No último sábado, 08/08, o Brasil atingiu a chocante marca de 100 mil mortos em decorrência da Covid-19, principalmente em razão do abandono pelo Estado. Trata-se de uma espécie de manipulação macabra, na verdade: dada a subnotificação atroz e o esforço oficial para fraudar os dados, ultrapassamos este número há tempos. De todo modo, é este o registro histórico.
Pois sim, pratica-se no Brasil o genocídio sistemático contra nossas populações secularmente subjugadas, no campo e na cidade. O extermínio dos povos originários, a diáspora dos camponeses rumo aos grandes centros urbanos, a favelização destes últimos, submetendo milhões de pessoas às condições mais intoleráveis de existência: tem sido este o modus operandi do velho e genocida Estado brasileiro. Trata-se de uma sistemática e continuada política de guerra não-declarada contra as massas, que tem cobrado rios de sangue e também o saqueio voraz de todas as nossas incalculáveis riquezas. A imensa maioria dos mortos em decorrência da Covid-19 são os condenados da terra de sempre, anônimos, invisíveis. De todos modos, estas mortes nada têm de naturais.
Mas durante 21 anos, em nossa história recente, ela foi, no entanto, assumida como doutrina oficial: entre 1964-1985, fomos governados por um regime militar fascista, dos mais atrozes do mundo, assassinato, desaparecimento forçado de opositores e exportador de técnicas de tortura para outros países da América do Sul. Imposto com o apoio do imperialismo ianque, que desatou uma operação de guerra chamada Brother Sam a fim de fazer desembarcar os marines caso se generalizasse a resistência, estes nazistas galinhas verdes, por duas décadas, dessangraram nossa terra em benefício das classes dominantes internas, do imperialismo e de seu próprio interesse de casta. Advogavam a prevalência de “fronteiras ideológicas” sobre as fronteiras terrestres – teorização que faria corar até a Joaquim Silvério dos Reis – e a necessidade de lutar contra o “inimigo interno”, no caso, as forças revolucionárias, democráticas e populares. Decretaram subversivo, vejam só, até mesmo o nacionalismo. Os agentes dessa ditadura terrorista incendiaram prédios públicos, enviaram cartas-bombas a organizações democráticas como a que assassinou covardemente a secretária da OAB, Lydia Monteiro, atentados a bomba que só por falhas não mataram centenas ou milhares de pessoas, tais como o do Gasômetro, no centro do Rio de Janeiro, e do Riocentro, crimes ignominiosos até hoje encobertos pelo Alto Comando das Forças Armadas (ACFA). Expurgaram a nata da nossa intelectualidade, arrocharam os salários. Ao sair de cena, entregaram uma inflação de três dígitos, desemprego em massa, uma das maiores dívidas externas do Terceiro Mundo, corrupção desbragada, ademais das também genocidas polícias militares (criadas, nos moldes em que as conhecemos hoje, em 1969) e dos Esquadrões da Morte. Obra nefasta e herença maldita tão descaradamente defendidas por esta mesma casta.
Hoje, 35 anos depois, quase 6 mil militares ocupam postos de destaque no governo. Acumulam privilégios sobre privilégios (recebem ademais de seus soldos os polpudos salários e gratificações dos respectivos cargos comissionados), nomeiam parentes, conservam aposentadoria integral na mesma “reforma” previdenciária que na prática inviabiliza este expediente para civis. Em troca, emprestam toda sua expertise no gerenciamento de crises para lidar com a Covid-19: ocupam o Ministério da Saúde, suprimem as coletivas à imprensa e a divulgação de dados, adquirem estoque de cloroquina – superfaturada – que seria suficiente para as próximas décadas, quando não há qualquer comprovação científica quanto à sua eficácia. Neste sentido, Bolsonaro, por vias tortas, não deixa de ser bem o espelho da instituição em que se formou. Aí está o governo militar de fato dos generais, com capitão de presidente.
A saber, sempre temos dito que embora pugnam pela direção do golpe contrarrevolucionário preventivo em curso, o clã Bolsonaro e essa casta do generalato podem muito bem alcançar unidade baseada na contrarrevolução, natureza de ambos, cujo eixo fundamental é unir-se contra a rebelião das massas em torno do caminho que, no momento, seja o menos custoso politicamente. A revista Piauí, entrevistando quatro fontes confidenciais, trouxe a tona que Bolsonaro decidiu intervir contra o Supremo Tribunal Federal, em 22 de maio. O objetivo era assaltar militarmente, destituir os ministros e nomear outros, de sua lavra, até “restabelecer a ordem”. E explicando seus planos aos generais do Planalto (Walter Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno), obteve do segundo apoio e, do terceiro, sua calculista ponderação: “Não é o momento”. Afinal, não é uma questão de se vai ocorrer a culminação do golpe, e sim de quando – tal como deixou público e patente Eduardo Bolsonaro –, por qual via e sob qual forma desembocará o regime de centralização máxima de poder no Executivo. Para acalmar Bolsonaro, os generais assumiram o compromisso de ameaçar duramente as instituições sobre a possibilidade do golpe, através da nota emitida em nome de Augusto Heleno. Contemporâneo foi o recado do general Ramos: “não estiquem a corda”. Eis os defensores da democracia, suprassumo da legalidade, como querem alguns.
Os crimes de lesa-humanidade perpetrados no contexto do regime militar permaneceram impunes, embora, pelo Direito Internacional, sejam imprescritíveis e impassíveis de anistia. A ferocidade do regime, que aniquilou fisicamente toda uma geração de quadros revolucionários, e a incompreensão por parte destes da via da revolução brasileira – que na etapa seguinte transbordou num crasso reformismo – explicam ao menos em parte a malfadada “transição” que tivemos. Agora, passadas mais de três décadas, somam-se às velhas contas outras novas.
E elas serão cobradas, não por um eventual julgamento em Haia, e sim, pelo julgamento interno, pelo grande levantamento popular que se avizinha. Estas cicatrizes não se fecham nem se perdoam, como querem os conciliadores; elas ficam, através das gerações. E, o que é mais importante: fica a experiência das batalhas, que se renova e aprofunda sempre.
Fiquem certos os inimigos do povo de que, quando a rebelião, justa e necessária, finalmente irromper, não haverá uma nova anistia.