Coronelismo Pop

Reproduzimos uma nova colaboração de Fátima Siliansky, professora da UFRJ, presidente do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos (Cebraspo) e colaboradora de AND.
Artigo de Fátima Siliansky trata do coronelismo na área da Saúde. Foto: Banco de Dados AND

Coronelismo Pop

Reproduzimos uma nova colaboração de Fátima Siliansky, professora da UFRJ, presidente do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos (Cebraspo) e colaboradora de AND.

Pode ser em qualquer cidade do país, saúde, educação, assistência social.

Há um senso comum nas análises da sociedade brasileira que o coronelismo é um fenômeno datado especialmente na República Velha (1889-1930) e representa um sistema relacional de vantagens mútuas entre o poder local, os prefeitos e os governadores para manter poder político na base do aparelhamento das instituições públicas, do voto de cabresto, com vistas a perpetuação de vantagens econômicas. José Murilo de Carvalho considera o mandonismo local um conceito mais abrangente do qual o coronelismo seria um caso, e estreitamente vinculado à exploração de uma vantagem econômica, em geral o monopólio da terra, mas não somente. O clientelismo também faria parte do grande guarda-chuva da dominação personalizada que tem como outro pólo a cidadania republicana baseada em direitos universais assegurados pelo Estado democrático de direito.  Aparatos privados e públicos (pois o público e o privado estão interligados em zonas cinzentas) de coerção, manipulados por mandões asseguram a reprodução desse sistema de dominação. Semifeudalidade clara embora isso agrida certos ouvidos que consideram que o capitalismo chegou no Brasil com as caravelas. O senso comum popular chama todos esses sujeitos de coronel seja ele/as um/a matuto/a bronco/a, seja um/a fazendeiro/a arrumadinho/a com escritório em São Paulo, seja ele/a uma figura urbana com figurino de Chicago com todas as modas do gerencialismo moderno dentro de sua pasta comprada na Victor Hugo. O coronelismo é estudado em muitas áreas de campo na atualidade como a dominação política baseada no monopólio da terra em que se reproduz políticas do imperialismo em diversos setores como saúde e educação, usando como antes, o aparelho de Estado para manter vantagens econômicas, votos de cabresto e tentar disciplinar seus adversários, principalmente a luta camponesa que cresce. 

A Constituição de 1988 foi a resposta que as classes dominantes deram às grandes mobilizações de massa da década precedente e o risco que a derrubada do regime militar ocorresse como revolução popular. Muito prometeu, pouco garantiu seu cumprimento. Prometeu um Estado impessoal e meritocrático, prometeu direitos de cidadania universais, inclusive de saúde. Prometeu, no SUS, uma participação igualitária da população organizada nas decisões em Conselhos e Conferências. Mas não rompeu as bases materiais que alimentam o sistema de dominação do latifúndio e da grande burguesia.

Seis anos depois da Constituição a reforma do Estado de Bresser Pereira mina a impessoalidade e meritocracia da Constituição. A Lei das Organizações Sociais de 1998 aprofunda a privatização da gestão do SUS que segue com os demais modelos privados de gestão como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. Os grupos de poder brasileiros que sempre usaram o Estado para promover seus interesses econômicos (e saúde tem muito dinheiro e emprego envolvido) não iriam resistir? Não tem ideologias, tem interesses, um dia é o genérico do Bolsonaro, outro dia é o genérico do Lula.

A crise do imperialismo abriu espaço para teorias que endeusam o lucro e a competição como promotoras de mais eficiência (na verdade, mais exploração do trabalho, aumento da taxa de mais valia para tentar enfrentar a redução da taxa de lucro). Isso foi transplantado para o serviço público como forma de viabilizar os modelos privados de gestão e reduzir gastos com trabalho para sobre recursos públicos para injetar nos circuitos financeiros e subsídios aos monopólios. O gerencialismo, teoria moderna, se implanta mesmo em áreas completamente estatais, com suas metas de produtividade, estimula a competição no local de trabalho. Mas nas OSS e outros modelos privados é a tônica e a constante ameaça de demissão, seu instrumento mais potente. O assédio moral é estrutural. O privado permite o retorno de todas as práticas do coronelismo: uso dos serviços de saúde de forma clientelística, nepotismo, coerção para os trabalhadores apoiarem política e eleitoralmente os mandões. Da mesma forma que no campo, o coronelismo é um sistema de dominação, são grupos de poder que exploram monopólios como territórios num misto de meios, em última análise de coerção e cooptação públicos e privados, e uma hierarquia de cargos.

Era uma vez um/a coronel/a pop, com o gerencialismo debaixo do braço, a última moda da modernidade gestada nos países imperialistas. Não é o/a principal do grupo, um/a coronelinho/a talvez. Para implementar sua política agressiva de destruição da máquina que era estatal, dois instrumentos: privatização através de OSS e empresas públicas, assédio moral sobre os servidores estatutários. Interferência sobre os Conselhos: periferias pobres dominadas por grupos paramilitares (e todas suas articulações com o poder público) aplicam a intimidação sobre conselheiros independentes. Medo. 

A expansão das OSs abre uma enorme oportunidade de fazer clientelas políticas. Quando o Parlamento se torna uma meta: o uso claro da máquina púbica para se eleger: constrangimentos aos trabalhadores das OSs para fazer sua campanha, pedir doações financeiras, assistencialismo no uso dos serviços públicos, manipulação dos usuários inseridos em programas de promoção (por exemplo, em programas de exercícios físicos) para sua promoção pessoal. Intimidação clara de quem empunha direitos à independência de opinião: a porta da rua. 

Ambientes de trabalho tóxicos: o que importa é parecer estar funcionando, parecer estar atendendo pois isso é voto, cumprir metas pois significam mais recursos do governo federal mas perde-se qualidade, continuidade do cuidado. Há que trabalhar em qualquer condição de infraestrutura física sem reclamos: impressoras inexistentes ou que não funcionam, ar condicionado que não funciona em estruturas de lata, uma burocracia absurda para viabilizar controles e economizar em pessoal administrativo.  Vamos abrir justamente as portas dos serviços até as 22 horas?: mas não vamos aumentar as equipes. Sobrecarga de trabalho. 

O assédio que antes era sobre o servidor atinge os celetistas, para que se enquadrem na ordem do/a coronel/a pop. Trabalhador que exercer seus direitos de opinar em Conferências de Saúde apresentando problemas para serem priorizados vão no dia seguinte para a rua. Vigilância sobre redes pessoais privadas dos trabalhadores. Quem postar coisas inconvenientes é chamado atenção. Quer se organizar em sindicatos para exigir melhorias das condições de trabalho? De jeito nenhum, coronel/a pop recorda seus antepassados que andavam de chicote!

Coronel/a pop vai longe dentro dos marcos dessa Ordem, ungido por cada grupo que gerencia o estado federal pois querem alianças eleitorais. E os direitos do povo, trabalho digno, participação social, são meras peças de enfeite. 

Pode ser em qualquer cidade do país, cidade do país, saúde, educação, assistência social.

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