São estarrecedoras, sob todos os aspectos, as cenas que vêm de Manaus. O drama indescritível das pessoas morrendo à míngua, sem oxigênio, acompanhado do colapso até mesmo do sistema funerário e dos danos potencialmente irreversíveis – físicos e mentais – aos pacientes e profissionais de saúde que sobreviverão à odiosa carnificina, faz do Brasil uma espécie de distopia realizada. O genocídio que assolou o país desde meados do ano passado deu lugar a um genocídio anunciado do ano entrante. Comunicado do iminente colapso no dia 7 de janeiro, o governo federal nada fez a respeito. No dia 11, em visita à capital amazonense, o general da ativa e ministro da saúde, Eduardo Pazuello – o carniceiro, afirmou que sua pasta “tem e terá capacidade de atender qualquer demanda que falhe em nível menor”. A 14, o oxigênio começou a faltar. Domingo, 17, em meio à tragédia e à escalada da pandemia, milhões de estudantes do país inteiro foram forçados a se aglomerar para prestar o ENEM.
Engana-se quem pensa que esta situação é fruto de um desgoverno. Não: nenhuma incompetência produziria os nossos mais de 200 mil mortos ao longo de quase um ano. Tampouco a incompetência seria suficiente para sabotar as mais elementares medidas protetivas frente à epidemia, já conhecidas por todos os habitantes da Terra; nem seria a incompetência bastante para negar qualquer providência séria para prover a vacina. Oras, o incompetente, sendo honesto, poderia olhar para o lado e aprender com o tempo. E, na verdade, o Brasil possui pesquisadores e um sistema de saúde público mundialmente reconhecidos. De modo que a inépcia, por si só, não explica o que se passa. O genocídio em curso neste exato momento é um projeto deliberado. Bolsonaro, seu séquito de extrema-direita e os generais – que são o governo de fato – praticam uma sequência de crimes dolosos contra o povo e a pátria. É deles que parte a ordem para matar. Embora disputem posições dentro do governo, seus projetos convergem, para efeitos práticos, neste sentido. Vejamos.
Bolsonaro – o capitão do mato, não só age, mas também pensa e fala como um assassino. Sua atitude, perante qualquer fato, é dizer: “não fui eu”, como faria um criminoso indagado sobre seus atos. Isto se dá não apenas pela sua formação de fanático fascista, nos porões do regime militar, continuada nas suas atividades como líder político de um grupo paramilitar no Rio de Janeiro, mas também porque ele conspira dia e noite para levar a termo o golpe de Estado em curso e reimplantar o regime militar do qual é viúvo inconsolável. É como se o seu covarde “não fui eu” fosse uma espécie de programa golpista, já pronto: “como não me deixam governar, o Brasil está um caos; o Brasil está um caos porque não me deixam governar”. Ele aposta na piora da crise sanitária e econômica, e no seu desdobramento em explosão social, como possibilidade para se apresentar como alternativa de defesa da ordem. Sabendo que, ao sair da presidência, irá fazer companhia aos seus filhos na cadeia, dada a extensão de seus crimes, muitos dos quais sobejamente comprovados, não crê (ao menos por enquanto) nos que lhe propõe uma saída negociada. Para ele, o golpe fascista não é mais apenas projeto de poder, mas também salvação pessoal.
O Alto Comando das Forças Armadas e sua delegacia avançada no Palácio do Planalto, teme, acima de tudo, o descalabro social e um auge da luta das massas. É isto o que baliza todas as suas intervenções públicas nos últimos anos. Agindo como tutor da república, aplica contra o povo (e mesmo contra os setores políticos oficiais ditos de oposição) uma estratégia dissuasória, como quem diz: não passem daqui, que entramos. Assim, cabe então e de forma cada vez mais direta, a essa medula do velho Estado reacionário, que são suas forças armadas, agir como corpo inteiro. Nenhum dos chamados três poderes (executivo, legislativo e judiciário) atravessou os anos recentes sem receber diretivas explícitas vindas dos generais, de que a já célebre “twittada” de Villas-Bôas em favor da prisão de Lula é exemplo dos mais didáticos. Se isso é o que vem a público, imaginem o que ocorre nos bastidores! O papel do Exército reacionário não é, pois, assegurar a “democracia” e defender a “constituição”, nem servir à população, mas gerir a contrarrevolução. É para isto que ele serve, pois é a natureza de classe desta instituição servir e assegurar, desde sempre, o poder dos oligarcas latifundiários e grandes burgueses, lacaios do imperialismo, independente de quem são os indivíduos que a compõe. Fora disso, é um trambolho imprestável, ademais de caro e corrupto, como se verifica todas as vezes que se vê forçado a atuar na esfera civil.
Isto ocorre porque, num país com dezenas de milhões de desempregados (se somarmos à estatística oficial os subempregados e a massa crescente de desalentados, isto é, pessoas que desistiram de procurar empregos), recessão econômica acompanhada de inflação e alta de preços, desindustrialização acelerada e desnacionalização dos seus recursos humanos e naturais em favor de monopólios estrangeiros (de que o caso da Vale e seus crimes continuados e impunes é exemplo notório), num país como este o único governo possível é o que age como um exército de ocupação estrangeiro. A missão precípua dos fardados de dentro e de fora do governo não é outra, senão manter sob controle a plebe faminta; manter contínua a drenagem das riquezas arrancadas desta terra e os superlucros auferidos pelo imperialismo. É isto, afinal, que é o Estado, aparelho de coerção de uma classe sobre a outra, que atinge no Brasil de 2021 quase a sua forma teórica pura, posto que desprovida de adornos e mediações que a “esquerda” legal e oportunista, quase desesperadamente, tenta salvar.
Quanto a isso, Bolsonaro e os generais que o cercam não têm discrepâncias relevantes. Sua perspectiva ideológica é a mesma.
No entanto, o fato de que o velho Estado reacionário esteja hoje nu perante as vistas de todos, não é um dado inofensivo ou irrelevante. Resta cada vez mais claro a amplos setores da opinião pública, e isso será tanto mais verdadeiro à medida em que a luta de classes se radicalize, a farsa de nossa democracia tutelada – uma espécie de grande prisão em regime semiaberto – e o fato de que alternâncias de governo em nada modificam o sistema de poder, mantido de modo inalterado nas mãos das classes dominantes locais (grande burguesia e latifundiários), serviçais do imperialismo (principalmente ianque). Vivemos, pois, ao lado de uma regressão atroz em todos os campos da vida social, uma oportunidade ímpar para os revolucionários apontarem para as massas os alvos decisivos da sua fúria. Lembremos um princípio filosófico, comprovado pela história das revoluções no século XX, segundo o qual o contrário específico da regressão não é a estabilidade ou o retorno ao ponto de partida, mas, sim, um grande e acelerado salto à frente.