Desde a terça-feira, 03/11, o povo do Amapá amarga os horrores de voltar ao século XIX, a dois meses de adentrarmos a terceira década do século XXI. Falta de luz, de água, de combustível e, sobretudo, de respostas, mergulharam 14 dos 16 municípios do estado numa noite sem fim. Na primeira declaração após o apagão, o almirante Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia, prometeu que tudo estaria restabelecido… em 15 dias! Enquanto isso, o povo, largado à míngua, só podia contar com a sua solidariedade e auto-organização para sobreviver sem as mínimas condições sanitárias em plena pandemia.
Como não poderia deixar de ser, as tropas chegaram logo, e antes dos geradores já estava instalado na capital amapaense o Corpo de Fuzileiros Navais. No sábado, dia 7, dezenas de protestos espontâneos ocorreram em diversas cidades e foram reprimidos com selvageria pela Polícia Militar. Houve relatos de tiros, balas de borracha e feridos. Diante das denúncias, o comandante da corporação declarou: “Vamos estar atuando nos levantamentos dos principais pontos onde terá manifestação e tentar debelar antes que a coisa ocorra”. (Grifo nosso). No Amapá, terceiro mundo do terceiro mundo, o direito constitucional de manifestação foi simplesmente suprimido pelo ato discricionário de um policial!
É a barbárie, como se vê. Ou o retrato mais cru de um capitalismo burocrático e de um velho Estado carcomidos, os quais negam o básico à maioria da população, e logo depois negam a ela o simples ato de exigir que seu direito seja efetivado. Engana-se quem pensa que a Amazônia é uma grande floresta verde intocada, cuja problemática ambiental se resume às queimadas. Ela também é palco da tragédia humana das relações de trabalho anacrônicas (escravidão, servidão, etc.) no fundo dos seringais ou dos piaçabais, da falta de saneamento básico (segundo o instituto Trata Brasil, em pesquisa divulgada em 2019, 90% da população de Macapá não tem acesso a rede de esgoto, e 58,5% não possui água tratada em casa), do desemprego crônico (segundo o IBGE, a taxa de desocupação no Amapá em 2018 era de 20,5%, a mais alta do país), da prevalência das velhas oligarquias locais, tão ricas e influentes em Brasília quanto pobres são os seus currais eleitorais. Este é o chamado Brasil profundo, marcado por aquilo que o mestre Nelson Werneck Sodré chamava de heterocronia, isto é, um país em que viajar pelos seus interiores é também retroceder décadas ou séculos no tempo.
Esta “grande regressão” é, na verdade, típica de uma época em que o sistema imperialista estertora. Poderíamos dizer que o Amapá é como o mundo todo; ou todo o mundo é como um gigantesco Amapá.
De fato, o público observa, estupefato, que a tão louvada “maior democracia do Ocidente” norte-americana não segue sequer o princípio básico do sufrágio universal (“um cidadão, um voto”), conservando uma superestrutura política que é, em tudo e por tudo, uma esclerosada oligarquia. Na verdade, aquela sentença emerge perante todos como um mito, fabricado e exportado como qualquer outra quinquilharia. Porque a “democracia liberal”, mesmo nos seus áureos tempos de revolução burguesa, conviveu com a escravidão no seu território (caso do Estados Unidos – USA) e com o colonialismo no ultramar (caso da Europa Ocidental). Depois, na época do imperialismo, estes sistemas políticos tão glorificados pela sua estabilidade alimentaram-se de uma sucessão impressionante de guerras de agressão e golpes militares, genocídios e crimes contra a humanidade praticados no Terceiro Mundo. Assim, quem disser, com pretensões “progressistas”, que o liberalismo é a filosofia política da liberdade, estará apenas mentindo. Não o era quando do seu estabelecimento; e é ainda menos agora, quando a burguesia se tornou uma classe agônica, parasitária, capaz de lançar mão de toda e qualquer atrocidade sempre que esteja em jogo a sua dominação. O próprio USA que o diga, do mccarthismo à admissão da segregação racial e dos linchamentos, muito adentrada a segunda metade do século XX.
Donald Trump, com toda a negação cínica da pandemia e seu séquito de cadáveres, com o achincalhe de toda a “liturgia” do cargo – para escândalo dos americanófilos tupiniquins – e com a defesa mais desavergonhada dos grupos racistas, neonazistas e outros rebotalhos sociais, capturou mais de 70 milhões de votos, dentre os quais, uma parcela não desprezível lhe foi dada por eleitores negros, latinos e pelas massas empobrecidas das antigas cidades industriais. A “vitória acachapante” do discurso conciliatório democrata contra a radicalização “trumpista” não veio. Na verdade, Joe Biden, velhaco escolado há décadas nos bastidores da política genocida ianque, não convenceu no papel de “renovador”. Logo, virão a escalada da crise econômica, o recrudescimento da disputa por hegemonia mundial e a sucessão dos massacres internos que estão no DNA daquela nação. A verdadeira polarização, entre o Estado imperialista reacionário, de um lado, e as massas populares, de outro, prosseguirá, incrementada doravante pelo combustível das expectativas frustradas.
A propósito: o marxismo nos ensina que se pode medir o nível de progresso de uma dada sociedade a partir da posição nela ocupada pela mulher. Tendo isto em conta, indigna, mas não surpreende, a reação misógina dos tempos que correm, da qual o exemplo mais recente foi a humilhação a que foi submetida Mariana Ferrer, julgada e condenada em lugar do seu agressor. Caso bastante elucidativo, aliás, pois ocorreu em pleno tribunal, perante o Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria. Estes órgãos, representantes das “garantias constitucionais” (apontadas pelo feminismo burguês como a salvaguarda dos direitos das mulheres) estavam lá, cumprindo com diligência seu papel de bastiões da ordem reacionária. Imaginem o que se passa com as pobres e negras, nos rincões deste país.
Como se nota, 2020 marcará não apenas uma crise econômica brutal, mas também, uma gravíssima crise ideológica no campo da reação. Todos os mantras repetidos à exaustão nos últimos 30 anos, acerca do papel regulador dos mercados, da democracia burguesa como fim da história, da revolução tecnológica e outras sandices mais desfazem-se qual castelo de cartas. Em desespero, a burguesia, por meio dos seus porta-vozes mais sagazes, disputa a sua própria contestação, lançando mão de um falso pensamento crítico que advoga “fragmentação”, “diversidade”, “defesa das minorias”, justamente quando uma estratégia e ação unificadas dos explorados se fazem mais prementes do que nunca. Fracassará, no entanto. Assim como o sol dissipa as névoas pela manhã, a aguda luta de classes seguirá rompendo, sem piedade, as ilusões.
Foto: Dayane Oliveira / @dayoliveiraj