Da Nakba à Naksa

Parece estranho que palestinos comemorem datas históricas mais tristes como o 15 de maio, Nakba, e 5 de junho, Naksa, o "dia do revés".

Da Nakba à Naksa

Parece estranho que palestinos comemorem datas históricas mais tristes como o 15 de maio, Nakba, e 5 de junho, Naksa, o "dia do revés".

A palavra “comemorar” sempre parece trazer uma conotação positiva. Comemoramos aniversários, o ano novo, os inúmeros feriados. Comemorações costumam ser felizes, festivas. Por isso pode soar estranho ao dizemos que, palestinos, comemoramos as datas históricas mais tristes da Palestina. Tal é o dia 15 de maio, o dia da Nakba, a Grande Catástrofe do povo palestino. Tal é o dia de hoje, 5 de junho, o dia da Naksa (يوم النكسة), o “dia do revés”.

Pela manhã deste mesmo dia, em 1967, após tensões crescentes fomentadas por sionistas oportunistas e governantes árabes irresponsáveis, o Estado Sionista de Israel obliterou (ou quase) as forças aéreas egípcia, síria, jordaniana e iraquiana. Invadiu a Península do Sinai e a Faixa de Gaza por completo. Israel tomou por completo a Cisjordânia, que era administrada pela Jordânia à época, onde palestinos gozavam de plenos direitos como cidadãos jordanianos, ainda que não tivessem seu Estado próprio. E, por fim, Israel tomou as Colinas de Golã, ao sudoeste da Síria.

A antecipação desta guerra havia sido grande. A Guerra dos Seis Dias, como ficou conhecida, pode ter durado somente seis dias oficialmente. Mas suas causas remontam a, pelo menos, 1948, e suas repercussões duram até hoje.

Egito: Nasser repete um gambito

Em 1956 o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser nacionalizou o Canal de Suez, retirando o controle do imperialismo franco-britânico do canal. Nasser apresentava-se como um nacionalista árabe e buscava mostrar-se como um grande líder panarabista contra as nações imperialistas. Devido à sua decisão de estatizar o Canal de Suez, Israel, França e Grã-Bretanha invadiram a Península do Sinai, no que ficou conhecido como a Crise de Suez. Após repetidos vetos franceses e britânicos a resoluções do Conselho de Segurança da ONU, a primeira Sessão Emergencial Especial da Assembleia Geral da ONU foi convocada. Esta sessão poderia ser convocada caso os membros do Conselho de Segurança não consigam chegar a um consenso para o estabelecimento da ordem. Com esta Sessão, foi aprovada a Resolução 997 que obrigou franceses e britânicos a saírem da Península do Sinai. Os israelenses, entretanto, não acataram à Resolução, e encaravam a invasão ilegal ao Sinai como uma grandiosa vitória militar histórica. Somente em março de 1957 os invasores sionistas deixaram o Sinai, destruindo e literalmente roubando tudo que achavam pelo caminho de volta à Palestina Ocupada.

Depois da Crise de Suez, Nasser adotou o que o historiador nascido em Israel, Ilan Pappé, chama de “diplomacia de risco” (1 p. 122). Em 1960, enviou tropas à Península do Sinai, mas foi imediatamente ordenado a retirá-las pelo Secretário-geral da ONU. Na ocasião, Israel agiu com certa prudência e apenas convocou suas forças de reserva, deixando claro que não tinha interesse em uma guerra. O conflito foi evitado por pouco, em parte graças à – talvez surpreendente – calma do primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion. Em 1967, porém, o secretário-geral da ONU (não o mesmo de 1960) não foi tão firme, e retirou as tropas expedicionárias do Sinai, deixando a península sob controle total egípcio pela primeira vez desde 1956. Os gambitos repetidos de Nasser, entretanto, não eram somente provocações inconsequentes. O Egito havia acabado de ser invadido pelo imperialismo europeu e Israel em 1956, e em abril de 1967 (dois meses antes da Guerra dos Seis Dias estourar), Israel havia lançado um ataque contra a Síria que, como lembra Ilan Pappé, tinha como objetivo “humilhar a Síria” (1 p. 127), nas palavras do chefe das forças armadas e futuro primeiro-ministro e (pasmem) ganhador do Prêmio Nobel da Paz, em 1994, Yitzhak Rabin. A entrada de tropas egípcias no Sinai em 1967, portanto, se tratava de uma resposta às constantes provocações sionistas contra a Síria, que mantinha laços fortes com o Egito, sobretudo desde os anos 1950.

O primeiro-ministro de Israel em 1967 já não era Ben-Gurion, que, como descreve Ilan Pappé, não desejava incorporar a Faixa de Gaza e a Cisjordânia a Israel – não, pelo menos, com palestinos vivendo lá, abertamente advogando pela limpeza étnica da Palestina – pois não desejava incorporar os quase 2 milhões de árabes palestinos ao projeto colonial supremacista que era o Estado Sionista (1 p. 125). Afinal, um etnoestado não tem possibilidade de ser, se não for um Estado cuja realidade demográfica é uma maioria étnica vivendo nele. Pappé escreve que, apesar de ter respeitado o acordo de 1948 com a Jordânia de não anexar a Cisjordânia, Ben-Gurion descrevia o fato como um “erro fatal histórico” (בכיה לדורות – bechiya ledorot) que seria lamentado pelas futuras gerações (1 p. 119). Dessa forma, o desejo de anexar o restante do território da Palestina Histórica existia, o desejo da obtenção de um “Grande Israel”. Mas a “realpolitik” – ainda que baseada em racismo e supremacismo puros – de Ben-Gurion impediam que algo fosse feito para tal. As ações bravateiras de Nasser serviriam como causus belli perfeito.

O historiador estadunidense-palestino Rashid Khalidi, entretanto, explica que o Secretário de Defesa ianque Robert McNamara e o presidente dos USA Lyndon B. Johnson já haviam recebido inteligência de que os países árabes (Egito e Síria, principalmente) não iriam atacar Israel, e de que, mesmo que o fizessem, Israel obteria uma vitória esmagadora (como obteve). Nesse contexto, o chefe do Mossad (serviço secreto sionista) Meir Amit se reuniu com McNamara em 1º de junho e, essencialmente, pediu o sinal verde para lançar os ataques de junho de 1967. As autoridades israelenses acreditavam que venceriam a guerra em 4 dias, e os ianques supunham que o conflito duraria uma semana. E esta foi a única questão que McNamara quis saber antes de chancelar a invasão sionista ao Egito. Tal aval foi dado, e 4 dias depois Israel lançou sua ofensiva surpresa contra os países vizinhos. (2 p. 143)

Com a bênção e proteção ianques

Em menos de três dias, o exército sionista já havia obtido uma vitória retumbante contra os egípcios e chegara ao Canal de Suez. Até 7 de junho, Israel expulsou todas as forças jordanianas de Jerusalém Oriental e, em 9 de junho, da Cisjordânia como um todo, implantando uma ocupação militar à região. Entre 9 e 11 de junho, Israel lançou sua ofensiva à Síria e ocupou as Colinas de Golã. Esta última ação, como explica Pappé, estava em dúvida até o dia 7 de junho, “mas o sucesso espantoso nos outros fronts persuadiu os políticos a permitirem que o exército ocupasse as Colinas”. (1 p. 128)

Sobre os dias que antecederam à guerra, Ilan Pappé diz que “os USA empreendiam um esforço diplomático que ainda estava em suas etapas iniciais quando Israel desferiu seus ataques”, e que Israel não esperou pois “o gabinete israelense não tinha a intenção de fornecer o tempo necessário aos negociantes de paz”. (1 p. 127) Rashid Khalidi, entretanto, reconta as memórias do embaixador da Jordânia, Muhammad el-Farra, que dizia que o governo ianque havia sido completamente dissimulado e traiçoeiro, afirmando aos embaixadores árabes que os USA estariam “mediando com Israel para desarmar a crise” e “os exortava a aconselhar moderação aos seus governos”. El-Farra conta, porém, que os USA já haviam dado luz verde a Israel (na reunião de Meir Amit e Robert McNamara), e que poucas horas antes do vice-presidente do Egito chegar a Washington para negociar uma resolução à crise, Israel lançou sua ofensiva na Península do Sinai. O embaixador jordaniano, desta forma, sentia que o governo ianque havia usado os embaixadores árabes para enganar os governos de seus países, dando tempo para a preparação militar sionista. (2 p. 144)

Mas não apenas na antecipação da guerra os USA agiram de forma a dar mais tempo e permitir que Israel alcançasse seus objetivos. Rashid Khalidi narra suas próprias memórias, de suas participações, como convidado de seu pai, em reuniões do Conselho de Segurança da ONU durante a guerra. Khalidi conta que, nos dias 6 e 7 de junho (isto é, no segundo e terceiro dias de guerra), o Conselho de Segurança já havia “ordenado um cessar-fogo abrangente, mas forças israelenses que entraram na Síria ignoraram essas resoluções, mesmo com seu governo afirmando sua adesão a elas”. No dia 9 de junho, a União Soviética havia proposto uma resolução de cessar-fogo ainda mais urgente, vendo as tropas sionistas avançando em direção à capital Síria, Damasco. Após a aprovação da resolução, o conselho de segurança solicitou que o secretário-geral da ONU tomasse as medidas necessárias para o cumprimento imediato do cessar-fogo.

Então, aproveitando a demora do secretário-geral, o embaixador ianque à ONU Arthur Goldberg surpreendentemente pediu um adiamento de duas da sessão, o que foi acatado.

Corri ao encontro de meu pai, esperando que ele me explicasse por que o conselho concordara em permitir mais duas horas de adiamento. Goldberg queria consultar seu governo, disse meu pai sem rodeios. Eu estava incrédulo. Quanta consulta era necessária para impor uma resolução de cessar-fogo? Com um sorriso estranho e amargo, meu pai respondeu calmamente em árabe: “Você não entendeu? Os americanos estão dando aos israelenses um pouco mais de tempo”.

Khalidi conta que as manobras de retardamento de Goldberg se repetiram nas próximas três sessões do Conselho, e permitiram que as divisões israelenses avançassem cada vez mais em direção a Damasco. Para Khalidi, o que estava testemunhando naquele dia “era a evidência de um novo eixo do Oriente Médio em ação – as pontas de lança blindadas no solo eram israelenses, enquanto a cobertura diplomática era americana”. Como afirma o historiador, até então Israel havia se alinhado mais fortemente com a França e Grã-Bretanha, e mesmo usou armas franco-britânicas na guerra de 1956 e na própria Guerra dos Seis Dias. Mas as nações europeias não eram mais as potências centrais do imperialismo, e o fracasso em se manterem na Península do Sinai em 1956 evidenciavam isso sem sombra de dúvidas. Os USA emergiam, cada vez mais no pós-Segunda Guerra, como o centro do imperialismo, e Israel, sabiamente, se alinhou completamente ao imperialismo ianque. (2 pp. 138-140)

Consequências: apagamento, ocupação e apartheid

As consequências da Guerra dos Seis Dias foram devastadoras, principalmente para os palestinos da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Se, anteriormente, palestinos da Cisjordânia gozavam de cidadania jordaniana, agora tanto estes quanto os de Gaza se viam vivendo sob um regime militar de ocupação sionista. Israel deu início a uma política estatal oficial de criação e expansão de assentamentos coloniais judeus, a princípio em áreas pouco povoadas, mas não tardaram a se posicionar “no âmago de comunidades palestinas”. Nas palavras de Ilan Pappé, “após a ocupação, o novo governo confinou os palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza a um limbo impossível: não eram nem refugiados, nem cidadãos – eram, e ainda são, habitantes apátridas”, e “o temor demográfico que assombrava Ben-Gurion, de um Grande Israel sem maioria judaica, foi cinicamente resolvido com o encarceramento da população dos territórios ocupados em uma prisão onde a cidadania inexiste”. (1 p. 134)

Ignorando a Resolução 242 da ONU, Israel permaneceu na Península do Sinai até os acordos de Camp David, em 1979, mantém até hoje sua ocupação da Cisjordânia e anexou as Colinas de Golã e a Jerusalém Oriental. A Resolução proíbe a aquisição de território através da guerra, ao que Israel responde com uma interpretação linguística cínica, apoiada pelos USA, e que sua ocupação é “temporária”, a espera de um parceiro para a paz na Palestina. A resolução, no entanto, como ressalta Rashid Khalidi, sequer menciona a existência de palestinos, e trata do problema como uma questão entre Israel e os países árabes vizinhos. Ela é, portanto, mais uma forma de apagamento, deslegitimação e desumanização do povo palestino. Seu não acatamento de quase 60 anos por Israel não resultou em sequer uma sanção ao Estado Sionista, somente condenações pífias na ONU (2 pp. 144-150).

Neste período de quase 6 décadas, Israel continua colonizando a Cisjordânia, com já cerca de meio milhão de colonos judeus vivendo na região. O Estado Sionista se apropriou de cerca de 1400 quilômetros quadrados de terra palestina, e destina 99,76% da terra para colonos judeus. Atualmente, a Cisjordânia é dividida nas Áreas A, B e C, estando a Área A sob total controle da Autoridade Palestina, a Área B sob seu parcial controle (com controle de segurança por Israel) e a Área C – maior que as outras duas juntas – sob total controle israelense. Constantemente, em especial nas Áreas B e C, colonos sionistas praticam atos de terrorismo e invasão contra pastores, fazendeiros e coletores palestinos, e o exército de Israel responde a isso decretando regiões inteiras de fazendas, pastos e pomares palestinos como “áreas militares”, de onde palestinos são expulsos para imigrantes judeus colonizarem em seguida. Em cidades e vilarejos palestinos, colonos sionistas constroem suas casas de duas formas: ou literalmente em cima das construções palestinas, arremessando objetos e lixo sobre as ruas e casas palestinas abaixo; ou ao entorno das cidades e vilarejos, impedindo sua expansão e obrigando gerações futuras a irem viver em outros lugares. Além disso, a Cisjordânia é pontilhada e entrecortada por postos de comando militares israelenses, checkpoints, muros de apartheid e estradas exclusivas para uso judeu. A Cisjordânia, desta forma, faz parte de um Estado, o Estado Sionista de Israel, onde ao povo palestino, ainda que nascido e criado na Palestina Histórica, não é dado os mesmos direitos civis que são dados ao povo judeu, mesmo aqueles judeus que passaram suas vidas nos USA, Europa e outros países.

Comemorar o Dia da Naksa

O ato de comemorar pode de fato ser algo positivo e alegre. Mas a própria palavra, vinda do latim, evoca o ato de recordar algo em conjunto. Comemoramos hoje o Dia da Naksa porque recordamos, juntos, deste segundo ato da Nakba contínua do povo palestino. Aos 750 mil palestinos que sofreram limpeza étnica na invasão sionista em 1948, juntaram-se cerca de 300 mil (cerca de 150 mil eram refugiados de 1948 também, se tornando refugiados pela segunda vez), e mais uma dezena de vilarejos e aldeias palestinos foram destruídos. Comemoramos, pois, diferente de líderes do assim chamado “mundo civilizado”, não começamos nosso calendário em 7 de outubro de 2023. Para o povo palestino, o calendário de guerras declaradas contra ele começa em 1917 com a Declaração Balfour, e segue virando suas folhas, com novas declarações de guerra colonial a cada página.

Entre as conquistas ilegais sionistas em 1967, deixei a menção à Faixa de Gaza em separado. O enclave, que até 1967 vivia sob ocupação militar egípcia, permaneceu ocupado pelo Estado Sionista até 2005, quando se retirou. A narrativa corrente apresentada por Israel e seus aliados, especialmente os USA, é de que Israel teria se retirado de Gaza por livre e espontânea vontade. Entretanto, não fosse a constante pressão dos grupos de resistência nacional palestinos, principalmente o Hamas – mas incluindo (e não menos importantes) a Jihad Islâmica, a FPLP e a FDLP -, é provável que a retirada nunca houvesse ocorrido. As atividades militares dos grupos tornaram as condições para os colonos na Faixa de Gaza quase insustentáveis para o Estado Sionista, sobretudo ao longo da Segunda Intifada (2000-2005). Israel via-se incapaz de manter os assentamentos judeus seguros, e optou, desta forma, pela retirada de suas tropas e evacuação dos colonos. Mas, a ocupação militar se manteve e se mantém até hoje, com Israel controlando a maioria do fluxo de bens, serviços e passaportes de e para o campo de concentração da Faixa de Gaza. Esse cerco ilegal se intensificou em 2006, quando o Hamas venceu uma maioria nas eleições legislativas da Autoridade Palestina e foi impedido de governar a Palestina, como seu direito. O Hamas, então, tomou o controle da Faixa de Gaza e foi ostracizado pelo Fatah, grupo que ainda “governa” a Autoridade Palestina sem conquistar nada para o povo palestino. E desde então mantém-se como a maior facção palestina abertamente hostil ao Estado Sionista de Israel, levando ações militares contra a ocupação sionista.

Neste 5 de junho, nós comemoramos para não esquecermos. Nossa memória não é seletiva e não há propaganda que possa apagar os últimos 57 anos desde a Naksa, tampouco os últimos 76 anos da Nakba. Nosso vocabulário não se limita a “Hamas”, “terroristas” e “7 de outubro”, mas inclui “limpeza étnica”, “genocídio”, “colonização” e “assentamentos”, termos e frases que os líderes do “mundo civilizado” fingem não entender e agem como se fossem palavras e frases da moda. E, se em 76 anos ou em 57 anos este povo não se deixou ser apagado, exterminado e esquecido, e ainda é capaz de lançar operação tal como foi a do Dilúvio de Al-Aqsa e se manter firme em sua luta perante o genocídio em Gaza, nosso vocabulário ressoa retumbante: “resistência”.

Obras Citadas

1. Pappé, Ilan. Dez mitos sobre Israel. s.l. : Editora Tabla, 2022.

2. Khalidi, Rashid. Palestina, um século de guerra e resistência (1917-2017). s.l. : Todavia, 2024.



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