O Viveiro Comunitário do Taguaparque, conduzido pelo Grupo Florescer de Voluntariado, foi trancafiado, no último dia 21 de outubro, pela International Police Association (IPA) – em tradução livre: Associação Internacional de Policiais. Voluntários lutam desde então para reaver o controle sobre o viveiro, suas mudas e suas ferramentas, todos atualmente em posse da IPA. Após conversa com a Administração Regional de Taguatinga, voluntários acreditam que precisarão entrar com medidas judiciais e protestos, pois não acreditam mais na efetividade do diálogo nem com a administração regional, e nem com a IPA.
Uma manifestação ocorreu no dia 16 de dezembro, em frente à sede da Administração Regional de Taguatinga convocada pela UJC/DF e pelo Grupo Florescer de Voluntariado. Os manifestantes confeccionaram cartazes, que foram colados no dia seguinte (17) na sede da administração do Taguaparque – parque público de lazer localizado em Taguatinga Norte.
Mayara Coelho, 31 anos, advogada, é uma das criadoras do projeto. Nos conta que a sua primeira tentativa foi fazer um viveiro na floresta nacional. Lá “o Viveiro floresceu e morreu, porque a administração não deixa ninguém fazer”. Apesar disso, ela não desistiu da ideia. Pouco depois, em outubro de 2018, ela foi uma das pessoas que protocolaram o projeto de um viveiro no Taguaparque, na Administração Regional de Taguatinga. Demoraram quase dois anos para que eles efetivamente recebessem a chave e pudessem iniciar o projeto, em junho de 2020. A partir de então, todo o trabalho foi feito exclusivamente pelos voluntários, desde a limpeza e restauração da pequena casa onde hoje fica o Viveiro, até o cuidado da terra e plantação das mudas. Todas as ferramentas foram adquiridas pelos voluntários, que as emprestaram, doaram ou compraram para o projeto. Nem mesmo no adubo ou nas sementes houve ajuda governamental, nos conta Mayara: “O Viveiro nunca recebeu uma doação de adubo do SLU [Superintendência de Limpeza Urbana]; nunca recebeu uma muda da Novacap [Companhia Urbanizadora da Nova Capital], então os recursos que a administração pública tem – e tem muitos – nunca foram utilizados [pelo Viveiro]”.
No entanto, enquanto é muito difícil para o governo ajudar nestes projetos sociais, lhe é extremamente fácil tomar deles. Assim, em agosto de 2022, a Administração Regional de Taguatinga, por uma manobra burocrática, passou o controle do Viveiro para a IPA, sem que os voluntários nada pudessem fazer. “A gente brinca que o Viveiro tem a mãe, que é a comunidade, que é a mãe que cuida; e tem o pai ausente, que é o Estado, que nem cria e nem deixa a mãe criar. Quer dar para um terceiro, que não tem nada a ver, adotar”, relata Mayara sobre o caso. Antes mesmo de a IPA assumir o controle legal sobre o lugar, eles já trancaram o Viveiro com cadeados, retiraram os cartazes do Grupo Florescer, trocando pelos próprios, da associação de policiais, e impediram o acesso dos voluntários, apesar de ser proibido em lei negar o acesso da comunidade a espaços públicos, além de que no próprio artigo 8º da lei do projeto “Adote uma Praça”, utilizado pela IPA para adquirir o Viveiro, se afirma que nenhum projeto proposto por esses programas pode restringir o acesso ao local utilizado¹.
Quanto às ferramentas, a administração de Taguatinga disse, em reunião fechada com dirigentes do projeto, que estes deveriam entrar em contato com a IPA, e que a administração mediaria o diálogo. No entanto, também insinuaram que as ferramentas pertenceriam à administração. Mayara discorda: “se não tem nenhum termo que, da parceria com os voluntários, nos garanta, também não tem nenhum termo que dê esses bens para a administração. Não tem nenhum documento de doação para a administração. A lei é a lei. Então se não tem pra A, também não tem pra B. Se a gente sair [do Taguaparque], tem que ser no zero a zero”. Complementa rechaçando a afirmação da administração de que a razão para trancar o espaço tenha sido “segurança”: “se fosse questão de segurança, podiam ter feito de várias outras formas”.
QUEM NÃO SE DOBRA, PERDE O PROJETO
Vários dos voluntários que estavam presentes na manifestação do dia 16 contaram ao jornal AND que os problemas com a administração, que levou a mesma a tirar-lhes o projeto, começou na mesma época em que eles não aceitaram que o Viveiro fosse utilizado como “curral eleitoral”. Os voluntários denunciaram que, desde janeiro deste ano, o grupo do WhatsApp passou a ser usado pela administração para campanhas políticas para Deputado Distrital, e que tiveram de se manifestar contra a prática, que não estava de acordo com as diretrizes do grupo. A partir desse momento, a administração mudou sua relação com o Viveiro, começando a interferir em seu funcionamento.
Até este ano, o grupo era autogestionado. A cada seis meses, um voluntário era escolhido pelo grupo para coordená-lo. Mas buscavam sempre ter uma rotatividade na coordenação, para valorizar os voluntários. Como afirma Mayara: “voluntariado é uma coisa difícil: você só gasta, gasta, gasta. Se você não tiver pelo menos reconhecimento do seu bom trabalho, perde o sentido”. Contudo, a administração de Taguatinga decidiu que ela passaria a decidir quem coordenava o grupo, e a voluntária que estava prestes a sair do cargo de coordenadora foi “reeleita” indefinidamente. É neste clima que chega a IPA no Taguaparque.
No dia 30 de março deste ano, a IPA pediu para participar do programa “Adote uma Praça”. Este programa foi criado em 2019 pela Secretaria de Projetos Especiais (Sepe), e permite que pessoas físicas ou jurídicas cuidem de algum espaço público por determinado tempo, com a contrapartida de fazerem manutenção e reformas das áreas públicas ocupadas. Em seu pedido para adotar o parquinho que tem no Taguaparque, curiosamente a associação de policiais pede não um lugar específico, mas o “Projeto Vila da Criança – Taguaparque”. É estranho assinalar um “projeto” como local, mas acontece que este projeto “Vila da Criança” já existe pelo menos desde agosto do ano passado, quando saiu uma matéria da Secretaria de Estado de Esporte e Lazer (SELDF) citando a vila, que “foi concebida dentro do projeto Criança Feliz Brasiliense, da Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes)”². Cita ainda o custo do projeto, de R$ 260 mil, que estaria na fase de captação de recursos. Em outra matéria, datada de dois dias antes da IPA pedir o espaço³, este mesmo projeto vila da criança é dito como assinado pela “arquiteta da administração de Taguatinga, Charliete Mesquita”, e que a autora da ideia foi a “diretora de Articulação da administração, Maria Aparecida Ribeiro de Oliveira”, com a colaboração das “servidoras Luciana Dourado e Kerolayne Rodrigues Vieira”. Não há nenhuma menção à IPA em nenhuma das notícias. Como dizem os representantes do Viveiro em denúncia à IPA feita na ouvidoria, “como e porque a IPA se apropriou desse projeto é um mistério. Teria havido algum tipo de edital público vencido pela IPA para que ela ganhasse o direito de reivindicar e gerir o projeto, fruto do trabalho de servidores públicos? Não consta que isso tenha ocorrido, sugerindo que houve uma violação do princípio da isonomia e favorecimento indevido da IPA”.
Em seu primeiro requerimento, feito em 30 de março, a IPA não apresenta, em seu projeto, nenhuma das exigências do programa “Adote uma Praça”, como projeto, croqui, mapa, etc., e, por isso, no dia 11 de maio, eles são requisitados a detalhar melhor o que fariam na Vila da Criança, como quais brinquedos seriam instalados. Após dois meses, é finalmente apresentado um plano para a “Vila das Crianças”, que inclusive cita que o projeto foi desenvolvido no “Programa Criança Feliz”, e não parece ter diferenças com o projeto inicialmente feito pela administração de Taguatinga. Nem os recursos financeiros para a realização do projeto foram adquiridos, tendo em vista que o plano da IPA cita, como próxima etapa, a mesma captação de recursos, orçada novamente em “R$ 260 mil reais”. A situação fica ainda mais estranha quando vemos que, um mês antes, em 13 de maio, a representante da IPA Brasil, Eliza Mitiko Fujishima Kwabara, havia afirmado em uma matéria para a própria Administração Regional de Taguatinga⁴ que havia já a “garantia de uma parcela de R$ 150 mil, para o início das atividades”, isto é, para o projeto Vila das Crianças, “obtidos por meio de emenda parlamentar”.
Quando a IPA efetivamente conseguiu espaço no Taguaparque, em meados de agosto, foi logo conversar com o Viveiro. Felipe Resende, 29 anos, presidente da Rede Cidadã de Taguatinga (Recita), e um dos envolvidos na luta do Viveiro para reaver seu espaço, narra que a IPA os chamou para uma reunião, na qual representantes dessa associação de policiais mostraram um exemplar do Diário Oficial do DF para justificar a apresentação do seu projeto de cuidar da Vila das Crianças. “Aí ficou naquilo: a IPA era da Vila das Crianças. Não tinha, até aquele momento, nenhuma relação com o Viveiro, nem com a Cascata”. Conta ainda que eles tinham pretensões de colaboração mútua entre os dois projetos. “A Mayara”, uma das coordenadoras do Viveiro, “foi lá, pintou pneus, deu mudinhas para o pessoal plantar lá. Era uma relação, até então, amistosa”.
Porém, do lado da IPA, a colaboração parece ter sido com segundas intenções, tendo em vista que logo depois, em 31 de agosto, eles fizeram um novo pedido, solicitando a “ampliação do projeto ‘Vila das Crianças’ – englobando a Cascata e o Viveiro do Taguaparque, tendo em vista que os parceiros e/ou voluntários do Viveiro auxiliarão na manutenção dos Pergolados da Vila das Crianças e adjacências”. Não que os voluntários do Viveiro tenham sido ingênuos. Pelo contrário. Com curiosidade em saber sobre esse projeto, no mesmo dia da primeira reunião com os representantes da IPA, Felipe tirou foto do Diário Oficial apresentado e tentou buscar o processo SEI. Teve que abrir um protocolo, em 27 de agosto, pedindo acesso ao processo. Além de demorarem a responder, a resposta ainda foi negando o acesso ao processo. A desculpa dada era a existência de dados pessoais no projeto. Felipe afirma no entanto que citou em seu recurso o fato de que, segundo a lei de acesso à informação, “se a informação não pode ser integralmente disponibilizada, você oferece uma cópia com a informação que não pode ser vista tarjada”. Ainda assim, este recurso foi negado em duas instâncias.
Só depois de o recurso chegar na controladoria foi que os representantes do Viveiro Comunitário tiveram acesso ao processo SEI, já em 4 de novembro, isto é, dois meses depois. Assim, o Viveiro não teve possibilidade alguma de apresentar um projeto concorrente ao programa “Adote uma Praça”, como era de direito deles, por lei. Como num lampejo de consciência, a Administração declara, em um e-mail à IPA, que antes de poder entregar oficialmente o Viveiro para eles, esta deveria conseguir a permissão dos voluntários em serem cooptados pela associação. No mesmo dia, aparecem 11 assinaturas, todas tarjadas no processo. Mesmo se as assinaturas forem realmente de voluntários do Viveiro, as 11 pessoas representam pouco frente aos 48 voluntários que o compõem.
Devida a todas estas questões, os representantes do Viveiro denunciam que essa “ação envolvendo a IPA foi mantida em segredo, em um complô entre um pequeno grupo de voluntários, servidores da Administração e a própria IPA, não tendo havido oportunidade para os contrários a essa cooptação do viveiro se manifestarem”. A situação se agrava ainda mais, tendo em vista que estavam no grupo de WhatsApp do Viveiro do Taguaparque tanto a representante da IPA Brasil, quanto o administrador regional de Taguatinga e os voluntários que deram anuência, mas nenhum deles falou nada sobre o processo, que ocorria às escuras. A maioria dos voluntários do projeto só descobriram que o Viveiro foi entregue à IPA quando esta já havia trancado o mesmo com cadeados, em 21 de outubro.
Neste fatídico dia, a associação de policiais ainda nem tinha de fato assinado o termo de cooperação com a administração de Taguatinga, que seria feito só mais de um mês depois, em 24 de novembro, mas já se achou no direito de cadear arbitrariamente as portas do Viveiro. Começaram a controlar quem poderia entrar ou sair, apesar de ser um local público. Inclusive, quando fomos tirar fotos para a matéria, no dia 16 de dezembro, as portas estavam trancadas, apesar de serem 9h da manhã, de um dia de semana, e haver duas voluntárias dentro do projeto.
No dia 16 de dezembro, quando os voluntários foram se manifestar contra a situação e a Administração Regional de Taguatinga se recusou a receber os voluntários e o correspondente do jornal A Nova Democracia, que estava presente. Decidiram conversar apenas com os “representantes do projeto”, deixando apenas três pessoas entrarem. Felipe, que estava presente na reunião, relata que havia ao menos dez pessoas na sala representando a administração. Lá dentro, a administração lhes disse basicamente que não havia o que fazer, pois o Viveiro já pertencia oficialmente à IPA. Mayara se vê desiludida com a situação, mas determinada a reconquistar o espaço e suas ferramentas e mudas de volta, que foram indevidamente subtraídas. “A gente tá tentando plantar, eles não deixam. A gente tenta entrar lá [no Viveiro], eles não deixam. A gente quer pegar as mudas que nós levamos para lá, eles não deixam. Nada deixa. Continuar iludido na tentativa do diálogo já se mostrou inefetivo. Agora nós vamos para cima de todas as formas”, diz ela.
QUEM É A IPA?
A International Police Association (IPA) – em tradução literal: Associação Internacional de Policiais -, é uma organização constituída na Inglaterra, mas que abarca, segundo eles, mais de 70 países. Em seus documentos oficiais, afirmam ser um “rol de associados oriundos da Segurança Pública Nacional” com membros da “Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícia Legislativa, Polícia do Judiciário, Polícia Civil, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Guarda Portuária e Guardas Municipais”. Além disso, se declaram a “maior entidade de classe policial do mundo”, e afirmam possuir “cadeira consultiva na ONU, OEA, UNESCO, Conselho Europeu e EUROPOL”. A IPA alega estar no Brasil há exatos 60 anos.
Em comemoração a seus 60 anos no Brasil, a IPA iniciou projetos como o “Amazônia Verde”, que promete “reflorestar biomas desestruturados”. O projeto possui uma filial em Brasília, com endereço apresentado de maneira incompleta no site oficial do projeto, como “Superquadra 308 Sul”⁵. Para quem conhece o Plano Piloto de Brasília, este endereço levanta ainda mais suspeitas, tendo em vista que é um endereço residencial e não comercial, além de estar incompleto, sem indicação de bloco e apartamento.
Além da “Vila das Crianças”, a IPA pretende fazer um “monumento em homenagem aqueles (sic) heróis que tombaram diante do enfrentamento ao COVID-19”, estimado em R$ 3 milhões de reais, também a ser localizado no Taguaparque⁶. Segundo seu site oficial, eles também vem fazendo projetos de treinamento de policiais, dos quais se destaca um intitulado “Amazon Jungle Training” – em tradução livre: Treinamento de Selva na Amazônia. Este treinamento foi desenvolvido “no Centro de Integração e Aperfeiçoamento em Policia (sic) Ambiental – CIAPA, da Policia (sic) Federal do Brasil, com um corpo docente de professores do CIAPA”⁷. Seu objetivo é treinar policiais nacionais e estrangeiros em como conduzir operações militares na Amazônia. No site consta como ocorridos, até agora, apenas dois destes treinamentos, ambos em novembro de 2021. Porém, o presidente da associação declara, em nota oficial, ter ocorrido pelo menos mais um treinamento, em novembro deste ano⁸.
NOTAS
¹ Lei Federal nº 39.690/2019, Art. 8, § 2: “Não são admitidas propostas que resultem em restrição de acesso à área objeto da cooperação ou que impliquem alteração de seu uso.”
² https://www.esporte.df.gov.br/um-taguaparque-renovado-para-criancas-e-adultos/
⁵https://www.projetoamazoniaverde.com/take-action
⁷https://www.ipa-brasil.org/prod-amazon-jungle
⁸https://www.ipa-brasil.org/palavra-do-presidente
Imagem em destaque: Cartazes colados pelos ativistas na sede da administração do Taguaparque. Foto: Banco de Dados AND