Dois atos: mais que mil palavras

Dois atos: mais que mil palavras

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Na manhã de 1º de maio de 2020, bandeiras vermelhas tremulavam em distintos pontos da capital.

Bandeiras vermelhas com o martelo e a foice sorriam para a cidade vazia.

Dias, semanas, meses.

Os jornalões dão manchetes às bravatas do gerente de turno e seu grupelho.

Muito confete e pirotecnia de uma canalha.

A crise chacoalha tudo e a podridão do velho Estado vem à tona.

Milhões de trabalhadores enfrentam os ásperos dias de fome e incertezas como um caldeirão onde borbulha sua indignação.

Mas a velha “toupeira segue cavando”…

Camponeses, jovens, mulheres, operários conformam os Comitês Sanitários de Defesa popular.

Nos rincões, seguem as tomadas de terra e a resistência camponesa, indígena e dos remanescentes de quilombolas.

Aqui e acolá, eclodem revoltas e greves contra as medidas antioperárias.

E as bandeiras vermelhas tremularam na cidade nesse primeiro de maio.

Silenciosas, ecoaram as bandeiras vermelhas, retumbaram, nesse primeiro de maio.

Calaram-se os poltrões e a manhã se inundou de sol!

 

Esse agudo ato de primeiro de maio, que me fez parar por instantes a observar as bandeiras e quem também parava para vê-las ali, dançando desafiadoras ao sabor do vento, me recordou um trecho de os Subterrâneos da Liberdade, volume III, A luz no túnel, de Jorge Amado. Dois atos: mais que mil palavras. Momentos tão distintos e que também guardam sua semelhança.

 

 “Quando ao descer dos primeiros bondes, à luz ainda imprecisa da manhã recém-nascida, os operários enxergaram as bandeirolas vermelhas nos fios elétricos, um sorriso passou de boca em boca e se cutucaram com os cotovelos. Houve mesmo alguns que pararam para melhor olhar, outros diminuíram os passos, um deles murmurou:

— Eu bem dizia que ninguém podia terminar com eles…

Eram umas poucas e pequenas bandeirolas de papel vermelho, balançando à brisa matinal, presas dos fios de eletricidade, lançadas ali seguramente à noite pelos mesmos homens que haviam traçado a piche uma inscrição no muro de um Banco pouco adiante:

 ANISTIA PARA PRESTES! ABAIXO VARGAS!

 Bem pouca coisa, sem dúvida, mas que grande coisa para os olhos dos operários descidos dos bondes naquela manhã do mês de outubro! Não tardaria a chegar a polícia para arrancar as bandeirolas, para tentar apagar a inscrição a piche. Mas a notícia já teria circulado nas fábricas, nos variados locais de trabalho, nas oficinas. Ter-se-ia estendido até os subúrbios e mesmo pelo interior do Estado, levada pelos choferes de caminhões e ônibus: ali estava o Partido outra vez, era mentira que tivesse sido de todo liquidado. Os grupos de operários, cada vez mais compactos, viam as bandeirolas ao saltar dos bondes, liam mais adiante a inscrição recente. Uma súbita animação parecia dominar os diversos grupos, nasciam comentários, as faces se alegravam.

E não era apenas no Largo da Sé que, alegres, se agitavam ao vento as bandeirolas vermelhas. Em frente às grandes fábricas, na cidade de São Paulo e nos subúrbios, bandeirolas e inscrições se sucediam marcando a presença ativa do Partido. E nos dias que se seguiram, volantes foram lançados em vários pontos da cidade, denunciando o governo que condenava os melhores filhos da classe operária, esfomeava o povo e vendia o país aos imperialistas estrangeiros, norte-americanos e alemães. Esses volantes estavam assinados pelo Comitê Regional de São Paulo do Partido Comunista do Brasil e os operários, os trabalhadores dos mais diversos ramos, os intelectuais, o povo lia às escondidas aquelas palavras de ordem. As sirenas dos carros de polícia voltaram a cruzar as ruas sem respeitar os sinais de trânsito. Nas fábricas, aparecidos ninguém sabe como, os volantes circulavam. Com eles circulava a alegria com eles renascia a confiança.

No fim daquele dia, quando o trabalho havia já cessado nas empresas, um velho operário, de cabeça encanecida e olhos fatigados, empurrou a porta de uma pequena casinhola suburbana.

No único quarto, sobre as tábuas sem colchão de uma dura cama jazia o corpo magro de uma enferma. Também ela era velha, as faces cavadas, os olhos febris. De quando em vez um fraco gemido escapava-se dos seus lábios. Ao lado do leito, sobre um vazio caixão de querosene, uns poucos frascos de medicamento.

O operário entrou no quarto, curvou-se para a doente, tomou-lhe a mão quente de febre:

— Como estás?

— No mesmo… — murmurou ela.

Tentou levantar-se, apoiando-se sobre o cotovelo mas o velho não consentiu:

— Deixa que eu me arranjo sozinho…

Ela esforçou-se por sorrir:

— A comida está no armário, é só esquentar.

Mas o marido não saiu logo do quarto. Sentou-se na beira do leito, meteu a mão por baixo da camisa, sob o rasgado paletó, tirou uma folha impressa, a mulher suspendeu a cabeça para ver melhor:

— O que é?

— Escuta: “O Comitê Regional de São Paulo do Partido Comunista do Brasil dirige-se aos operários e camponeses…”

— Eu sabia.. Eu sabia… — murmurou a doente deixando que sua cabeça outra vez tombasse sobre as tábuas. — Eu sabia que eles estavam trabalhando. Agora sim, meu velho, posso morrer contente. O ruim era pensar que estava tudo terminado. Fechou os olhos e uma doce expressão cobriu sua face macilenta.

O velho continuou a ler, suas mãos tremiam levemente tão emocionado ele estava. Nunca haviam sido, nem ele nem sua mulher, membros do Partido. Mas, há quase duas dezenas de anos, desde quando o Partido fora fundado, em 1922, eles o acompanhavam, obedeciam às suas diretivas, davam dinheiro para o Socorro Vermelho, sob seu comando lutavam por melhores condições de vida, em sua casa haviam escondido militantes nos tempos de perseguição. Como muitos outros pelas fábricas e fazendas, haviam lido declarações do Chefe de Polícia do Rio sobre o suposto aniquilamento do Partido, tinham sabido da prisão dos dirigentes nacionais e dos homens que eles conheciam, o secretariado regional, de Ruivo, de João e de Oswaldo. Tinham visto cessar toda a atividade e, como outros, durante um momento eles pensaram que podia ser verdade, tudo se havia acabado. O velho terminou de ler, disse:

— Havia bandeiras vermelhas nos postes, era uma lindeza …

A doente abriu os olhos:

— Eu quero ficar boa… Agora, que eles voltaram, vale a pena viver.

Noutras casas, inúmeras pobres casas onde faltava o necessário para o jantar, a mesma luz de esperança renascia no relato emocionado de um operário que contava sobre as inscrições e as bandeirolas ou que lia as ardentes palavras do volante. Novamente o Partido estava com eles, era como uma luz num túnel”.

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