Crônica: Entre prateleiras

Foto: Tom Werner / Getty Images

Crônica: Entre prateleiras

Ela decidiu que iria enfrentar a sexta-feira com empenho e bom-humor. Iria ao supermercado fazer as compras do mês sabendo, de antemão, que voltaria para casa apenas com um-terço do planejado. Sua cota mensal não lhe daria nenhuma alegria e alívio. Iogurte, chocolate e azeite de oliva, nem pensar.


Maria é uma dona de casa a pulso. E uma cozinheira incrível: queima até água. Foi o que informou à sua vizinha de fila para o caixa, Laura. Ela lhe disse que não gosta de ir às compras nas sextas porque parece que todos têm a mesma ideia. Reclamaram ambas da artrose, dos preços e do tamanho da fila, e comentaram as últimas notícias. A vizinha tem uma prima que mora na Venezuela e lhe enviou mensagem dizendo que o país está caótico. Lojas fechadas, supermercados de prateleiras vazias, tumulto nas ruas, inúmeros presos e mortos também. Comentaram sobre as perdas dos líderes palestinos, mas, principalmente, dos assassinatos das crianças. Laura parece não ver saída para nenhum dos países. E acha que, no Oriente Médio, o Hamas começou tudo, ano passado.


Foi quando a moça atrás de Maria entrou no assunto: “O Hamas é o povo palestino em armas. Foi eleito pelos palestinos para liderar e acabar com uma invasão e exploração de quase 80 anos, dar um fim à ocupação e opressão coloniais”. Laura divergiu e começaram a discutir. “Política e religião não merecem discussão”, pontuou um senhor de óculos. “E a Ucrânia?”, perguntou Maria. “O que acham?”. A discussão se tornou mais animada. “E o nosso país?” continuou ela.


Houve uma certa confusão em relação à Ucrania que uns achavam que era país africano. A jovem explicou sua localização e que sofria uma guerra de agressão pela Rússia. O senhor de óculos foi peremptório: “Não gosto de política, mas no governo passado os preços estavam menos salgados e a gente vivia melhor”. Entrou em rota de colisão com a moça que discordou frontalmente e foi chamada de “rebelde sem causa”. E, por sua vez, chamou o senhor de óculos de ‘bolsonarista anti-povo’. Houve um certo mal-estar, vozes alteradas.


No caixa um casal discutia com a funcionária sobre o preço marcado. O encarregado foi convocado para resolver a questão. O senhor de óculos e a moça ainda debatiam seus pontos de vista. A voz da jovem se sobressaia: “A Palestina está firme e forte em seus propósitos. O Hamas é uma ideologia e nunca será destruído. Os sionistas é que são os terroristas. E genocidas”. O senhor de óculos argumentou que Israel tinha o apoio dos EUA. Ao que ela rebateu: “Sim, têm, até o momento em que não for mais do interesse dos ianques. Então os sionistas estarão perdidos e mal pagos”.


Laura tirou dois itens da cesta: “Não vou levar desta vez, semana que vem é melhor”. E implicou com o preparo de bolo que Maria havia escolhido: “A outra marca é mais em conta. E rende o dobro”.


Chegou finalmente a vez de Maria ir ao caixa. Na hora de pagar as contas viu que não tinha o suficiente em espécie. E havia esquecido em casa o cartão do banco.

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