Bolsonaro surfa numa circunstancial onda de “popularidade”, derivada em grande medida do auxílio emergencial. Fala-se mesmo na manutenção deste programa até o fim do ano (com valor reduzido) e numa ampliação do Bolsa Família, rebatizado como “Renda Brasil”. Retirando bilhões da saúde e educação – a maior parte dos quais serão destinados ao pagamento do serviço da dívida – eles jogam algumas migalhas aos miseráveis, encabrestados assim aos “chefes políticos” locais que, por sua vez, vendem votos aos deputados, que vendem apoio ao governo, no velho círculo vicioso do qual não saímos nunca. Este o mecanismo básico dos referidos “programas assistenciais”, meros colchões sociais que visam gerir a miséria galopante. Aos inconformados, a cadeia ou o extermínio e a ameaça permanente de uma quartelada.
Não falamos do Brasil de 1920. Falamos do Brasil de 2020. A essência da política aplicada pelo governo militar de fato é a mesma aplicada outrora por Lula-Dilma. A propósito: não faltaram, nas últimas eleições, teóricos de um certo “progressismo” inato das populações nordestinas, que responderia pela vitória da oposição nesta região. Oras, não foi o petismo quem obteve estes resultados, e sim, as oligarquias locais com quem fez as alianças mais espúrias desde que chegou ao governo. É o atraso crônico, a miséria endêmica e a prisão aos currais eleitorais que explica a persistência aí de velhos caciques, que sempre dão a entender ao governo de turno que se deixam navegar, quando são eles mesmos que navegam – arte que dominam à perfeição. Vargas, apresentado como antioligárquico, bombardeou São Paulo em 1932, mas deixou os velhos coronéis do “Norte” em paz. Avaliem aí a destreza desta gente em matéria de acomodação ao poder vigente. Por outro lado, quando estes ratos abandonam o barco, fiquem seguros: ele já afundou. O que se chama de “centrão” é, na prática, o inamovível partido ruralista (somado de alguns gângsteres urbanos), o mais forte do Congresso desde sempre.
No Brasil de capitalismo burocrático, esta chamada velha política é, de fato, a única política possível do ponto de vista das classes dominantes. A incorporação duradoura de direitos econômicos e políticos democráticos às amplas massas sempre esteve e continua vedada. Este quadro permaneceu inalterado durante os governos autodenominados “de esquerda”. A aliança com oligarcas de velho e novo tipo, o arrivismo e a corrupção mais desavergonhados como forma de assegurar a “governabilidade”, a despolitização como instrumento de comunicação com as massas, marcaram de modo nítido os governos petistas e, notadamente, o que se convencionou chamar de “lulismo”. Não faltaram a isso as componentes repressivas, como as contínuas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no campo e nas favelas, ou a explosão do encarceramento a partir da nova lei de drogas, ou a manutenção dos dispositivos jurídicos herdados do regime militar. A promiscuidade entre religião e Estado – expressa nas draconianas leis antiaborto vigentes e no imenso poder que os pistoleiros clericais têm sobre os meios de comunicação – revela que, adentrada no século XXI, a idade política de nossa republiqueta não atingiu ainda sequer 1789. A turba demencial urrando contra a interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos, estuprada desde os 6, ilustra o fundo do abismo pré-histórico em que nos encontramos.
Em tudo e por tudo, o fenômeno Bolsonaro é rebento do petismo, embora não seja incomum na história a ocorrência do parricídio. Disputa-se, no caso, a herança, não os meios pelos quais ela se fez. Justiça se faça: não é que o capitão-do-mato (refém por ora dos generais) flerte, agora, com a esquerda; é que a política aplicada pelo PT nunca deixou de ser de direita. A gênese deste mimetismo que a muitos parece extravagante encontra-se na nossa história, carente, até aqui, de uma revolução democrática triunfante. Falta-nos uma polarização real e efetiva, ao contrário do que quer o senso comum. O povo brasileiro só conheceu a experiência de um único regime, embora sob diversas colorações e roupagens.
Por isso, os democratas e revolucionários devem rechaçar os apelos de “unidade” que visa defender a institucionalidade vigente, legitimamente odiada pela maioria dos brasileiros. A contraposição de nosso tempo não é entre democracia e fascismo em geral, mas entre esta república velha insepulta e uma nova democracia, autêntica. Não tememos o fim do mundo, a linguagem favorita dos advogados do mal menor: aplicando a mesma política de seus predecessores, Bolsonaro e os generais chegarão aos mesmos resultados. É neste ponto em que as ilusões se desfazem; é neste ponto também em que começam os grandes acertos de contas. Ao inferno os derrotistas, os choramingas, os impacientes. Cegos, descrentes das massas, não veem que grandes transformações nascem de grandes desordens, cujas cruas necessidades empurram objetivamente os milhões de miseráveis e embrutecidos para uma “fundamental realização histórica” (Lenin), com uma força que nenhum discurso isolado, ainda que brilhante, alcançaria. Como dizia o Grande Timoneiro, não devemos temer as tormentas, pois é através delas que a sociedade humana avança.
Que venham!