung, é a terra do trigo. Na primavera, quando o trigo invernal fica verde novamente, nós, mulheres, fazemos a capina. O campo é especialmente lindo nesse período. Como se fossem jardins, os campos de trigo, em seu verde tenro, contrastam com os brotos rosados do pêssego em plena floração. Quando eu ia trabalhar nessa época, mal conseguia desviar meu olhar. E eu sempre quis pintar essa cena, para mostrar a beleza em movimento que é o campo socialista, e o quão entusiasticamente nós, mulheres membras da comuna, estávamos o construindo. Então, enquanto eu trabalhava, comecei a observar cuidadosamente as pessoas que também trabalhavam ao meu redor. E durante pausas para descanso, eu as esboçava. Foi através dessa base que eu iniciei, alterei e finalmente produzi “A capina da primavera”. Nela, há 16 pessoas, todas registradas através de meus esboços. A mulher de meia idade com casaco azul, na frente, é tomada nos esboços da dirigente do time feminino de nossa brigada.

Esboços de Li Fenglan para “Colheita de Primavera”. Fonte: China Reconstructs

Eu comecei essa pintura em 1972. E daí até concluir, continuei coletando opiniões e fiz muitas mudanças. A pintura exibida em Pequim, no ano passado, foi a quarta versão. Nessa versão, o retrato das pessoas melhorou um pouco.

Com o apoio do Comitê do Partido em nossa brigada, organizei, com outras quatro jovens moças de nossa aldeia, um grupo de arte amador. O centro cultural do condado costuma mandar artistas profissionais para nos ajudar e nós aprendemos um bocado com eles. Não podemos parar de pintar para os operários, camponeses e soldados. Nosso novo campo socialista tem tanta coisa que precisa ser pintada. Eu estou determinada em perseverar na linha revolucionária do Presidente Mao sobre a arte, e seguir pintando, para melhor expressar a nossa nova era.


Notas:

1 – Diz respeito à tradicional “Arte chinesa do corte de papel” para produção de figuras.

2 – Diz respeito à lanterna mágica, aparelho de reprodução em escala ampliada de imagens produzidas em placas de vidro.

3 – Peças de teatro com conteúdo revolucionário produzidas durante a GRCP.


Abaixo, uma galeria de algumas das obras mais famosas da Exibição de Pinturas dos Camponeses do Condado de Huhsien, Província de Shensi; todas disponíveis em alta qualidade para download.

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