Como era de se esperar a Covid-19 começa a se espalhar pelas favelas do país, levando medo e sofrimento a camada mais pobre da população. A periferia de São Paulo, município com o maior número de infectados, já ultrapassou outras regiões da cidade em número de óbitos, e como essa realidade se repete em todos estados, a tendência é que essa perversa estatística aumente nas próximas semanas.
Segundo o Painel de Atualização de Coronavírus nas Favelas do Rio de Janeiro, até o dia 23 de abril foram confirmados 134 casos e 18 mortes nas favelas cariocas. Esse número pode parecer pequeno diante dos 530 óbitos ocorridos no estado até essa data, mas se levarmos em consideração a subnotificação dos casos no país, somente os pacientes mais graves, e que conseguem chegar aos hospitais, são testados, esse número certamente é bem maior. De acordo com a Covid-19 Brasil, iniciativa independente que reúne cientistas e estudantes das maiores universidades brasileiras, o número de infectados no país seria 12 vezes maior do que o informado pelo governo, e desde o início da pandemia 2.771 pessoas morreram por alguma síndrome respiratória não identificada.
Um dos principais problemas para se combater o Coronavírus nas favelas diz respeito a própria natureza dessas localidades, cujas condições sanitárias desumanas são um dos exemplos da perversidade com que os pobres sempre foram tratados pelos mais variados governos no Brasil. Devido a sua configuração socioespacial os moradores das favelas sempre foram vítimas das mais diversas doenças respiratórias, a maioria não possui acesso a água potável, e em muitas casas famílias inteiras são obrigadas a viver em pequenos cômodos, o que dificulta a tomada de ações básicas de prevenção e isolamento.
Em entrevista ao jornal O Globo, o fundador do Painel Covid-19 nas favelas, Renê Silva, disse que somente com a testagem em massa poderemos chegar a um numero aproximado de infectados: “Nosso grande desafio é que, dentro dessas favelas, já temos muitos casos suspeitos, mas poucas pessoas testadas. Aqui no Complexo do Alemão, a gente tem mais de mil casos suspeitos e só tem confirmados pelo painel da prefeitura umas quatro pessoas com Covid-19, porque não está tendo teste em massa”.
Lutando contra a fome
Principais vítimas do modelo de exploração capitalista que aumenta diariamente a miséria da população num dos países mais desiguais do mundo, os moradores das favelas brasileiras, além de tentarem se proteger da pandemia, precisam correr diariamente atrás do próprio sustento. E como praticamente todos vivem da informalidade, ou em subempregos, as políticas de isolamento, necessárias no combate da pandemia, atingem diretamente o seu cotidiano.
De acordo com a pesquisa realizada no início de abril pelo Instituto Locomotiva, em parceria com o Data Favela, 60% dos moradores das favelas não possuem recursos financeiros para se sustentar por mais de uma semana, sem que precisem de algum auxílio, ou de retornar ao trabalho.
Para tentar atenuar essa situação os próprios moradores começam a se mobilizar para levantar doações a quem mais precisa. No Complexo da Maré, no Rio, a Frente de Mobilização lançou a “Vakinha Maré contra o Coronavírus”, que visa arrecadar dinheiro para compra de cestas básicas, botijões de gás e galões de água mineral para os moradores. Além disso, eles fazem uma intensa campanha de prevenção nas mídias sociais, alertando os moradores para o uso de máscaras e outras ações de prevenção. Quem também está fazendo uma campanha de conscientização é a Central Única das Favelas (Cufa), com depoimentos, lives e músicas explicando como se prevenir. Eles também criaram o projeto “Mães da Favela”, que destinará R$ 120 por dois meses a 20 mil mulheres chefes de família em favelas de todo país. O fundador da Cufa, Celso Athayde, explicou como surgiu essa ideia.
“A Cufa já entregou mais 100 toneladas de alimentos em todo o Brasil. Durante essa entrega, suas lideranças e voluntários ouviram que muitas mulheres precisavam de auxílio para comprar não só alimentos, mas também remédios e gás. Logo, a organização decidiu ajudar financeiramente para que possam escolher os itens que precisam”. A escolha das mães que receberão o benefício ficou a cargo das lideranças da Cufa nos estados, que identificaram aquelas que precisavam mais do auxílio. Além de ajudar essas mães a colocar comida na mesa, esse dinheiro, por mais simbólico que seja, também contribui para movimentar o combalido comércio local.
Quem também cansou de esperar a ajuda do governo foram os jovens da Agência Popular Solano Trindade, do Campo Limpo, zona sul da capital paulista, uma incubadora de jovens da periferia que utilizam a tecnologia para criar projetos de geração de renda em seus bairros. Eles já arrecadaram mais de R$ 120 mil para ajudar 133 famílias das regiões periféricas da zona sul de São Paulo, e Grande São Paulo, em alta vulnerabilidade social por 4 meses. A ajuda será através de uma cesta básica contendo 15 itens, um vale gás de R$ 90 mensais, kit de higiene e uma cesta mensal de frutas, verduras e legumes orgânicos.
Em Paraisópolis, uma das maiores favelas de São Paulo, e onde no final do ano passado uma ação terrorista dos jagunços da polícia militar do governador João Doria terminou com a morte de nove jovens, conforme publicou AND, a população também está unida no combate ao coronavírus. Líderes comunitários conseguiram reservar duas escolas públicas para acolher pacientes que tenham os sintomas leves da Covid-19, para que fiquem isolados pelo tempo necessário, e não transmitam o vírus a outros parentes, principalmente idosos. Ao todo, 500 vagas, com cama, chuveiros e produtos de higiene pessoal serão oferecidos nas escolas
50 milhões abaixo da linha da pobreza
Essas e tantas outras ações são extremamente louváveis, mas demonstram como o modelo econômico adotado no país serviu apenas para acentuar a miséria e a concentração de renda. Atualmente, 50 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza, e 13 milhões estão entregues a própria sorte nas favelas. Nenhum governo, nenhuma ação, nenhuma revolução terá sucesso se não quebrar esse modelo que tanto oprime, explora, e mantém a nossa submissão. Mas no horizonte político tupiniquim o oportunismo se curva ao fascismo histórico, por isso somente a resistência popular poderá dar essa resposta.
Ruas da do Complexo da Maré. Foto: Douglas Lopes