Causou certo alarde, nos monopólios de imprensa, a divulgação da mais recente pesquisa Datafolha que indica melhora nos índices de popularidade de Bolsonaro: segundo o referido instituto, 37% consideram a gestão Ótima/boa, contra 32% na última pesquisa, de junho; os que avaliam-na como Ruim/péssima são hoje 34%, contra 44% de há dois meses. A avaliação Regular oscilou de 23% para 27%. É o melhor desempenho, em pesquisas de opinião, do governo desde o início do mandato.
E esta variação circunstancial bastou para que os mesmos analistas burgueses, que decretavam o governo como “acabado” em junho, sagrem-no já reeleito em agosto. Isto prova bem o quanto vale a sua “ciência política”, misto de crônica da vida privada com thriller policial. Nós, que sempre dissemos que Bolsonaro não podia ser subestimado em sua percepção dos rancores das massas e saber comunicar-se com elas – comunicar-se não é apenas saber falar ou escrever bem, mas captar sentimentos, indagações e mesmo preconceitos difusos, mais afeitos às ideologias que ao entendimento racional – reafirmamos agora com a mesma segurança que esta recuperação está longe de significar o desfecho da crise política ou um triunfo duradouro do “mito”. Na verdade, insistimos, não há qualquer possibilidade de desfecho da crise a curto prazo, pelo menos como tendência principal.
Façamos uma pequena digressão histórica. No dia 1 de junho de 2013, Dilma Roussef tinha uma “popularidade” de 57%. No dia 29 de junho, após a eclosão dos protestos populares, ela baixara a 30%, isto é, derretera quase que pela metade (se recuamos para março de 2013, a perda é ainda mais drástica: a “presidenta” esbanjava então 65% de aprovação). Àquela altura, o PT já estava há uma década no governo federal, vendia-se como certo o desempenho do Brasil como “nova potência emergente” e a nossa suposta democracia como “plenamente consolidada”. Hoje, o que resta daquelas “previsões” ufanistas, senão ruínas e pó pelos quais ninguém daria um tostão furado?
Notem que Bolsonaro, no governo militar dos generais – isto mesmo, assim é – mesmo agora, ensaiando uma trégua, está longe, muito longe, daqueles índices acima citados. Se quiséssemos evocar outros exemplos recentes, mundo afora, poderíamos recordar do facínora Sebastián Piñera, que semanas antes da eclosão dos protestos no Chile do fim do ano passado, assegurara que seu país era um “oásis de tranquilidade” na América do Sul. Passados alguns dias, o paraíso de Paulo Guedes & cia. estava às bordas da guerra civil. Que dizer de Trump, que parecia marchar para a reeleição mais segura das últimas décadas nos EUA, surfando numa recuperação econômica que fez a taxa de desemprego oficial recuar para algo como 3% em princípios de março, e agora corre sério risco de uma derrota histórica? Aliás, estes três exemplos têm algo em comum: o fator desestabilizador foi a entrada em cena das massas populares rebeladas. Voltaremos a isso.
O Brasil de 2020 está à beira da pior recessão da sua história e com danos irreversíveis em determinados setores da economia. Sobre tal crise geral e como parte dela, se erige uma disputa política feroz, que decidirá às custas de quem se dará a sobrevida deste sistema retrógrado. A crise agora se reveste mais transparente das suas verdadeiras pugnas. O setor financeiro-comprador, representado por Paulo Guedes, exige a manutenção do teto de gastos e da austeridade fiscal, e quer com isso transferir os efeitos da crise para as massas e para o setor industrial-burocrático, que se verá privado de crédito e mercado consumidor, e muito mais cedo que se possa esperar, nova recessão, derrocada econômica, desemprego. Esta fração burocrática da grande burguesia, por sua vez, representada nitidamente agora pelos generais do Planalto (leia-se Alto Comando das Forças Armadas), exige um plano de endividamento público (que eles, de modo ridículo, apelidaram de “Plano Marshall”), que financie obras, crédito fácil e políticas compensatórias, no objetivo desesperado de reverter desemprego e recessão, mas cujo efeito será aumento de inflação, deficit na balança de pagamentos e deterioração das contas públicas.
Como o plano do primeiro, tudo combinado com o aprofundamento da extorsão sem limites dos direitos trabalhistas e do arrocho salarial, terminará tal qual o outro, em níveis absurdos da miséria de imensas massas, nova recessão e violentas rebeliões populares. Bolsonaro dança entre os dois. Rendido, pelo menos momentaneamente, ante aos escândalos no Rio e a ameaça de impeachment, como refém dos generais parece mais tentado à conhecida cartilha no colo dos generais, a fim de retomar fôlego e base de massas para nova empreitada golpista mais à frente, só ou em parceria que o valha.
As lutas intestinas pelo controle do aparelho de Estado prosseguem, portanto, mudando de aparências e apenas se deslocaram do palco para a coxia. Aí, elas são quiçá mais sórdidas e mais violentas, porque resolvidas através do aparato policial-judiciário, das intrigas palacianas, da espionagem, da chantagem, mesmo porque a nenhuma dessas figuras sinistras falta um amplo telhado de vidro. A liberdade de Queiroz e Márcia, por exemplo, com voltas e reviravoltas, não saiu de graça. Só os ingênuos ou os demagogos podem pensar que coisas desta gravidade se resolvem segundo os princípios jurídicos, a moral, as convicções íntimas do magistrado e outras quimeras liberal-burguesas, feitas para ludibriar o público. Ao mesmo tempo, para vigiar qualquer articulação de protestos, passa-se, no âmbito do Gabinete de Segurança Institucional e do Ministério da Justiça, a uma verdadeira e descarada remontagem do famigerado Serviço Nacional de Informações (SNI) do regime militar.
A propósito, o genocídio de mais de 100 mil brasileiros e brasileiras, em menos de 150 dias, por este velho e putrefato Estado brasileiro e seu tutor, as Forças Armadas, seu Alto Comando que manda no governo, ante tamanha desgraça que abate sobre a Nação posa olimpicamente com sua heroica contribuição: a cloroquina e a arapongagem. Deixa estar.
Em qualquer caso, todas estas frações em disputa passam longe de representar os interesses das amplas massas populares. Na verdade, o auxílio emergencial tem sido um instrumento de contenção social, ainda mais importante para o Estado reacionário que para os milhões de beneficiários. Sem isto, o Brasil já teria se tornado ingovernável. Como paliativo, ele não resolve nenhum dos problemas econômicos fundamentais – notadamente a onda de desemprego e de falências – mas apenas revela o nível de miserabilidade crônica em que vive grande parte de nossa população, lançada às raias do pauperismo. Seu efeito amortecedor de curto prazo nem arranha as grandes questões estruturais que atam nosso país a esta situação infernal e que empurrarão as massas para a luta radicalizada num qualquer próximo ato da tragédia nacional.
Dissemos acima que, em 2013 no Brasil, em 2019 no Chile e em 2020 no Estados Unidos o fator desestabilizador da situação foi a eclosão dos protestos populares. Isso é verdadeiro para o nosso presente. Tão logo as massas populares, enojadas pela repetição de mentiras e enganos dos governantes, se lancem na luta aberta, em defesa das suas reivindicações mais prementes, descobrirão que entre elas e as suas necessidades existe todo um aparato político-jurídico-militar contrarrevolucionário pronto a defender as iniquidades. Nesse momento, mesmo o que parece hoje assimilado, como o genocídio atroz no contexto da Covid-19, ressurgirá iluminado, com força redobrada, perante os seus olhos aguçados pelo combate, e também as brutalidades policiais, a corrupção acintosa, a estarrecedora desigualdade, os 520 anos de latifúndio e de subjugação nacional. Chegado a este ponto de fusão, bastarão algumas horas para que se desfaça todo o torpor aparente; para que se desvende toda esta miragem de normalidade. Os analistas burgueses falarão então em acidente; nós, de um paciente acúmulo de contradições históricas, que finalmente saltaram de qualidade. Parafraseando um medíocre ilustre, não é questão de se isso vai ocorrer ou não, mas quando.
Marcos Corrêa/PR/Divulgação