Crônica: Um bairro livre de dogmas

Renoir (1880).

Crônica: Um bairro livre de dogmas

Era uma vez um bairro recém emancipado e livre de dogmas. Os que nele moravam gabavam-se, cheios de pompa, de terem se libertado em definitivo dos maus hábitos e truculência dos rudes e incultos.

Logo de manhã, um bêbado apodrecia na sarjeta da esquina. Era um homem de meia idade que, por alguma razão, vestia puídas roupas de adolescente; ele caçoava, zombava e importunava os que se dirigiam ao trabalho. Cheirava a suor, álcool, cigarro… gesticulava e falava com pressa e nervosismo.

Um jovem operário cruzou a esquina e foi puxado pela barra da calça pelo bebum. Ao repreender o homem, o jovem ouviu:

— Por que me repreende rapaz? A vida é contradição e não unanimidade! Sente-se aqui que vou te mostrar como, por uma lógica simples, ficar comigo na sarjeta é bem melhor que ir trabalhar feito um tolo!

O jovem operário repeliu o bebum, atirando-o de volta à sarjeta e seguindo seu rumo sem dar ouvidos a quaisquer argumentos. Estranhamente, alguns moradores do bairro tomaram aquilo como uma vitória do bêbado e uma injustiça por parte do jovem.

Veja só, ele não teve como argumentar contra nós!, afirmou uma mulher simpática ao bebum.

Alguns dias se passaram e o mesmo jovem caminhava na mesma rua, desconhecendo o que se passava exatamente no bairro… No seu máximo momento de distração, fora golpeado na nuca por um ladrão, que roubou seus pertences. A rua, porém, estava mais movimentada que o normal aquele dia.

Ao perceber que estava cercado pela população, o ladrão, atônito que estava, observou bem ao redor para ver se encontrava moradores do bairro, pois só eles poderiam salvá-lo do linchamento público.

A teoria é cinza e verde é a árvore da vida! Abaixo os dogmas e a truculência!, gritou o ladrão, para ver que surgia alguém em seu socorro.

A população se olhou por alguns instantes, sem entender do que se tratavam aquelas palavras específicas após o evidente cometimento de um crime.

Eis que surgiu novamente o mesmo bêbado, reconhecida liderança do bairro, e sua charmosa e sedutora comitiva.

Ao perceberem que o operário se recompunha, levantando-se do chão para revidar ao golpe do ladrão, imediatamente intervieram, convencendo alguns incautos de que aquele operário era mau e o ladrão estava apenas exercendo seu justo direito de divergir roubando-o e golpeando-o na nuca.

Um ótimo trato das divergências. Obrigado pela compreensão, pessoal!, agradeceu ao público o ladrão, que conseguira se safar impune.

O ladrão reclamou ainda da truculência do operário, que foi embora indignado…

E assim seguia a vida no bairro, finalmente liberado de imposições e onde não havia espaço aos dogmas. Tudo desabroxava e fluía livremente: pensamento, método e ação…

Os habitantes, satisfeitos, podiam combinar vontade e, vez em quando, necessidade. Estava perfeito e eram felizes como nunca.

Meses depois, o bêbado, o ladrão e seus séquitos, convencidos por tanta auto emulação e atribuição de virtudes higiênicas, esqueceram que o mundo ainda pertencia, no final das contas, àqueles que eles tratavam por bestas truculentas.

E assim resolveram viajar a uma cidade vizinha, a fim de levar até lá suas mais novas elaborações.

Uma pena… Os desavisados não sabiam que, naquela cidade e, cada vez mais por toda a parte, reinavam os malditos dogmas e a quimera da truculência!

Um triste fim pro bêbado, pro ladrão e demais moradores do bairro.

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