Seu Ramiro é um camponês simpático do agreste pernambucano. Quando conhece gente nova, gosta sempre de contar emocionado a mesma história: da paixão que seu coração menino tinha pela bandeira vermelha da Liga Camponesa de Francisco Julião, da qual seu pai fazia parte. Passados muitos anos após a perseguição e o desmantelamento da Liga, ainda ardia em seu coração a esperança de que “eles iriam voltar um dia” – chegou mesmo a manter guardado a carteirinha de membro de seu pai, como se fosse um tesouro. Já velho, um dia viu uma marcha da Liga dos Camponeses Pobres em sua cidade, com as mesmas palavras de ordem, cantorias e, claro, erguendo similar bandeira vermelha. De prontidão, decidiu ir se ajuntar a eles. Até hoje mora numa de suas áreas.
Esses dois pequenos textos são em homenagem a este senhorzinho simpático e de olhos brilhantes. Ao contrário das habituais, essa homenagem não ocorre por ocasião de alguma desgraça. Não, Seu Ramiro está bem, forte como um camponês de fibra que é. Esperamos que consiga passar o mesmo sentimento acolhedor e amigável que o copo de café que ele nos ofereceu.
A bandeira, o alvorecer
Tem que acostumar mesmo é com o barro da estrada. Segue com a gente nossa a andada inteira. Gruda no teu calçado, tua pele, aquilo é o diabo, quando tu bem ver está tossindo: foi pra dentro. Lá ele se mistura. Tem chuva que dá e tudo fica empoçado, ruim de passar. Corta caminho, pisa aqui, lá, é difícil. Se não se acostuma com o barro se perde do caminho. Pode ver, assim, quando que não há mais como ver o fim da estrada de tanto poeirão no ar, quando não enxerga mais caminho, tem que seguir, tem que sempre seguir. Tudo fica disso desconhecido. Eu mesmo tive momento desse de ser atiçado a perder a fé, ficava sonhando com aquela bandeira. Aquela bandeira lembrava o barro da estrada.
Meu medo era nunca mais ver uma bandeira daquela. Era que a vontade de pai ficasse solta, desaparecesse. Pai tinha um propósito. Quando baixou a ordem de entregar a carteirinha de membro da Liga, ele logo se aperreou, brigou feio com quem dava pra trás, voltava pra casa atormentado todo-santo-dia, escondeu aquele documento detrás da foto de vó, canto de parede. Imagina mesmo, era como o evangelho do Julião, eu, menino, ficava com pai nas ideias dele. Contava pra mim, dia assim feito esse fim de tarde, a verdade sobre viver. Ele tinha paixão, pensar naquela terra que era nossa, pensar naquele mundo que era nosso.
Mas vieram os contrários. Eles não entendiam nada disso, eram bicho cego com rédea bem amarrada. Bateram de casa em casa, maltratando, procurando quem era da Liga. Eu não esqueço, pai com raiva dizia Eles perderam, Eles não vão ganhar mais essa, Eles acham que pobre não pode sonhar, acham que esse tempo de ter sonho é coisa traiçoeira, que é pra aceitar de cabeça baixa, Eles não sabem a força que trabalhador tem, Vai ter volta, — e dizia, assim irritado, Esses filhos da égua ainda paga isso!
Desmantelaram as Ligas. Pai morreu pouco depois, nada me tira da cabeça que foi de tão triste, dizia que era pra eu me preparar, tinha muito a ver ainda, que ele talvez não visse, porque era da época que camponês ainda não sabia muito das coisas, que eu não, Tu vai ver, Miro, a bandeira vermelha erguida nessas terras, esticada no alto, pra mostrar que aqui a terra é nossa, que aqui o sangue derramado vai ter volta. Ele chorava às vezes tarde da noite, eu só sabia, ele esperava por aquela bandeira. Tentou uma ou outra vez juntar o pessoal, mas nunca dava certo, tinha problema que não conseguia explicar.
Eu fui levando, vida que a gente sofre passa num piscar, aquela mesma coisa todo dia, aquela mesma humilhação de sempre. Mas eu guardei bem as palavras de pai, fui crescendo, tocando a vida, ia se lembrando daqueles sonhos de menino. E cada dia desses que eu arretava quase perdendo a estribeira, dizia assim, Miro, Espera, tem tanto mundo ainda pra acontecer. Espalhava para os que a gente confiava, que tinha dor como eu tinha, espalhava que aquele mundo um dia ia virar. E reunia com o pessoal, dizia, Temos que combater, se deu errado antes, recomeça, se faz mais forte, a gente precisa mesmo é encontrar a resposta certa, ela está lá, a gente precisa dela.
Acordei com o canto de um tiezinho que se arretou logo cedo, disse, Olha mais esse é outro sofredor, reclama que não para. Desde um tempo pra lá tinham uns e outros que estavam empenhados na causa nossa aqui. Amigo meu, José, era de fibra, ajudava a nós todos. Desde que ele tocou a luta, a gente passava muito aperreio, mas era briga boa de ter parte. Eu ficava assim, disposto, lembrando eu menino, aquele velho sonho, nossa vontade. Tinha uns problemas, gente que não era de confiar, mas tinha gente decente e a gente caminhava bem. Naquele dia, fiquei zombando com o pequenino até mais clarear. Bicho danado pra reclamar da vida.
A Liga, Miro, a Liga chegou! – gritaram da estrada. Estatelei, O que estavam dizendo?, fiz de que não tinha entendido, dei minha andada sem querer de pensar. Passando pelos companheiros, de novo, Miro, é a Liga, estão no barracão, vai ver! Eu era aquilo repetindo umas e outras vezes, minha cabeça, gente-de-fora-vem, o canto do pequenino. Fiquei sem fiar, tanto de coisa ruim que aparece quando menos espera. Mais que esse nome deve ser uma coincidência. E eu não aguentava mais do sufoco. Fiquei de passar mal. Deixei de lado a roça, tinha que ver, mesmo pra atestar que não era aquilo. É a Liga, vão subir a bandeira! – Diabo. Apressei o passo, andando dava de uma pouca hora. Passarinho era caminho todo cantando. Era aquela velha estrada.
O tanto que andei nela a espera. Mais que eu andava não preocupava com poça, fui sujando todo, lama, poeira, eu nem pra me proteger. Pense, indo um encardido para ver a Liga. Aquele sonho de pai, tanto eu pensei, tanto quis. Eles tinham que voltar, eu sabia, Eram eles, eram eles. Mais eu ia, mais alto cantavam os pássaros. Danei a tapar os ouvidos, fui, e chegando perto, não parava de olhar aquele barro avermelhado. Baixei as mãos, vermelho estava eu, disseram, Olha a bandeira, A Liga está com a gente. Quando eu vi, nunca vou de me esquecer, era tão linda, corriam lágrimas sem eu conseguir resistir, alta, imponente, aquela bandeira vermelha.
Detrás dela, o sol ardente das primeiras horas do dia. É que pai não entendeu, pai não teve tempo pra entender, queria que ele tivesse ouvido como eu pude ouvir. Aqueles vermelhos são o novo em briga com o velho, tempo tiveram que ter para se aninhar, para destruir o velho neles mesmos. Eu, parado, chorava e chorava, aquilo me bastava, dei a volta e fui caminhando.
Cúmplice dos pássaros, assobiava pela estrada.
por Guimarães.
Para Seu Ramiro
O velho lembrava dum pano vermelho
Erguido na roça entre o inhame e o milho
Seu pai o empunhava e dizia ao filho
“O pano vai em pé pra não irmos de joelho”
E aquilo era, acima de tudo, um conselho
Que deixem-no em haste e que nada amarele-o
E deu-se o previsto, qual fosse evangelho:
O pano – cuspido, alvejado e em retalhos
Seus fiapos, no entanto, viram fios grisalhos
E o vermelho vive no peito do velho!
por Daniel Moreno.