Crítica ensaística: o futuro é vermelho, pintura de Antonio Kuschnir

Crítica ensaística: o futuro é vermelho, pintura de Antonio Kuschnir

        

Obra O Futuro é Vermelho, Antonio Kuschnir.

O Sol de Kuschnir e o otimismo revolucionário

O céu de Kuschnir é um branco tosco, apático. A paisagem de Kuschnir é indiferenciada, disforme, sem contorno, um borrão. Estamos no campo do impressionismo, da percepção imediata, subjetiva: trata-se do campo do presente.

No centro da pintura, detrás das colinas, um círculo vermelho, rígido, desponta. O sol de Kuschnir é claro e bem delimitado: sua forma está assegurada pelo matiz que implica no branco um gradiente rosado; ou seja, sua existência transforma o branco absoluto gerando um contorno para si. Mais importante, o sol de Kuschnir carrega inteiramente inscrito em sua circunferência, tal qual um óvulo fecundo, a imagem mais clara, sólida, firmemente contornada, o centro focal da composição: uma marcha humana composta de pequenos corpos erguendo pequenas bandeiras.

Porém, apesar da clareza, a marcha está forçada à distância; conforma-se ainda apenas como um contorno; um teatro de sombras chinês, impresso contra o fundo vermelho. Não sabemos se a marcha está de frente ou de costas, o que está escrito nas bandeiras, está indiferenciada em seus elementos internos. Pois se trata apenas dum conceito, ainda não se conformou, é zigoto, é processo: trata-se do campo do “futuro”.

Vejo o tempo que passou montando o tempo que passa e já respirando a fumaça do tempo que não chegou

Siba, Tempo II

Porque o que aqui existe de imediato (presente) é nebuloso e o que ainda se anuncia (“futuro”) é claro? O que essa inversão, que reflete o título da obra, quer dizer? Não se trata de cartomancia, mas de compreender que o que desponta, da forma como desponta, desponta por uma necessidade. O futuro não existe, pois por conceito precisa ser o que existirá; mas a necessidade já existe, o antecipa, e em determinado momento é ela que nos ilumina.

Imaginemos por um segundo a composição de Kuschnir sem os elementos aos quais atribuímos o “futuro” – i.e., o sol e a marcha. Do que se trata essa imagem? Serão as espumas brancas de um mar lançando-se contra a areia da praia? Será uma tinta branca e pastosa que lentamente escorre pelo quadro a caminho de ocupá-lo por completo? Somente auxiliados pelo campo do “futuro”, esse círculo com esses pequenos corpos e bandeiras, é que podemos identificar o que estamos vendo: o elemento superior é um céu e o inferior é uma paisagem.

É o “futuro”, portanto, que clarifica o que é o “presente” e, portanto, a imagem completase; apesar de que essa paisagem ainda seja a impressão de qualquer paisagem, e esse céu seja a impressão de qualquer céu. A impressão imediata só nos reflete a contingência. Mas como Engels diz em sua carta a Borgius, a contingência é a forma de manifestação e complemento da necessidade. Do centro da contingência emerge a necessidade, como o sol que nasce.

O campo do “futuro” aqui disposto nada mais é do que a necessidade que desponta, das leis internas de desenvolvimento do que hoje existe; é o sol nascente. Permitir que a compreensão dessas necessidades sirva à nossa leitura do presente é o que chamamos de otimismo revolucionário.

O período que vivemos, entre revoluções, é particularmente cruel conosco. Por um lado, há quem se permita absorver pelo discurso de fim da história, pelo pessimismo cético e niilista; por outro, há quem tenta negá-lo com um otimismo utópico e a histórico, um “imaginar”, um “sonhar” que por excelência evita discutir as bases de sua materialização.

Da frase “o futuro é vermelho”, o primeiro nega “o futuro”, o segundo nega o “é” – o primeiro nega a transformação, nós a afirmamos, por sermos dialéticos; o segundo nega a necessidade, nós a afirmamos, por sermos materialistas. Nós afirmamos, portanto, com a frase inteira: o futuro é vermelho; i.e., afirmamos o “futuro”, aquilo que desponta, como algo que é. Note que não se usa “pode ser”, “deve ser”, nem ao menos “será”. É. Porque as contradições existentes na sociedade hoje já anunciam sua necessidade de despontar. O otimismo revolucionário é o mais radical; não por desejar o devir dum futuro possível, mas por sua capacidade de compreender as contradições de hoje. Sem sermos iluminados pelo sol da necessidade, do futuro que já é, permanecemos na névoa e no borrão.

Se a natureza tivesse consciência, também iria da juventude à maturidade; Mas o mundo do Homem muda, e o mar de ontem hoje é um campo de amoras.

Mao Zedong, A tomada de Nanquim pelo Exército Popular de Libertação

Sob a névoa da incerteza podemos vagar perdidos. Ter otimismo revolucionário é apertar um pouco a vista e tentar ver além dos disformes morros que sustentam o horizonte nas costas. Veja! Algo aparenta dirigir-se a nós quando o fazemos, mesmo que se trate só de um conceito. Walter Benjamin refere-se à história como um anjo que olha fixamente ao passado enquanto é “impelido irresistivelmente” ao futuro. Mas em algum momento precisamos virar o rosto e encarar aquilo que desponta nos seus olhos, justamente para que não renunciemos a um “conceito de presente que não é transição, mas para no tempo e se imobiliza”.

E, se nos afastamos das pequenas cabeças e bandeiras e das rápidas pinceladas matissianas, vemos uma outra imagem na composição de Kuschnir: um gigantesco olho de íris vermelha, esclera branca e pálpebras murchas, todo-abrangente, que encara de volta quem ousa espiar o horizonte. Olho que é “janela da alma” da história; cujo olhar não retribui curiosidade, mas demanda que respondamos às necessidades descobertas além do horizonte. É a necessidade daquilo que desponta que nos ensina a transformar o que já existe, assim como é o que já existe a condição necessária para que o novo emerja.

Assim é que, o campo do “futuro”, nascendo como o sol, ilumina o mundo mistificado que é. Mas enquanto o sol propriamente dito permanecerá nascendo por bilhões de anos até morrer numa supernova; o mundo dos homens se transforma constantemente. O sol de Kuschnir, portanto, está em perpétua aurora; o movimento é absoluto. Olhar aquilo que desponta nos olhos nos anuncia da responsabilidade em corresponder com seu nascimento.


Antonio Kuschnir é um artista carioca que já teve seu trabalho reconhecido no AND em outras ocasiões como: Liga dos Camponeses Pobres é novamente retratada em pintura de Antônio Kuschnir. O artista está realizando uma exposição individual na Galeria B_arco em São Paulo até o 31/01/21, na exposição “Choro”, curada por Victor Valery. Kuschnir, apesar de bastante jovem, possui um olhar estético bastante apurado e vem desenvolvendo um trabalho inspirador, especialmente para os artistas que representam preocupações democráticas e revolucionárias em seu trabalho.

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