Editorial – Dos frutos da árvore envenenada

Editorial – Dos frutos da árvore envenenada

Nas ciências jurídicas, é bem famosa a tese segundo a qual são imprestáveis todas as provas colhidas através de métodos ilegais, e as provas oriundas destas provas. Ou seja, sendo a matriz podre, podres são as suas derivações. Esta é, em grandes linhas, a doutrina dos frutos da árvore envenenada. Partamos desta analogia para exemplificar o Brasil de hoje e o impasse que nos desafia a todos.

Evidentemente, podemos, para efeito de denúncia, tomar à parte o genocídio de que são vítimas os brasileiros desassistidos durante a pandemia; o extermínio inclemente de nossa juventude nas favelas e bairros pobres, pelas forças policiais ou esquadrões da morte; a pilhagem dos camponeses, quilombolas e povos indígenas pelo latifúndio secular; a corrupção desbragada; o descalabro; o descaramento; o desemprego; a cloroquina; enfim, todo o nosso cortejo interminável de misérias, materiais e espirituais. Enquanto persista esta árvore, inócuo será bater-se apenas contra os seus frutos. No entanto, se quisermos de fato eliminar estes males, é preciso atacar as suas profundas raízes históricas.

Se alguma experiência tem marcado de modo indelével a trajetória de nosso povo, e as instituições e costumes aqui construídos, esta tem sido a experiência de uma contrarrevolução permanente. As massas populares, é evidente, têm lutado. E com que heroísmo! Contrariando às vezes qualquer lógica, têm lutado mesmo quando lhes faltam os instrumentos básicos para vencer. Que dizer dos “jagunços” de Canudos, ou dos posseiros do Contestado, combatentes cuja derrota consistiu, na verdade, na maior humilhação das tropas vencedoras e dos seus generais, que penaram anos para dominar camponeses iletrados, descalços e mal armados, imbuídos, entretanto, de uma causa justa? Poderíamos citar exemplos mais distantes ou mais próximos no tempo, o sentido seria o mesmo. Ficamos, pois, com estes.

Não é verdade, portanto – e é com efeito uma odiosa mistificação – dizer que nossa história é feita de conciliações. Não. As classes dominantes têm sabido manejar sempre seus interesses de modo a evitar fraturas e divisões duradouras entre si, é certo. Exemplo único de nação latino-americana que manteve a indivisibilidade territorial (e isto num território de dimensões continentais), isto se deveu à colonização de tipo burocrático-militar portuguesa, altamente centralizada, e à grande propriedade latifundiária, que fez a “independência” mantendo os pilares coloniais: escravidão e monarquia. Mas esta ordem não se deu sem antes massacrar os que propunham uma independência autêntica, de que se destaca Tiradentes, sem dar guerra aos escravos rebelados, de que se destaca o grande Zumbi, sem enfrentar os republicanos Cabanos ou Farroupilhas, dentre outros. A dita conciliação, tanto exaltada por certa historiografia, com ares de senso comum inconteste, repousa sobre o silêncio dos vencidos, cujas versões no mais das vezes não se contam. Olhem para os campos devastados, olhem para as favelas imensas: aí estão as nossas senzalas, os nossos engenhos, os nossos escombros, testemunhos vivos de velhos acertos de contas adiados.

No entanto, dizíamos, jamais as massas triunfaram ou estiveram mesmo perto de consegui-lo. Daí, a falta completa, entre nós, do que se conhece em outras partes como “espírito republicano”; a cultura do “sabe com quem está falando?”; uma arraigada crença supersticiosa do povo nas autoridades (nada inabalável: na Rússia e na China pré-revolucionárias passava-se algo parecido). Dizer, portanto, que o que falta ao Brasil é mais harmonia, tolerância ou ordem é inverter completamente a questão. Falta ao País uma experiência de profunda e radical desordem, popular, jacobina; isto é, falta-nos uma Revolução verdadeira. Como qualquer grande acontecimento social, esta revolução significará rupturas e mesmo dramas indizíveis; não romperá sem dor. Mas esta operação difícil trará uma recuperação rápida e vigorosa, ao contrário do câncer do latifúndio, do capitalismo burocrático e do imperialismo, que nos dessangram continuamente ao longo dos séculos, dia após dia. Não acreditamos que tais estruturas possam ser humanizadas ou reformadas e julgamos como o pior dos hipócritas o que promete fazê-lo. Para que nosso povo sobreviva, esta ordem precisa ser derrubada.

Os lutadores consequentes, os intelectuais honestos, as autênticas lideranças populares, devem fazer sério exame de consciência. A luta, apenas, não basta. Denunciar os males que nos assolam por todos os lados, tampouco. Ao longo do tempo, temos lutado e denunciado. É preciso continuar a fazê-lo, mas é ainda mais necessário ir além. É preciso criar os instrumentos que nos permitam vencer. E, se a história dos povos em geral, e da revolução proletária em particular, já nos deu tais instrumentos, é preciso ter a coragem de usá-los sem reserva e com audácia. A terra é fértil. Arrancada a vegetação malsã, florescerá entre nós, sem dúvida, inigualavelmente bela paisagem.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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